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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020

 

PROJETOS E PESQUISAS

 

Desejo de mundo

 

World desire

 

Deseo de mundo

 

Désir de monde

 

 

Magda Khouri

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Diretora de Atendimento à Comunidade da SBPSP (2017-2020)

Correspondência

 

 


RESUMO

A autora desenvolve uma reflexão sobre a extensão da clínica psicanalítica, mostrando como as ideias, os estudos, as discussões construídos durante muitos anos foram levando a Diretoria de Atendimento à Comunidade da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (2017-2020) a colocar o pensamento em ação e se deixar penetrar pelas questões da cidade e a se relacionar diretamente com territórios diversificados. Com as demandas surgidas no período de pandemia, a autora coloca em debate como os tempos de crise provocada pelo coronavírus têm nos colocado à prova, mostrado como o processo psicanalítico pode se dar em variadas formas de encontro de subjetividades, evidenciando tanto seus desafios como sua eficácia e potência.

Palavras-chave: clínica extensa, comunidade, instituição, escuta psicanalítica, pandemia


ABSTRACT

The author develops a reflection on the extension of the psychoanalytic clinic and presents how the ideas, the studies, the discussions built over many years, led to putting into action the board of directors that intervenes with the SBPSP community (2017-2020) and allowing himself to be penetrated by the issues of the city and relating directly to a universe of different territories. With the demands arising from the pandemic, the author discusses how the times of crisis caused by the coronavirus have put to the test and shown that the psychoanalytic process can occur in a varied way reaching subjectivity, highlighting both its challenges and its efficiency and power.

Keywords: extensive clinic, community, institution, psychoanalytic listening, pandemic


RESUMEN

La autora desarrolla una reflexión sobre la extensión de la clínica psicoanalítica y presenta cómo las ideas, los estudios y las discusiones construidas durante muchos años llevaron a colocar en acción a la dirección, que interviene junto a la comunidad de la SBPSP (2017-2020) y se dejar penetrar por las cuestiones de la ciudad y que también no deja de relacionarse directamente con un universo de diversos calados. Con las demandas surgidas a partir de la pandemia, la autora coloca en debate cómo los tiempos de crisis provocados por el coronavirus han puesto a prueba y mostrado que el proceso psicoanalítico puede darse de varias formas de encuentro de subjetividad, evidenciando tanto sus desafíos como su eficacia y potencia.

Palabras clave: clínica extensa, comunidad, institución, escucha psicoanalítica, pandemia


RÉSUMÉ

L'autrice développe une réflexion concernant l'étendue de la clinique psychanalytique, en démontrant comment les idées, les études, les discussions construites pendant plusieurs années ont mené petit à petit l'équipe de la direction d'accueil à la communauté de la SBPSP (2017-2020), à mettre en œuvre la pensée, à permettre que les questions de la ville s'y infiltrent et créer des rapports avec des territoires diversifiés. Étant donné les demandes surgies dans cette période de pandémie, l'autrice met en question comment ces temps de crise entraînés par le coronavirus nous ont mis à l'épreuve, démontre comment le processus psychanalytique peut avoir lieu dans des formes diverses de rencontre de subjectivités, tout en rendant évident aussi bien ses défis que son efficace et puissance.

Mots-clés: clinique étendue, communauté, institution, écoute psychanalytique, pandémie


 

 

As crianças que frequentavam o Acaia e outras instituições acabavam ficando estigmatizadas como "meninos cheios de querer", e isso atrapalhava o bom andamento das atividades. Vitalidade, desejo de mundo vinham corromper a ordem estabelecida.

ANA CRISTINA CINTRA & SILVIA BRACCO

 

Clínica extensa

Ao voltar o olhar e a escuta ao mundo que nos cerca, nós psicanalistas somos convocados a nos deixar afetar pelo que nos propõe novos territórios, pela época em que vivemos, pois é no encontro de diversas realidades que teremos a chance de revisar, criticar e reinventar a psicanálise. Não significa menos rigor metodológico, mas uma possibilidade de revitalização do pensamento e do exercício clínicos tanto dentro como fora do consultório. Tais produção e prática psicanalíticas envolvem o que é chamado de psicanálise extramuros ou, como denominamos em um projeto realizado na Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal, 2014-2016), psicanálise a céu aberto, assim como Fabio Herrmann nomeou clínica extensa - entre outras ideias criadas por autores envolvidos na intensa relação da psicanálise com a sociedade.

