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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.12 no.22 Barbacena jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

A objetalização científica como "paradoxo na relação entre fala e linguagem"

 

Scientific objectification as "paradox in the relationship between speech and language"

 

La objetalización científica como "paradoja en la relación entre el habla y el lenguaje"

 

 

Carlos Alberto Ribeiro Costa

Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense de Rio das Ostras (UFF); Doutor e Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Especialização em Psicanálise e Laço Social pela UFF.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo resgata elementos do que Lacan chamou de "paradoxos na relação entre fala e linguagem". Visando o debate contemporâneo, este trabalho desenha para si um triplo fim. Primeiramente, identificar como na modernidade a linguagem, ao ser formalizada, permite identificar o efeito não substancial ou essencial que é o sujeito. Num segundo ponto, apreender como a formalização inerente ao projeto de civilização científica e capitalista pode segregar esse sujeito mediante a redução da linguagem ao paradigma informacional e pela alienação do sujeito à função de consumidor. Por fim, propor a fala em sua dimensão performativa e de enlace, reconhecimento e alteridade, de modo a pensar a clínica psicanalítica como forma de resistência a esses processos de segregação.

Palavras-chave: Psicanálise; fala; clínica; segregação; linguagem.


ABSTRACT

This article rescues elements of what Lacan called "paradoxes in the relationship between speech and language". Aiming at the contemporary debate, this work draws to itself a triple purpose. First, to identify how, in modern times, the formalization of language allows to identify the insubstantial and no essential effect that is the subject. In a second point, the work considers that the formalization inherent to the scientific and capitalist civilization project can segregate this subject by reducing language to the informational paradigm and by alienating this subject to the consumer function. Finally, the paper propose that speech, in its dimensions of performance, social, recognition and otherness, is one way to think of the psychoanalytical clinic as a form of resistance to these segregation processes.

Keywords: Psychoanalysis; speech; clinical; segregation; language.


RESUMEN

En este artículo rescata elementos de lo que Lacan llamó "paradojas en la relación entre el habla y el lenguaje". Dirigido al debate contemporáneo, este trabajo atrae hacia sí una triple finalidad. En primer lugar, identificar la forma cómo el lenguaje moderno, al ser formalizado, identifica el efecto no sustancial o esencial que es el sujeto. En un segundo punto, aprender cómo la formalización inherente al proyecto de civilización científica y capitalista puede segregar ese sujeto por la reducción de lenguaje en el paradigma informacional y por la alienación del sujeto a la función de consumidor. Por último, proponer el habla en su dimensión performativa y de enlace, reconocimiento y alteridad, y así pensar la clínica psicoanalítica como una forma de resistencia a estos procesos de segregación.

Palabras clave: Psicoanálisis; habla; clínica; segregación; lenguaje.


 

 

Talking cure: há mais de cem anos, essa expressão ganharia notoriedade ao batizar o dispositivo psicanalítico que, ao mesmo tempo, apresenta a tríplice dimensão de método de investigação, corpo de saber e clínica. Não por acaso, no retorno que Lacan fará a Freud, a hipótese do "inconsciente estruturado como uma linguagem" se alojará como "cavalo de batalha" na tentativa de recuperar a especificidade da psicanálise perante aquilo que acabou por se converter, paulatinamente, numa nova forma de psicologia adaptativa, a ego-psychology. Se mais tardiamente — e de modo distinto — no ensino de Lacan, noções tais como "falasser" e "alíngua" radicalizam o lugar do verbo na psicanálise, já nos anos 1950 podemos localizar importantes considerações sobre a linguagem para a psicanálise.

Tendo como pano de fundo esse movimento e contexto teórico-histórico, o presente artigo teve como objetivo apreender alguns elementos que lancem luz sobre aquilo que Lacan chamou, em seu "Discurso de Roma", de "paradoxos na relação entre fala e linguagem". Segundo pensamos, tal resgate torna possível isolar relevantes contribuições para as intervenções do psicanalista ante alguns processos contemporâneos de objetalização advindos da civilização técnico-científica. Importa-nos, assim, recolocar certas questões: que funções teriam a fala e a linguagem para a psicanálise? Em que reside o que Lacan chamou de paradoxos entre esses termos? Como a consideração por essas esferas "informa" a prática — clínica e política — do psicanalista? São questões como essas que nosso trabalho buscará rastrear nas páginas que se seguem.