Numa conferência de Fabio Herrmann (2005), o autor, ao falar de psicanálise, cultura e sociedade, disse que o mundo não cabe no divã e, por ser redondo, cairia, pois, como sabemos, rola, além do que o divã está dentro do mundo. Não seria possível fazer essa operação! A psique coletiva não é uma psique individual ampliada nem o contrário, pois, na concepção do autor, a psique é o sentido humano. Na esteira de Freud, como não poderia deixar de ser, Herrmann procurou recuperar aquilo que constituiu o nosso patrimônio original: um olhar clínico sobre o mundo. Aí está a raiz do que se denomina clínica extensa.

O autor escreveu que os psicanalistas acabaram por se especializar numa só atividade, a clínica padrão de consultório, perdendo o horizonte de sua vocação, indicado por Freud, cuja direção é pensar a psicanálise como ciência geral da psique. Psicanálise aqui entendida, primordialmente, como um método de conhecimento da psique, baseado no fazer interpretativo. E de acordo com Herrmann, clínica extensa não é uma novidade, é só onde se evidencia, em maior medida, que a técnica de atendimento fora do consultório é inexequível, e marca com maior precisão a diferença entre método e técnica. Nesse sentido, grande parte de sua obra foi dedicada à construção de conceitos que descrevem o método psicanalítico. Tal método, que opera por rupturas de campo, eixo central dos caminhos da interpretação, cria condições para a busca de sentidos, método "semeador de inconscientes, põe à mostra o que está oculto em qualquer condição humana" (Herrmann, 2002, p. 291).

Como escreveu Herrmann:

A técnica não é um desdobramento do setting ou uma receita teórica do que dizer. É a escuta poética, sem melodrama, sem alcaçuz. Deixar que surja o sentido, para lá do alcance estreito da significação, tomá-lo em consideração e aguentar as consequências. Principalmente, não tomar as palavras pelo manual de interpretação, esperando delas um significado literal que não podem ter nas circunstâncias. (2017, p. 409)

Na concepção do autor, um dos pontos centrais é que não se trata da questão de um setting mais amplo, mas a superação da questão do setting/moldura.

Para ser mais precisa, clínica extensa refere-se tanto às aproximações com artes, literatura e as diversas áreas do saber científico, às ações psicanalíticas em diferentes territórios, como àquilo que se faz no consultório e que não se costuma contar, uma vez que se encontra fora da técnica padrão. Trata-se, portanto, de cuidar rigorosamente da pesquisa do nosso método de investigação, do conhecimento e da cura.

 

A vela e o psicanalista

Leopold Nosek considera que a escuta psicanalítica está dentro do analista, independente do lugar em que ele se encontre, e diz ser um dos poucos trabalhos existentes que prescinde da tecnologia, até da elétrica: se o mundo parar e ficar no escuro, bastam duas subjetividades e uma vela!

A imagem criada por Nosek traduz a ideia potente do fazer psicanalítico proposta por André Green sobre o enquadre interno do psicanalista, que é, em última instância, o próprio analista em sua função de guardião do tratamento do paciente.

A experiência da própria análise é fundamental "como propiciadora de uma escuta íntima da própria turbulência pulsional que nos habita, pois aí também reside nossa singularidade e vitalidade" (Vetorazzo, 2013, p. 75). Ou seja, o analista, por meio de seu processo analítico, "constituiu e introjetou uma capacidade de ausência e de negatividade, simultâneas à capacidade de presença implicada, mas discreta, que podem sustentar um tratamento bem-sucedido, mesmo na ausência das condições de enquadre consideradas ideais para um tratamento psicanalítico" (Coelho Jr., 2013, pp. 150-151).

O que sustentaria a experiência psicanalítica é a possibilidade de reconhecimento do estrangeiro em si mesmo e no outro. Nesse sentido, Pierre Fédida enfatiza que o familiar se opõe ao íntimo (1991). Na psicanálise o campo da intimidade se dá na escuta da estranheza, do "não familiar", do "informe". São questões a serem consideradas para permitir a identificação e a nomeação do pulsional, já que a familiarização da fala aumenta as representações conscientes do pensamento, reforça o domínio do representável em detrimento do figurável. Convoca, de forma incisiva, o psicanalista ao engajamento quanto à instauração da situação analítica.

A meu ver, todos esses autores nos trazem avanços para desenvolver uma escuta mais radical, implicados com a dor, a angústia, o sofrimento do outro, onde quer que se empregue o método psicanalítico.

 

O psicanalista fora de casa

"O psicanalista fora de casa" foi o título de uma das mesas do XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, realizado em 2019.1 Na largada da discussão, Oswaldo Ferreira Leite lança uma pergunta que considero ser norteadora de toda a trajetória que descreverei a seguir: "Haveria algum sentido em o psicanalista permanecer dentro de casa?".