 

1 PARADOXOS E OBJETALIZAÇÕES

Na década de 1950 do século passado, a Sociedade Parisiense de Psicanálise, instituição da qual o Dr. Lacan fazia parte há não muito tempo, punha-se a cindir (ROUDINESCO, 1994, p. 84). Como herdeira legítima da Associação Internacional de Psicanálise (International Psychoanalitycal Association – IPA), esse braço imperioso do freudismo na França perderia, de uma só vez, psicanalistas da estatura de Jacques Lacan, Daniel Lagache e Françoise Dolto. Sob a perspectiva de Lacan, dois teriam sido os principais elementos que dispararam a cisão: a burocratização na formação do analista e na condução das análises, e o apagamento dos fundamentos linguageiros da psicanálise — em pró da padronização da mesma.

No contexto conjurado por essas cisões e críticas, Lacan profere seu inflamado discurso na "cidade eterna", cujo acolhimento pouco entusiasmado viria dar o tom de outra ruptura em sua história. Outrora, uma cisão semelhante — daquela vez entre a psiquiatria francesa clássica e a psicanálise — lançara o então jovem psiquiatra Lacan ao discurso analítico.1 Agora, imbuído do desígnio de retornar a Freud, num importante congresso em que se encontrava na presença de psicanalistas de diversos países, Lacan não se furtara a dirigir, a seus colegas, a seguinte pergunta:

Método de verdade e desmistificação das camuflagens subjetivas, manifestaria a psicanálise uma ambição desmedida ao aplicar seus princípios a sua própria corporação, isto é, a concepção que tem os psicanalistas de seu poder junto ao doente, de seu lugar na sociedade dos espíritos, de suas relações com seus pares e de sua missão de ensino? (LACAN, 1953/1998, p. 242).

Nesse Discurso, Lacan destacara ao menos duas esferas de dificuldades na sustentação e realização do sujeito pelo discurso analítico, esferas essas que, como veremos, tocam não apenas em fundamentos técnicos da psicanálise, mas que implicam, sobretudo, o que se decanta desse discurso nos termos de uma ética.

À primeira esfera, estavam concernidas aquelas aproximações clínicas que dedicavam demasiado valor ao registro Imaginário, eixo de semelhança, imagem e analogias que, antes de possibilitar antever sua articulação como linguagem, mergulhavam a psicanálise num quadro não menos fantástico e intricado que aqueles de autoria de Hyeronimus Bosch (LACAN, 1948/1998, p. 100 e 108). Se a dança das significações e projeções possibilitava despertar o interesse e a consideração pelas formações imaginárias da clínica psicanalítica, essa, de forma alguma, possibilitava apreender os fundamentos que norteavam e davam a essa clínica sua consistência e real dimensão. A psicologia do ego — de inspiração anglo-saxã, desenvolvida sob os auspícios de analistas imigrados para o "novo mundo" durante as grandes guerras — acrescentaria, a esse quadro, uma série de diretrizes normativas que punham em xeque a alteridade radical do inconsciente, predicado que sempre caracterizou a concepção psicanalítica da vida psíquica.

Paradoxal e ironicamente, esse modo de apropriação dos conceitos da descoberta freudiana consistia, simplesmente, em abolir a mesma, e isso no que ela tinha de mais original, a saber, a ruptura que permitia efetuar com relação às abstrações burgo-modernas de autonomia e liberdade da consciência, do eu e do indivíduo. As consequências clínicas, inerentes a essa posição, não decorreriam menos problemáticas: caracterizava o manejo clínico inspirado por essa direção de tratamento, o caráter dual, de two-body’s psychology, em que o aspecto de disparidade imanente ao inconsciente, uma vez excluído, deveria, de fato, excluído permanecer.

Em seu lugar, deixado vazio não pelo corte que deveria operar, mas pelo desconhecimento que era seu motor, restava a identificação com a pessoa do terapeuta, ou com o supereu adaptado do analista, referências últimas daquilo que deveria ou não concernir à "realidade".

O discurso analítico enfrentava, ainda, uma segunda esfera de dificuldades, em seu desígnio de alocar, na cultura, as condições de emergência de um sujeito. Tal ordem de fatores consistia nas incidências, para a civilização, do modo moderno de operação das ciências. De fato, esse segundo conjunto nada ficava a dever ao primeiro — a apropriação da psicanálise por qualquer espécie de "psicologia do eu" — em seu aspecto paradoxal. É que, se essa nova ordem de saberes fundava na cultura uma série de possibilidades ao desatrelar o significante da imagem, do puro intuitivo e de sua ligação com o estritamente empírico, não é menos verdadeiro que, devido ao anseio por univocidade e não ambuiguidade — via formalização matemática —, esse modo de operar concorria, também, para o avanço de uma verdadeira exclusão de muitas das possibilidades anteriormente criadas. Dentre essas últimas, encontram-se, certamente, a estrutura da fala e o sujeito, efeitos que o dispositivo psicanalítico, por sua estrutura e posição, permitia apreender. Assim, quando a ciência matematizada toma de assalto a dimensão da linguagem, transparece a complexidade que a modernidade imprime a esse ser falante que é o homem. Estamos, pois, perante um caso particular daquilo que Lacan chamara, em 1953, de "paradoxos" (LACAN, 1953/1998, p. 281) para o sujeito, da relação entre a fala e a linguagem. Podem-se depreender, em torno desses paradoxos, dois extremos: "à medida que a linguagem se torna mais funcional, ela se torna imprópria para a fala e, ao se tornar demasiadamente particular, perde sua função de linguagem" (LACAN, 1953/1998, p. 300). Detenhamo-nos, agora, no exame mais detido de alguns dos elementos presentes nessa complexa afirmação.

Com efeito, na alocução de Roma, Lacan enumera esses "paradoxos" na quantidade de três:

1. a loucura, em que o falante, em uma linguagem petrificada, parece antes ser falado do que falar;

2. o sintoma neurótico, fala que, embora estruturada, encontra-se aprisionada sob o véu de Maia do recalque; e

3. a possibilidade, fundada na modernidade, de uma objetivação do discurso do falante.

No que concerne ao nosso artigo, nos ateremos, aqui, ao terceiro paradoxo.

 

2 INCIDÊNCIAS DA CIÊNCIA E OBJETIVAÇÃO DO DISCURSO DO FALANTE

As relações entre o falante e a linguagem, nos últimos séculos, sofreram uma verdadeira revolução. Se Koyré (1999) não deixou de ver nessa revolução um novo enquadre para o próprio pensamento, também a linguagem — assim como os saberes modernos a apreendem e utilizam — guarda grande discrepância com as concepções erigidas na Antiguidade, e em relação a sua apreensão intuitiva, vale dizer, tal qual esta se dá cotidianamente. Nessa última acepção, a linguagem é apreendida como utensílio a serviço do anseio humano, seja para nomear coisas, seja para se fazer compreender sobre um determinado assunto. Nesses casos, a relação entre, de um lado, o sinal ou a palavra e, de outro, um objeto ou sentido, dispõe-se em primeiro plano. Trata-se, aqui, pois, da dimensão semântica da linguagem, em sua faceta referencial ou designativa.

Não obstante, ocorre que, com o advento da ciência moderna — particularmente a partir do desenvolvimento de certos ramos da matemática —, tornou-se possível operar com os símbolos de modo eminentemente sintático, vale dizer, no que esses sinais, em suas relações intrínsecas, são regidos por constantes que prescindem tanto dos objetos designados quanto do sentido ordinário resultante de sua interpretação pelo falante. É esse aspecto da linguagem, por exemplo, que nos permite pensar a lógica matemática clássica como topic neutral e a dar um tratamento formal aos fenômenos naturais de modo a explicitar as leis que os regem e os determinam, indo muito além de uma simples experiência particular. Deveu-se, verdadeiramente, à introdução dessa sintaxe no real (via algoritmos, quantificação etc.) — e não às noções de medição ou quantidade, mais empíricas — o grande salto que a ciência alçou nos últimos séculos.

No que nos interessa mais estritamente, tal advento, para o homem, não pôde deixar de ter uma grande consequência: essa sintaxe, a dimensão simbólica ou estrutural ao incidir sobre o falante, aloja, numa dimensão de linguagem, o efeito não substancial que é o sujeito. E como o homem, a partir da modernidade, se posicionará perante as incidências que essa estranha esfera eminentemente sintática da linguagem lhe impõe?

Em verdade, é sabido que, na absoluta maioria das vezes, tal questionamento nem ao menos vem a ser, pelo falante, colocado. Se esse tipo de constatação não resulta em surpresa, o mesmo não ocorre quando a pergunta insiste, de um modo ou de outro — mesmo à revelia daquele em que habita — em se apresentar. Frente a isso, o dispositivo analítico não pode deixar de reconhecer, no impasse de uma questão que persevera, o nicho de sua operação.