Inspirados nos diversos autores e no diálogo construído todos esses anos, o desejo de mundo foi levando a Diretoria de Atendimento à Comunidade (dac) da SBPSP2 a colocar o pensamento em ação, a se deixar penetrar pelas questões da cidade e a se relacionar diretamente com territórios diversificados.

Contando um pouco da história, de 2007 a 2009 a dac, que eu coordenava nesse período, junto com Bernardo Tanis, à época diretor de Comunidade e Cultura da Fepal, organizou o i Simpósio Latino-Americano de Comunidade e Cultura: A psicanálise nas tramas da cidade, colocando a escuta psicanalítica em perspectiva mais ampla do mal-estar nas metrópoles, para o qual convocamos todas as associações de América Latina para um amplo debate.

Depois de alguns anos, ao coordenar a Diretoria de Comunidade e Cultura da Fepal,3 desenvolvemos o projeto Psicanálise a Céu Aberto, que nasceu sob a forma de fórum online,4 com participação significativa de toda a América Latina. Tal projeto teve muitos desdobramentos, promovendo um intenso debate sobre a escuta ampliada da psicanálise e sua inserção nas sociedades latino-americanas.

E atualmente as diretrizes que permeiam as atividades da dac integram o projeto Psicanálise e suas Clínicas, da diretoria da SBPSP (2017-2020), presidida por Bernardo Tanis. Esse projeto envolve os diferentes setores dessa sociedade refletindo sobre a extensão da psicanálise, assim como teve como proposta criar um modelo de trabalho institucional com maior alcance na comunidade. Como escreve Tanis:

A psicanálise e suas clínicas, seja na clínica privada, no serviço público ou na ong, é uma realidade viva. É psicanálise viva e compromisso com a tarefa de atender o sofrimento psíquico a partir da singularidade de uma escuta que lhe é própria. (2018, p. 101)

Ao dirigir o olhar ao mundo e considerar a inserção da clínica no social como base de nossos projetos, cabe a nós o compromisso de investigar as marcas na subjetividade do abismo social em que vivemos, com todos os seus desdobramentos, que passam pelo racismo estrutural brasileiro, por questões de preconceito de gênero, entre outras, pois a clínica, ao se deixar impregnar da história de uma sociedade, nos acessa às marcas inconscientes. Como disse Izildinha Baptista Nogueira em reunião científica promovida pela Diretoria Científica da SBPSP (2019), "a psicanálise não segrega". E, seguindo a linha de reflexão de Bruce (2016), ela está aberta a todas as histórias enterradas da vida de um sujeito ou de uma determinada sociedade.

Acredito que o "fora de casa", nesse constante movimento de reinventar a psicanálise, oferece experiências que colaboram significativamente para afinar a escuta psicanalítica, configurando-se em um caminho sempre enriquecedor na formação de novos analistas, na sua prática e reflexão clínico-teóricas.

 

Nas fronteiras da cidade

No simpósio Por Que Não Psicanálise? A Clínica Psicanalítica Acessível na Relação com a Cidade (6 e 7 de outubro de 2017), realizado pela Associação dos Membros Filiados - São Paulo, presidida por Eduardo Martins, em parceria com o Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPQ-HCFMUSP), entre a escuta individual e a escuta coletiva, destaco dois trabalhos que estão diretamente relacionados à presente discussão.

Pensando na sociedade brasileira, Rosana Onocko Campos (2012) apresentou uma consistente reflexão sobre psicanálise e saúde coletiva, colocando em pauta a nossa acentuada desigualdade social. Com a visão de que subjetividade e política nunca estiveram separadas na sua fundação, mostra como as histórias de violência não processadas acabam por ser transmitidas transgeracionalmente. Campos salienta o traumatismo como herança, provocando silêncio e humilhação. Propõe como base de um projeto que cuide de gerações atuais e futuras a restauração de um espaço de dignidade: dos lugares, dos corpos, dos nomes, que apenas seria viável num sistema do cuidado plural: ação psicoterápica, sociocomunitária e jurídica.

Por sua vez, Cleusa Pavan (2018) tratou da Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde (sus). Entre os vários pontos abordados, acentuaria a construção de uma rede de trabalho terapêutico que crie uma espécie de movimento contagiante, em que o cuidado com o sofrimento psíquico seja um disparador de refundação de mundos. E um dos dispositivos com que a psicanálise pode contribuir é instituir a clínica da clínica: criar as formas de sustentação emocional para os profissionais envolvidos. Sabemos dos efeitos produzidos quando a equipe tem condições de fazer circular a palavra e ser acolhida em suas demandas - propagam-se os efeitos da escuta nos atendimentos realizados.