Curiosamente, o dirigir a palavra a um analista — tentativa do falante de integrar certos traços que o impedem de ser Um — é, ao mesmo tempo, a condição de possibilidade de uma análise para o neurótico e o berço maior de sua resistência a advir enquanto sujeito. Lacan faz observar que, ali, no momento da chegada do paciente, em seu pedido de análise, ele busca, sem se dar conta, realizar "a alienação mais profunda do sujeito da civilização científica" (LACAN, 1953/1998, p. 282): ele fala de si como um eu e se dispõe — a despeito da morbidez de tal posição — como um objeto.

Ora, se estamos, como pontuara Miller — que parafraseia Robert Musil —, na era do "homem sem qualidades", em que tornamo-nos "unidade contável e comparável", reduzidos sob "a ação do significante-mestre sob sua forma mais pura, mais estúpida: o número 1" (MILLER, 2004, p. 2), é pela inclusão maciça nessa formalização que se encontra o ponto de interseção entre capitalismo e ciência. Como pontuara Oliveira (2004, p. 21), "é aqui que se mostra, de modo mais preciso, a total compatibilidade entre ciência e capitalismo: ambos fazem contas"; se "a mais-valia é contabilizada pelo capital", esse discurso "reduz tudo a valores. O próprio trabalhador torna-se, aí, apenas unidade de valor" (OLIVEIRA, 2004, p. 21). Como a ciência, o discurso capitalista é corresponsável pela segregação do sujeito da enunciação ao reduzi-lo a sujeito do enunciado, operando uma verdadeira Verwerfung, rejeição que terá uma série de efeitos sobre os sujeitos:

[...] o que distingue o discurso do capitalista é isto: a Verwerfung, a expulsão, o rechaço fora de todos os campos do simbólico, com o que eu já disse que há de consequência. O rechaço de quê? Da castração (LACAN, 1971-2, lição de 6 de janeiro).

Todavia, veiculando o apagamento do enigma posto pela linguagem por meio do sujeito — pois que, como dizia Lacan, "o que me constitui como sujeito é minha pergunta" (LACAN, 1953/1998, p. 301) — o projeto científico oferece outro tipo de resposta. Trata-se, de fato, do "conforto" conferido pela redução da linguagem ao ideal de uma comunicação unívoca e da alienação do falante nesta como um de seus objetos.

Mas, uma saída se oferece ao sujeito para a resolução desse impasse que delira em seu discurso. A comunicação pode se estabelecer para ele, validamente, na obra comum da ciência e nas utilizações que ela ordena na civilização universal; essa comunicação será efetiva no interior da enorme objetificação constituída por essa ciência e lhe permitirá esquecer sua subjetividade. Ele colaborará eficazmente com a obra comum em seu trabalho cotidiano e povoará seu lazer com todos os encantos de uma cultura profusa, que, do romance policial às memórias históricas, das conferências educativas à ortopedia das relações de grupo, dar-lhe-á meios de esquecer sua vida e sua morte, ao mesmo tempo que de desconhecer numa falsa comunicação o sentido particular de sua vida (LACAN, 1953/1998, p. 283).

A consideração por essa dimensão do "conforto" em relação ao mal-estar, quimera ofertada pelo ideal de civilização científica, dispõe, segundo pensamos, uma consequência clínica relevante. Ao contrário do que, a princípio, se poderia imaginar, essa objetalização do discurso do falante não implica apenas na rejeição ou no apassivamento em termos de subjetividade: via aquilo que Lacan chamou de "conforto" e do comércio de gadgets, há um verdadeiro "suborno" do sujeito em sua relação com o desejo; sua colaboração eficaz na "obra comum da civilização universal" lhe permite "esquecer sua vida e sua morte"; povoando seu "lazer com todos os encantos de uma cultura profusa", essa rendição lhe permite, ao mesmo tempo, "desconhecer numa falsa comunicação o sentido particular de sua vida" (LACAN, 1953/1998, p. 283).

Se a apropriação da linguagem pelo discurso científico a reduz, mediante o imperativo de univocidade, à sua função informativa, a particularidade que se encontra envolvida nesse questionamento que é o sujeito — assim como este se atualiza no dispositivo analítico — permite tocar a fala em um aspecto bastante diverso. Mas, o que a experiência psicanalítica possibilita discernir desde a função que lhe é vital, a fala?

 

3 FALA, LINGUAGEM E SUJEITO NA EXPERIÊNCIA ANALÍTICA

Paradoxalmente, Lacan reconhece que a psicanálise opera justamente sobre o sujeito foracluído da ciência. As relações entre psicanálise e ciência incluem, assim, uma Aufhebung — superação com conservação — dialética. Tal relação tem, por certo, uma série de implicações.