Todas as ideias, debates e estudos desenvolvidos no decorrer desses anos levaram a dac a construir um projeto clínico no campo social, que foi colocado em prática nessa gestão. Com base nos fundamentos dessa reflexão, uma das atividades desenhadas foi o trabalho com os agentes de saúde mental das varas de justiça de criança e família, de educação e de outros lugares da cidade, criando convênios e parcerias que vêm se consolidando ao longo do tempo.

Durante os últimos quatro anos, no Setor de Parcerias e Convênios, coordenado por Silvia Bracco, temos acompanhado as diversas ações institucionais, que envolveram o trabalho de muitos colegas, os quais, por seu compromisso e competência, tornaram possível colocar em funcionamento uma modalidade clínica com um alcance em diferentes territórios da nossa cidade.

As ações institucionais têm como objetivo geral oferecer espaços de escuta e reflexão, com intuito de identificar pontos de impasse ou dificuldades no âmbito do trabalho e/ou das relações interpessoais/institucionais, a fim de ampliar as possibilidades de pensamento. Todas as dez parcerias realizadas durante esse período estão descritas na parte final deste artigo.

 

Colchão para a reverie

As ações ocorrem em convênios firmados com organizações sociais, que se dedicam ao cuidado da população em situação de alta vulnerabilidade social. Essas instituições têm procurado a SBPSP com questões relacionadas à saúde mental das equipes que atendem a população assistida por eles. A intensa sobrecarga emocional e o grande sofrimento psíquico dos trabalhadores, que estão em contato direto com situações de vida muito precárias, têm sido a principal demanda dessas instituições.

Os principais temas que mobilizam as demandas dessas instituições são depressão, abuso de álcool e drogas, suicídio, violência, abuso sexual e vulnerabilidade social. Indivíduos que estão expostos à falta de perspectiva, ao desamparo e tantas outras formas de violência que a ausência do poder público favorece.

Entre as várias experiências surpreendentes que essas pessoas que atendem a população vulnerável têm que viver, elegi duas cenas da parceria com a União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas), descritas pelos colegas psicanalistas da equipe.

Na primeira delas, um menino começou a ter uma manifestação extremamente agressiva que ninguém conseguia conter. A praxe da instituição nesses casos é chamar os responsáveis pela criança. Quando a gestora, Vanessa Suellen Lauriano da Silva, vai em busca desse pai, aproxima-se do lugar indicado do trabalho dele; é informada que bastava virar a esquina. Segue sua rota, vira a esquina e se depara com uma fila. Descobre ali a atividade do pai: um traficante. Nesse momento entra na fila, para tentar avisá-lo do ocorrido. Não poderia simplesmente furar a fila, sem pagar o preço das represálias dos usuários. Ou seja, por um momento ela teve de se passar por um consumidor para poder exercer o seu trabalho.

Aos poucos vai imaginando a reação possível desse pai, afinal um traficante costuma ser pessoa mais agressiva, de tolerância baixa. Ela pensa, ainda, que iria tirá-lo do trabalho, privá-lo de ganhar seu dinheiro, mesmo que de maneira ilícita. A chance de agredir o filho seria praticamente inevitável. Retira-se com a desculpa de não poder aguardar a sua vez porque deveria voltar ao trabalho. Retorna à sua função, sem se dar conta de que estava mais fortalecida, pois algo se passa nesse trajeto que lhe dá condições de conversar e conter o menino.

Após a experiência, no grupo de reflexão com os educadores os psicanalistas apontam que ela havia primeiro se surpreendido com o fato de o pai ser traficante, em seguida com a desconfortável vivência de entrar na fila, como se fosse uma usuária, porque não poderia passar as pessoas. Seguem mostrando que aquele intervalo se transformou em um tempo de refletir; ela retornou com mais recursos, na medida em que passou a pensar em como evitar a agressão ao menino, pois percebeu o que esse aluno devia viver em sua casa. Refazem com a gestora o circuito do impacto com a realidade e de imaginar a relação desse filho com o pai, o que gerou uma mudança na sua posição subjetiva para o enfrentamento da turbulência da criança.

No encontro do grupo abre-se espaço para a dimensão simbólica do acontecimento, como descreve de forma tão precisa Marcelo Viñar:

Acredito que a contribuição da psicanálise seja decisiva no sentido de poder manter o conflito e sustentar, na medida do possível, uma mediatização da descarga em ato. Não uma abolição da sanção punitiva, nem uma desresponsabilização, pois isso também seria um uso perverso da psicanálise. Mas a possibilidade de que os protagonistas dos acontecimentos violentos possam sustentar o conflito, ajudados por um terceiro exterior, e mantenham suspensa a resposta punitiva imediata. Essa suspensão criaria um "colchão", um espaço de reverie, ou melhor, espaços lúdicos nos espaços concretos, onde a catarse da violência humana poderia ser manejável, e onde a brutalidade poderia ser sancionada ou questionada e, deste modo, distendida. (2000, pp. 101-102)

Uma das grandes potências da psicanálise é transformar uma conversa comum em um discurso metaforizado, sempre como guardiã da liberdade do sujeito na sua forma mais radical.