Uma psicanálise erige-se como "experiência estruturada", vale dizer, não tem como referência uma vivência pura, inefável, algo intocado pelo significante. Também não é uma experiência aquém de seu contexto na cultura, uma vez que, tal como se apresenta — e é isso que, durante este tópico, estivemos todo este tempo a sugerir — este momento não está desatrelado das incidências da primazia dos saberes científicos.

Uma psicanálise é uma experiência do inconsciente, e, como tal, articulada em elementos discretos por certas constantes que lhe são imanentes. Não é outra coisa, senão isso, o que Lacan busca asseverar quando afirma se tratar, em psicanálise, de um campo de fala e de linguagem. Isso porque é a relação dessa sintaxe com o falante a "outra cena" em que adentra Freud, ao acolher em sua escuta os sonhos, as fantasias neuróticas e o delírio na psicose. Sua descoberta incorre em apreender essas formações e suas consequências para o advento do sujeito, formações essas articuladas de tal forma que não podem ser reduzidas ao estritamente empírico sem, contudo:

1. deixar de serem regidas por leis; e

2. de ter desdobramentos na vida concreta do falante.

Os fenômenos inconscientes, tais quais se apresentam em uma análise, concernem a essa "sintaxe que habita o falante", que se impõe à fala à revelia da consciência. De fato, alguns anos mais tarde, em seu seminário sobre as psicoses, dirá Lacan que:

A dimensão até o presente elidida na compreensão do freudismo é a de que o subjetivo não está do lado daquele que fala. É algo que reencontramos no real. [...] O subjetivo aparece no real na medida em que temos a nossa frente um sujeito capaz de se servir do significante, do jogo significante (LACAN, 1955-56/1988, p. 213).

Com efeito, esse aspecto sintático do inconsciente freudiano — que, de forma real e fugidia se articula em suas leis próprias e modula a existência do sujeito — inflige ao falante o que Freud chamara "terceira ferida narcísica": o "eu" não é senhor da fala ou da linguagem, mas somente função de shifter ou, ainda, a imagem evocada pelo significante, no que esse estrutura a relação do eu com o semelhante. Há, nesse sentido, uma ruptura com a concepção intuitiva das funções da fala e da linguagem tal qual são cotidianamente concebidas.

Há pouco chamávamos atenção para o fato de serem tratadas, no dia a dia, como uma simples ferramenta a serviço do falante. Entretanto, a Psicanálise, assim como as disciplinas científicas reunidas sobre o predicado "estrutural" — como é o caso da linguística moderna e da antropologia de Lévi-Strauss — propuseram uma concepção de linguagem que, no coração mesmo da existência do homem, se articulava para além de sua consciência e determinava, por essa articulação, várias das escolhas tidas até então como livres ações ou, ao menos, como "motivos" para as ações do espírito. Se esses campos de saber tinham em comum a referência ao saber inconsciente — e nisso é impossível desconsiderar a primazia da descoberta freudiana — algo particularizava, entre esses discursos, a psicanálise.

É exatamente esse algo que, se nos ativermos ao excerto do seminário de Lacan há pouco destacado por nós, poderemos sublinhar. Trata-se do seguinte trecho: "O subjetivo aparece no real na medida em que temos a nossa frente um sujeito capaz de se servir do significante, do jogo significante" (LACAN, 1955-56/1988, p. 213).

Vemos, nesse dito, que, uma vez que nos encontremos concernidos ao campo analítico, não se trata, em absoluto, de determo-nos exclusivamente na esfera do "jogo significante". Isso porque, embora seja a intervenção desse jogo de sinais aquilo que torna possível o surgimento do sujeito, a psicanálise, por sua dimensão ética, apenas pode ter como direção a aposta, no falante, de uma assunção responsável dos atos, das escolhas e das modulações pulsionais que lhe vêm da linguagem. O sujeito só pode ser, assim, o efeito de apropriação da linguagem que assalta o falante, efeito impossível de ser reduzido ao sintático tal qual a comunicação científica, pela via do escrito, oferece seu modelo mais acabado.