 

Ato psicanalítico

A partir das experiências realizadas, um ponto a ser ressaltado é sobre o lugar ocupado pelo psicanalista, que, entre outras funções, visa mediar as relações para que os grupos trabalhem melhor. Dar voz e nomear as questões que provocam angústias e paralisias e deixar os profissionais em melhores condições para sustentar os conflitos que surgem nas equipes e na instituição, se disponibilizando nos cuidados da saúde mental da população assistida. Nesse sentido, como observou Silvia Bracco em uma comunicação pessoal, partimos do coletivo para chegar ao sujeito, para que esse sujeito caiba no grupo e no desafio de sua prática. Não são grupos de terapia, contudo têm efeitos terapêuticos. Fazer circular a palavra e criar um espaço fora da urgência diária do trabalho têm fortalecido os grupos e aberto o diálogo entre os participantes, potencializando sua capacidade de pensamento e ação.

De acordo com Isabel Kahn, em aula ministrada na SBPSP sobre grupo, instituição e psicanálise (2018), a função do psicanalista é poder suportar o movimento desejante, sustentar o tempo possível de elaboração do grupo envolvido. Esse é o movimento de resistência do analista, que é um ato político.

Não há instituição que dê conta do excesso. A função do analista é escutar todo o atravessamento institucional. A escuta daquilo que insiste como violência, como vulnerabilidade, a escuta do que escapa. Ter uma genuína disponibilidade, de abertura para construir significados.

A segunda cena, bastante comovente, é a atitude da gestora Marilene Rosa da Conceição, que diante da aluna doente se vê aflita para levá-la ao médico. Quando fala que iria conversar com a mãe, a filha responde: "Minha mãe está na cama, fica no sofá, ela é drogada". A gestora insiste sobre a necessidade da autorização, e vai à casa da criança para dizer que ela está precisando de cuidados, pedindo sua licença para conduzi-la ao médico. Feito o pedido, volta no dia seguinte e encontra a mãe de banho tomado, arrumada para irem juntas cuidar da filha. Para a menina, abre-se um novo cenário.

A gestora reconhece o lugar da mãe, que não pode ocupar o seu papel, apenas mostra a necessidade dos cuidados, sem sermão. Sustenta a própria impotência e a do outro e, dessa forma, como um dos melhores exemplos de ato analítico, toca a mãe a tal ponto que posteriormente esta aceita se submeter a um tratamento num serviço de saúde mental da cidade.

Os psicanalistas no grupo apontam a capacidade da profissional, a força do seu ato que, ao suspender o juízo e respeitar o lugar da mãe, abre caminho para se concentrar naquilo que tinha que ser feito: tratar da criança, o que, por sua vez, quiçá pelos tortuosos caminhos da transferência, também alcançou a mãe. Mostraram o que já estava lá, sem forçar sentidos. É um momento de recuo da urgência do cotidiano, pois os educadores se sentem muito cansados emocionalmente, colados às histórias das crianças, que também fazem lembrar as suas próprias realidades. Os educadores são pressionados diariamente a dar conta do abandono em que se encontra a comunidade em relação ao sistema de saúde, à proteção da lei, às organizações familiares. Para suportar paixões violentas ou mergulhar na biografia de pessoas silenciadas pela dor, além de plasticidade psíquica, os cuidadores exercitam uma espécie de atletismo afetivo (Lancetti, 2015).

Como escreveu Nosek, nesse contexto, não seria o lugar para o psicanalista dar respostas terapêuticas - o central é não se vincular à ação:

Ele está preparado para fazer formulações diagnósticas. Não resolve equações, colabora para montá-las. Sabemos que isso resulta por vias secundárias. Afinal, é mais difícil resolver uma equação ou encontrar constantes e o modo de construí-la? Ou seja, trata-se de encontrar trajetos expressivos e representativos para que a atividade do pensar evolua. Trata-se de sonhar. (2012, p. 100)

 

Fazer compartilhado

Realidades brasileiras exigem uma escuta aberta aos novos códigos culturais, sem a pretensão de levar o saber, mas de um fazer compartilhado.