Essa sutil opacidade coloca como lugar do sujeito na linguagem não o campo da sintaxe pura — saber articulado que se propõe verdadeiramente a andar sozinho —, e sim aqueles fenômenos nos quais a suposição de um alguém, naquele tropeço, sonho, delírio, ato ou modo de gozar se faz necessária:

Há, com efeito, algo radicalmente inassimilável ao significante, é, simplesmente a existência singular do sujeito. Por que será que ele está ali? De onde ele sai? Que está fazendo ali? Por que vai desaparecer? O significante é incapaz de dar-lhe a resposta, pela simples razão de que ele o coloca simplesmente "além-da-morte". O significante o considera já como morto, ele o imortaliza por essência (LACAN, 1955-56/1988, p. 205).

Certamente, ao alienar-se ao significante, é como morto — entidade reduzida ao nome que lhe serve de lápide — que o falante jogará o carteado que é sua existência. É fato que o neurótico, por mais que trabalhe tendo a alienação como sua direção, jamais a atinge por completo. O tipo de resposta que podemos agrupar sobre o título de neurose consiste, em verdade, tanto na inferência de que há um alguém que se presentifica naqueles fenômenos que escapam e insistem quanto na de que esse alguém é um outro, que sabe sobre o neurótico e que responderá, por seu saber, em seu lugar. Seja pela redução do sujeito da enunciação — que por meio da palavra inscreve, no real, uma diferença — ao sujeito do enunciado — o eu objetivado —, seja, ainda, pelo suborno pulsional fornecido por seus gadgets, essa parece ser a utopia do projeto científico.

Não obstante, o que a fala que se presentifica no dispositivo analítico nos permite apreender é que esse outro, correlato de um descompletar da continuidade da existência do homem moderno, não coincide com uma pessoa. Trata-se de um outro radicalmente Outro, posto pela estrutura da própria fala, na qual o sujeito — e não apenas um eu — recebe seu lugar no instante mesmo da enunciação, no retorno dos significantes que esta presentifica sobre aquele que fala.

Tal estrutura reduplica, de fato, a estrutura da significância na linguagem, na qual o sentido é apenas efetivamente disposto pelo efeito de retroação que um significante exerce em relação ao outro. Assim, dado um universo de discurso, o que retorna sobre o falante na frase "Tu és meu filho" é "Eu sou teu pai". É somente a posteriori, a partir do aparecimento do segundo significante, por uma coerção sintática, que o primeiro e o segundo sinais terão estipuladas suas possíveis interpretações.

Desse modo, o aforismo lacaniano de que "toda fala exige uma resposta" (LACAN, 1953/1998, p. 248) tem, em nossa apreensão, ao menos três importantes implicações:

1. toda fala toca na fundação, pela enunciação, deste lugar que é o Outro — posto que esse lugar não coincide com uma pessoa concreta e específica;

2. dessa fala o falante obtêm, se assentir com uma resposta afirmativa, o efeito de retroação que é a queda do significante que representa o sujeito; e

3. tal queda tem, na posição do psicanalista, sua condição de existência, visto ser sua posição ética a de apostar no advento de um sujeito que, como tal, é correlativo à assunção de uma responsabilidade, de um "eu era (n)isso".

Nessa fala no real — independente da consciência do falante por ser antes, e mesmo a revelia dela, já articulada — nesse "isso fala", cabe a distinção de três diferentes registros: o real, o simbólico e o imaginário.

Comecei por distinguir as três esferas da fala como tal. Vocês se lembram que podemos, no interior mesmo do fenômeno da fala, integrar os três planos, o do simbólico, representado pelo significante, o do imaginário, representado pela significação, e o do real [...] (LACAN, 1955-56/1988, p. 78).

Decomponhamos, pois, essa citação, bastante condensada de informações. Há pouco pontuamos o quanto, desde a ciência moderna, passou-se a veicular uma primazia do sintático em relação ao semântico. Afirmamos, por exemplo, que o elemento discreto — ou seja, contável — da sintaxe, pôde se articular em estrutura independentemente de sua interpretação ou dos objetos que, no mundo dos referentes, ele poderá discriminar.

Pois bem, esse elemento de sintaxe — sinal ou símbolo no sentido moderno — em sua relação com o efeito sujeito, é do que trata Lacan quando fala sobre "significante".

O significante pode estender-se a muitos elementos do domínio do sinal. Mas o significante é um sinal que não remete a um objeto, mesmo sobre a forma de rastro, embora o rastro anuncie, no entanto, seu caráter essencial. Ele é também o sinal de uma ausência. Mas, na medida em que ele faz parte da linguagem, o significante é um sinal que remete a outro sinal, que é como tal estruturado para significar a ausência de outro sinal, em outros termos, para se opor a ele num par (LACAN, 1955-56/1988, p. 192).