É justamente essa posição do trabalho do psicanalista que é evidenciada no comentário inédito de Fabio Herrmann, feito no exame de qualificação de Fernanda Sofio (2006):

A tarefa da extensão da clínica impõe consideração ao problema da escuta psicanalítica dar-se fora da cultura onde nasceu a psicanálise. Uma antropologia do saber psicanalítico. Mostra que a escuta psicanalítica é um ouvir psicanaliticamente o que já lá está. Não é inventar a psicanálise de um certo lugar, mas aprender com o lugar sem forçar sentidos.

Na mesma direção, outro setor da dac, o Centro de Atendimento Psicanalítico, coordenado por Susana Muszkat, tem como objetivo oferecer atendimento psicanalítico em suas várias modalidades à comunidade em geral, assim como corresponder à proposta de compromisso social, estendendo o trabalho clínico a setores menos favorecidos da população. Uma clínica voltada às necessidades de seus pacientes, na sua singularidade e no seu contexto histórico.

 

Pandemia...

O desejo de mundo parece ter sido abalado nestes tempos de pandemia. Com tal golpe de realidade, todos vivemos a interrupção de projetos, a forte quebra do cotidiano, e com o prolongamento da crise disparam diversos tipos e camadas de angústias. E nas realidades latino-americanas, agudiza, ainda mais, o abismo socioeconômico.

Os vários movimentos das instituições psicanalíticas diante das emergências provocadas pela covid-19 mostraram a criação de instrumentos ágeis e novos a uma demanda atípica, o que nos leva a repensar sobre uma série de modalidades da clínica psicanalítica.

Em São Paulo organizamos a Rede SBPSP, oferecendo conversas gratuitas e pontuais à população em geral e aos profissionais de saúde. Foi uma experiência que exigiu de todos nós uma genuína disponibilidade de abertura para construir significados.

Pelo fato de ainda estarmos todos, sem exceção, imersos nesta realidade tão estranha, seria difícil antecipar os efeitos psíquicos da atual crise. Por enquanto, um primeiro passo é começarmos com a pergunta: o que o psicanalista pode aprender a partir dessa situação emergencial?

Como sabemos, o fato de o psicanalista estar vivendo as mesmas circunstâncias que as pessoas que atende pode colocá-lo numa situação de maior vulnerabilidade. Se por um lado essa situação pode provocar insegurança, por outro lado tal vulnerabilidade pode ser transformadora, no sentido de o analista se encontrar em um estado mais poroso e ir aonde o paciente está. Se o analista não lutar contra a sua impotência, que aliás é de todos, e tratá-la como uma possibilidade de abertura, mantém o seu lugar de sustentar a incerteza, o estranho nestes tempos tão difíceis. E aí a diferença de olhar que pode oferecer aos seus pacientes.

No programa da Rede surgiram as mais variadas histórias de vida, de pessoas que nunca tiveram acesso a uma conversa com um psicanalista, dos mais inusitados cantos do país, resultando num projeto de impacto social. Diante dessa diversidade, muitas vezes nos encontramos destituídos do lugar tradicional do psicanalista, exigindo maior precisão no método psicanalítico para escutar as urgências subjetivas e certa flexibilização da técnica. E a nossa importância questionada quando muitas pessoas nem respondiam às chamadas dos colegas, até chegando a bloquear o contato do analista!

Durante o processo observamos que a escuta psicanalítica pontual pode construir um momento de introspecção, de recuo do bombardeamento provocado pela pandemia, ao gerar uma conversa que pode dar expressão à angústia subjacente a toda essa circunstância. O atendimento cumprindo uma espécie de função de dilatar o tempo, a fim de criar espaço para pensar.

Parece ser próprio da urgência subjetiva, como efeito da angústia gerada, uma confusão entre tempo e espaço afetar as relações com o outro, um possível desvanecimento das particularidades, que interferem nas dinâmicas inconscientes em jogo. E muitas fantasias se sobressaem em momentos de crise, colocando em maior evidência as dificuldades emocionais de cada um. Tudo isso acentuado pelo total desgoverno no nosso país, muitas vezes deixando a população abandonada à própria sorte.

Por meio dos atendimentos individuais, os sujeitos têm a chance de se conectar com a sua própria história e o analista funciona como uma "testemunha" de seu estado interior, que qualifica e dá crédito ao que se produziu nele (Roussillon, 2019). Foi marcante como muitas pessoas se organizavam visivelmente da primeira para a segunda conversa; e, também, ao poder dar voz às suas angústias, a pandemia deixava de ser o personagem principal e uma mobilidade psíquica dava lugar às conversas sobre muitas dimensões de sua vida pessoal.

E dentro da instituição foi criada uma rede entre os colegas, por meio de grupos de discussão clínica semanais, oferecidos pelos participantes da comissão do programa,6 que funcionaram como espaço para relatar os atendimentos, pensar como opera o método psicanalítico nessa modalidade proposta, cuidar dos encaminhamentos, assim como se configurou uma importante troca de experiências que deu suporte para o impacto emocional vivido em cada situação clínica, por vezes muito angustiante.

Nos trabalhos institucionais da SBPSP, passado o golpe inicial, surge o medo do contágio sem fim, do retorno às atividades, do acirramento da

6 Comissão da Rede SBPSP: Magda Khouri, coordenadora; Heloisa Ditolvo, Iliana Horta Warchavchik, Lula Abrahão, Maria Augusta Marsiaj Gomes, Maria Cecília Fernandes Silva, Maria Luiza de Mattos Fiore, Pedro Colli Badino, Raya Angel Zonana, Regina Maria Rahmi, Silvia Bracco e Susana Muszkat.

pobreza. Vários grupos de educadores têm enfrentado, por exemplo, o dilema moral ao serem responsáveis por dividir as doações para seus alunos na comunidade: o que fazer com as famílias da região que não pertencem às suas instituições e passam fome? Daí a demanda de continuidade dos grupos de escuta psicanalítica online, mobilizando o desejo de reencontrar o lugar, ali onde o grupo já havia se fortalecido, de manter o espaço para pensar sobre esse momento de medo e incertezas.

E na pandemia observamos como o método psicanalítico contempla esse desejo de mundo em circunstâncias adversas variadas, tanto pelo movimento dos psicanalistas de construir as ações solidárias como pela busca das pessoas por uma escuta de suas angústias.

Penso que os tempos de crise provocada pelo coronavírus têm nos colocado à prova, mostrado como o processo psicanalítico pode se dar em variadas formas de encontro de subjetividades, com seus desafios, sua eficácia e sua potência.

Cabe ressaltar que todo esse caminho percorrido na clínica extensa criou as bases para que a nossa instituição tivesse condições de explorar novas possibilidades de escuta, tão necessárias no momento em que estamos vivendo, possibilitando certa agilidade em atender às demandas da população durante a pandemia. A psicanálise exercendo seu compromisso social.

 

Narrativa: recriando mundos

Somos convocados a transitar em diferentes settings, tanto no consultório particular quanto no trabalho clínico em territórios expandidos, tornando-se muito atual a observação de Melanie Farkas, ao escrever:

São situações e meios que extrapolam a condição ideal de privacidade e neutralidade da sessão de análise, no entanto, não impedem o profissional de psicanálise usar com proveito a regra de ouro da associação livre e da atenção flutuante para contribuir na reconstrução de enredos. (2012, p. 50)

O ato analítico permanece com sua potência ao resgatar, por meio da narrativa, as redes associativas pelo trabalho onírico da vigília, surgindo como possibilidade de elaboração, de cura, tanto no plano individual como no coletivo.

Nesse mesmo caminho, Michèle Petit recupera a ligação entre narração e crise:

Muitos contadores de histórias ou mediadores de leitura de hoje em dia redescobrem essa antiquíssima observação quando trabalham com pessoas que viveram uma guerra, uma catástrofe, um trauma: o que está dentro deles deve primeiro encontrar uma voz do lado de fora por caminhos estéticos indiretos, para que porções inteiras daquilo que viveram não permaneçam entranhadas nas zonas mortas de seu ser. Para que possam testemunhá-los. (2019, p. 94)

O espaço da psicanálise sempre foi encontrado nos interstícios, nas fendas do muro e, ao devolver a força poética à palavra, o sujeito tem a chance de encontrar novas formas para enfrentar o mundo.

 

Método psicanalítico em ação

1. Guarda Civil Metropolitana da cidade de São Paulo: trabalho desenvolvido com grupos de servidores que atuam na segurança pública da população da cidade de São Paulo. Coordenação: Flávio José Gosling, Iliana Horta Warchavchik, Maria Augusta Gomes e Susana Muszkat. Início: setembro de 2016. Término: dezembro de 2019.

2. Instituto Anchieta Grajaú: trabalho dirigido aos profissionais que participam de um serviço na região do Grajaú que visa à proteção social básica (saúde, educação e benefícios) a mil famílias - por mês - em situação de risco e extrema vulnerabilidade social. Coordenação: Ana Maria Rosenzvaig, Eliane Saslavsky Muszkat, Silvia Bracco e Sonia Terepins. Início: abril de 2017.

3. Centro Estadual de Educação Tecnológica Paula Souza - Etecs e Fatecs: o Grupo de Reflexão Educação e Psicanálise atua junto aos educadores pertencentes ao Centro Paula Souza, que atende em média 220 mil alunos em nível técnico secundário e universitário. Coordenação Etec: Heloisa Helena Sitrângulo Ditolvo, Raul Gorayeb e Silvia Martinelli Deroualle. Início: março de 2018. Coordenação Fatec: Any Trajber Waisbich, Ludmila Yajgunovitch Mafra Frateschi e Marina Kon Bilenky. Início: agosto de 2018.