Esse termo — ressurgido da areia dos tempos do estoicismo —, na teoria forjada por Ferdinand de Saussure, receberá, em Lacan, uma conotação um bocado diferente daquela que confere o linguista — que de fato foi o primeiro a merecer esse predicado — de Genebra. Se o significante lacaniano não coincide, em absoluto, com a concepção genebrina, não pode deixar de resultar claro que isso é mais verdadeiro na medida em que, embora se interessem por aspectos estruturais da linguagem, linguística e psicanálise guardam uma diferença radical: enquanto ética, a psicanálise tem a direção de considerar, naquilo que se pretende a "andar sozinho" — a língua — a dimensão do tropeço e a suposição de um alguém, efeito de comprometimento excluído como tal pela ciência, que é o sujeito.

Para Lacan, antes de ambicionar ser, de fato, uma ciência linguística — combinatória que de modo algum pode, em última instância, excluir totalmente uma axiomatização de sentenças provenientes das ciências ditas naturais — a "psicanálise devia ser a ciência da linguagem habitada pelo sujeito. Na perspectiva freudiana, o homem é o sujeito preso e torturado pela linguagem" (LACAN, 1955-56/1988, p. 276). Há, logo, nesse discurso, que é o analítico, o compromisso com o efeito sujeito, no que esse é causado pela verdadeira impossibilidade de se fazer capturar pelo puro "jogo do significante".

O sujeito se atualiza, então, no campo da realidade discursiva, ao descompletar a bateria significante; é na elisão dessa pura combinatória que poderá ele vir a se representar de forma a não coincidir seja com a expressão linguística, seja com o significado, seja com um objeto do mundo físico.

Mostra-se, aqui, a importância da consideração pelos fatores estruturais da linguagem, quer dizer, seus diferentes registros, entidades e modos de funcionamento. É que eles permitem apreender o sujeito, diferente:

1. do ser falante, ou pessoa que se põe a falar a um analista;

2. da imagem, na qual busca o homem moderno se alienar em sua relação com seus semelhantes;

3. do organismo vivo, que, em suas leis próprias, mostra-se estranho ao universo de discurso analítico; e

4. dos significantes, dispostos em uma cadeia, na qual o sujeito busca se fazer representar.

Desse modo, se há um ponto que exige da psicanálise o recurso aos diversos campos que se debruçam sobre a linguagem — em discussões que, como dissera Lacan em 1953, a psicanálise "só tem a se beneficiar" (LACAN, 1953/1998, p. 241) — esse ponto é um ponto cego, ou seja, a consideração pelo sujeito justamente como aquilo que se furta a esses campos.

Por outro lado, a apreciação dos fatores estruturais da linguagem permite atingir, com grande rigor, outras esferas de discurso que não apenas a fala em seu sentido estrito. Buscamos frisar, durante este capítulo, o quanto essa forma de articulação é privilegiada por poder propiciar a assunção responsável do sujeito em um ato de enunciação. Todavia, o recurso à estrutura permite, também, ao analista, dispor, num universo de linguagem, certos fenômenos que apenas podem ser apreendidos em sua relação com o inconsciente freudiano e de suas leis.

Além do verbal, o discurso inconsciente apresenta outros efeitos: "(...) e aqui entendo por discurso inclusive os atos, os encaminhamentos, as contorções dos fantoches presos no jogo e o primeiro é você mesmo" (LACAN, 1955-56/1988, p. 63).

Nesse verdadeiro paradoxo, para o sujeito, da relação entre fala e linguagem, reevocamos a objetalização promovida pelo projeto científico, em nome de um ideal absoluto de comunicação, que opera a exclusão de certos efeitos criados pela liberação do significante da imagem e do empírico. "Sujeito" e "fala" são alguns desses efeitos, passíveis de serem discernidos pelo dispositivo analítico. No que tange propriamente à fala, coube à escuta clínica desvelar, em sua estrutura, não seu aspecto informacional, mas, sim, seu estatuto evocativo e transferencial — no que essa funda um tipo radical de alteridade. Trata-se, aqui, do Outro, lugar da fala e da verdade, não coincidente com uma pessoa a ou b presente no campo da realidade.

No entanto, conforme reiteramos ao longo deste escrito, a linguagem formalizada, ou seja, reduzida a sistemas de sinais unívocos, avança — principalmente por meio da aliança entre ciência e capitalismo.