4. Tribunal de Justiça de São Paulo e Centro de Visitação Assistida (Cevat): trabalho dirigido à equipe que atua em casos altamente litigiosos que envolvem graves denúncias de violência. Coordenação: Francisca Vieitas Vergueiro e Mônica Dias Vianna Braga de Sá. Início: julho de 2018.

5. Lar das Crianças (cip): atendimento psicológico dirigido às crianças que frequentam o lar e supervisionado pelos professores do Curso Introdutório ao Atendimento Psicanalítico da Infância e Adolescência (Cinapsia). Coordenação: Tania Mara Zalcberg. Início: abril de 2014.

6. União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas): grupos de discussão, escuta e reflexão a respeito das questões que vêm sendo observadas e vivenciadas pelos educadores no trabalho com as crianças e adolescentes da comunidade. Coordenação: Eliana da Silveira Cruz Caligiuri e Luiz Moreno Guimarães Reino. Início: outubro de 2018.

7. Defensoria Pública do Estado de São Paulo - Santos (sp): grupos de escuta com técnicos que atuam no atendimento jurídico à população. Coordenação: Magda Guimarães Khouri, Maria Cecília Borges Casas, Marília Alves e Regina Helena Levy. Parceria com a diretoria regional (dr): Selma Terezinha Jorge (dr), Benedita de Lourdes Carvalho Rodrigues (Seção Regional de Santos [dr]). Início: maio de 2018. Término: dezembro de 2018.

8. Grupo Hora da Conversa - Educação de jovens e adultos (eja) e cursos técnicos do Colégio Santa Cruz (São Paulo): espaço de escuta e reflexão auxiliando os alunos dos cursos e a equipe técnica a enfrentarem as dificuldades vivenciadas na retomada dos estudos, que contribuem em grande medida para a evasão escolar. Coordenação: Lula Maria Abrahão e Maria Cristina Mantovanini. Início: março de 2019.

9. Instituto Criar de tv, Cinema e Novas Mídias: o Instituto Criar é um espaço de educação que promove o desenvolvimento profissional, sociocultural e pessoal de jovens através do audiovisual. Coordenação: Cristiana Tiradentes Boaventura e Mônica Dias Vianna Braga de Sá.

10. Associação Santo Agostinho (asa): a asa é uma organização da sociedade civil que trabalha com educação e cuidados dirigidos a aproximadamente 1.400 crianças, adolescentes e idosos em situação de vulnerabilidade social em 11 unidades na cidade de São Paulo. Durante a pandemia da covid-19 fomos procurados para oferecer suporte às equipes de educadores. Coordenação: Any Waisbich, Heloisa Ditolvo, Maria Tereza Mantovanini, Raquel Ajzenberg, Silvia Deroualle e Sylvia Pupo. Início: julho de 2020.

 

 

Referências

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Correspondência:
Magda Guimarães Khouri
Rua da Consolação, 3741/22
01416-001 São Paulo, SP
Tel.: 11 3083-3002
magdakhouri@uol.com.br

Recebido em 16/9/2020
Aceito em 29/10/2020

 

 

1 XXVII Congresso Brasileiro de Psicanálise, promovido pela Federação Brasileira de Psicanálise (Febrapsi), realizado em Belo Horizonte (MG), de 19 a 22 de junho de 2019.
2 A dac é constituída por três setores: Setor de Parcerias e Convênios, coordenado por Silvia Bracco; Centro de Atendimento Psicanalítico, coordenado por Susana Muszkat; e Setor de Cursos e Jornadas, coordenado por Heloisa Ditolvo.
3 Fernando Orduz, presidente da Fepal (2014-2016); Magda Khouri, diretora de comunidade e cultura; Oswaldo Ferreira Leite, suplente. Comissão: Ana Maria Brias Silveira, Berta Azevedo, Cintia Buschinelli, Eduardo Martins, Eliana Caligiuri, Maria do Carmo Davids do Amaral, Raquel Ajzenberg, Raya Angel Zonana, Rita Andréa Alcântara de Mello, Rodrigo Lage. O título do projeto foi de autoria de Cintia Buschinelli.
4 Fórum online Psicanálise a Céu Aberto, de novembro de 2015 a fevereiro de 2016, coordenado por Eduardo Martins e Rodrigo Lage, contou com a participação de diversos psicanalistas latino-americanos. Foram registrados mais de 6 mil acessos.

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