Esse avanço abrange esferas cada vez mais amplas da vida do falante dispensando-o, a partir da objetivação de seu discurso, de se fazer comparecer no efeito ético que é o sujeito, seja ao colocar-se como questionamento sob sua condição ou, ainda, como ato responsável. Nessa universalização do unívoco, à "medida que a linguagem se torna mais funcional, ela se torna imprópria para a fala (...)" (LACAN, 1953/1998, p. 300). Transparece, pois, nessa dobradiça que une capitalismo e ciência, os fundamentos da efetividade de modos de segregação que se caracterizam não pela simples exclusão, mas pela tentativa radical de alienar, sem restos, o sujeito sob determinados significantes, no que Lacan chamou de "campos de concentração".

 

4 À GUISA DE CONCLUSÃO

No rastro do que fizera Lacan nos anos 1950, destacamos, em nosso texto, algumas relações paradoxais entre fala e linguagem. Sublinhamos que ainda que a noção de "estrutura" e "leis da fala e da linguagem" venham a receber flexibilizações a partir de desdobramentos ulteriores da obra de Lacan, segundo pensamos, tal discussão conserva ainda hoje relevantes contribuições para o debate contemporâneo. Nesse ponto, revisitar as questões levantadas por Lacan nos anos 1950 a partir de nosso contemporâneo implica, dentre outros elementos, considerar, a partir da relação entre fala e linguagem, algumas incidências do projeto de civilização científico-capitalista sobre os sujeitos.

Uma dessas incidências é a objetificação pela redução do sujeito da enunciação ao enunciado. Deflagram-se, aqui, vários efeitos de alienação, desdobrados desde os patterns culturais, passando pela proliferação de rótulos via manuais psicopatológicos estatísticos, chegando até a domesticação das posturas até então críticas ao sistema, como a polarização de alguns movimentos sociais por posições identitárias que alijam cada vez mais a alteridade.

Outra consequência é a objetificação da economia psíquica: o gozo de gadgets satura os sujeitos, reduzindo o desejo ao campo do consumo. Tal enfatuação aumenta a segregação (se existir = consumir, proliferam "sem teto", "sem terra" etc.), epidemiza estados depressivos — dada a impossibilidade de experiência de luto e da falta, subsumidas pela busca do próximo objeto; e franquea passagens ao ato — ante a segregação e o não reconhecimento da alteridade, há a deflagração de violências, desengates e impetração de verdadeiros furos no tecido social.

Embora pouco redentor, o resgate da discussão tecida por Lacan no Discurso de Roma permite recolocar o debate das incidências clínicas e políticas da civilização científico-capitalista para o analista, o que acarreta verdadeira revalorização da clínica:

1. da fala, em sua dimensão de ato, reconhecimento, laço e encontro com a alteridade; e

2. no trabalho sempre singular sobre o gozo; tais são possíveis trincheiras ante processos cada vez mais globalizados de segregação.

Se Lacan evoca a "foraclusão" — banimento do simbólico e retorno no real, descoberto a partir da clínica da psicose — a propósito tanto do capitalismo quanto da ciência, talvez caiba também aqui a analogia com a posição ética do analista ante a loucura: ante esses outros avatares do foracluído, assim como no caso da psicoses, cabe aos analistas "não recuar".

 

REFERÊNCIAS

LACAN, J. I. (1948). A agressividade em psicanálise. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

_____. (1953). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: _____. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.         [ Links ]

_____. (1955-56) O seminário: livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.         [ Links ]

_____. (1971-2) O saber do psicanalista: seminário 1971-1972. Publicação para circulação interna. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 200-2001.         [ Links ]

KOYRÉ, A. Do mundo fechado ao universo infinito. São Paulo: Universidade de São Paulo, 1999.         [ Links ]

MILLER, J. A. A era do homem sem qualidades. In: Opção Lacaniana online, 1994.         [ Links ]

OLIVEIRA, C. Capitalismo e gozo: Marx e Lacan. Tempo da Ciência, v. 11, n. 22, p. 9-24, 2004.         [ Links ]

ROUDINESCO, E. Jacques Lacan - esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.         [ Links ]

 

Endereço para correspondência
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Santa Rosa, Niterói, RJ.
CEP: 24240-020.
E-mail: carloscosta.psi@gmail.com

Artigo recebido em: 29/07/2016.
Aprovado para publicação em: 31/10/2016

 

 

1 De fato, tal ruptura marcaria a fundação da Sociedade Francesa de Psicanálise, da qual, por algum tempo, Lacan viria a fazer parte.

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