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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.5 no.2 São Paulo  2013

 

Artigo

 

Contribuições da obra de Luis Marti-Santos para a psicoterapia

 

Contributions of the work of Luis Martin-Santos for the psychotherapy and psychopatology

 

Aportes de la obra de Luis Martins-Santos para la psicoterapía y psychopatología

 

Gustavo Alvarenga Oliveira Santos3

Universidade Federal do Triângulo Mineiro Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo apresentar as principais contribuições teóricas da obra psiquiátrica de Luis Martin-Santos para a psicopatologia e psicoterapia. Para tal foram descritos os principais conceitos nessas duas áreas . A fundamentação teórica de Martin-Santos é diversa, mas se insere especialmente no campo da fenomenologia e das filosofias da existência, além de ter absorvido, de forma crítica, a psicanálise. No entanto, as contribuições de Jean Paul Sartre são mais patentes em seus escritos sobre psicoterapia, bem como as de Dilthey e Jaspers nos de Psicopatologia. O autor contribui para a compreensão da doença mental na psicopatologia estabelecendo quatro níveis de compreensão: estática, dinâmica, existencial e profunda, além de ter criado o conceito de psicomorfia. Já para o campo da psicoterapia, redimensiona do ponto de vista existencial, a relação transferencial e o processo de cura. Propõe três tipos de manifestação da angústia que se daria por terrores: cósmico, do outro e trágico. A superação desses terrores através da transferência levaria à cura do paciente, que na sua concepção é o aumento de liberdade e possibilidades de ser-no-mundo. O texto conclui que a obra de Martin-Santos, um autor desconhecido no Brasil, traz contribuições profícuas e interessantes aos estudos psi e à clínica da saúde mental.

Palavras-chave: Martin-Santos; psicoterapia; psicopatologia; fenomenologia.


ABSTRACT

This article aims to present the main theoretical contributions of the psychiatric work of Luis Martin-Santos for psychopathology and psychotherapy. To do so was described were the main concepts described in these two areas. The theoretical framework of Martin-Santos is diverse, but falls especially in the field of phenomenology and philosophies of existence, and has absorbed, critically, psychoanalysis. However, the contributions of Jean Paul Sartre are more patents in his writings on psychotherapy, as well as Dilthey and Jaspers in Psychopathology. The author contributes to the understanding of mental illness in psychopathology establishing four levels of understanding: static, dynamic, existential and deep, and has created the concept of psicomorfia. As for the field of psychotherapy, resizes the existential point of view, the transference relationship and the healing process. Proposes three types of manifestation of anxiety that would occur by terrors: cosmic, and the other tragic. Overcoming these terrors through the transfer would lead to the cure of the patient, which in his view is the increased freedom and possibilities of being in the world. The text concludes that the work of Martin-Santos, an unknown author in Brazil, brings fruitful and interesting contributions to psi studies and clinical mental health;

Keywords: Martin-Santos; psychotherapy; psychopathology; phenomenology.


RESUMEN

Este texto tiene el objetivo de presentar las principales contribuciones teóricas de la obra psiquiátrica de Luis Martin-Santos para la psicopatología y psicoterapia. Para ello fueron descriptos los principales conceptos de los dos campos. La fundamentación teórica de Martin-Santos es variada, aunque esté inserta especialmente en el campo de la fenomenología y en las filosofías de la existencia, además del psicoanálisis. Sin embargo las contribuciones de Jean-Paul Sartre son más relevantes en sus escritos respecto a psicoterapia, así como las de Dilthey y Jaspers los son para la Psicopatología. El autor contribuye para la compresión de la enfermedad mental planteando cuatro niveles de compresión: estática, dinámica, existencial y profunda, además de haber creado el concepto de psicomorfia. En el campo del psicoterapia, redimensiona desde un punto de vista existencial, la relación trasferencial e el proceso de cura. Propone tres tipos de manifestación de la angustia que se dan por los llamados terrores: cósmico, del otro y trágico. La superación de estos terrores por la relación transferencial llevaría a la cura del paciente, que en su concepción es el aumento de la libertad y posilibadades del ser-en-el-mundo. El texto concluye que la obra de Martin-Santos, un autor desconocido en Brasil, suministra contribuciones proficuas e interesantes para los estudios psi y a la clínica de la salud mental.

Palabras-clave: Martin-Santos, psicoterapia, psicopatología, fenomenología.


 

 

Introdução

Luis-Martin Santos (1924-1964) é um autor praticamente desconhecido do público brasileiro, apesar de sua importância na psiquiatria e psicopatologia de língua espanhola. Além de ter sido um importante autor para o mundo psi, escreveu um dos mais prestigiados romances da literatura espanhola: Tiempo de Silencio. Foi também um importante militante político tendo participado ativamente da resistência à ditadura espanhola. Este texto tem por objetivo apresentar em resumo os principais conceitos da obra psicológica do autor e suas contribuições para os campos da psicopatologia e da psicoterapia.

Luis Martin-Santos nasce em Larraché, Marrocos, onde seu pai, um cirurgião militar, encontrava-se em missão. Quando tinha 4 anos a família se mudou para a cidade de San Sebastian, pais Vasco, Espanha. Nessa cidade seguiu a carreira médica forçada pelo Pai, tendo se especializado em cirurgia. Segundo o depoimento de seu irmão em sua biografia o autor sempre teve um gosto maior pela literatura, fato esse que contribuiu para que no ano de 1948, influenciado por um amigo, Félix Letemendía, busque a especialização em psiquiatria no Departamento dirigido por Lopez Ibor em 1948 em Madrid. No ano de 1950 frequenta o curso de verão de Kurt Schneider em Heidelberg na Alemanha e daí herda boa parte das bases fenomenológicas que irá orientar sua obra psiquiátrica, embora já tenha sido um importante leitor de Sartre, tendo esse não apenas influenciado sua obra literária, mas também sua vida pessoal – um dos seus três filhos se chamou Juan Pablo, o que segundo seu biógrafo, foi sem dúvida uma homenagem ao autor francês. Sua morte foi prematura, aos 40 anos de idade, no ano de 1964, após um acidente de automóvel, quando voltava de Madrid rumo à sua cidade de residência San Sebastian.

Para a apresentação aqui proposta dividiremos as contribuições do autor à Psicopatologia e à Psicoterapia, mesmo entendendo que essas se entrecruzam e são complementares. De todo modo, centraremos em três obras que serão descritas em resumo ao longo desse texto.

 

2. AS CONTRIBUIÇÕES DE MARTIN-SANTOS PARA A PSICOPATOLOGIA

A tese doutoral de Martin-Santos intitulada La influencia del pensamiento de Guillermo Dilthey sobre la psicopatologia general de Karl Jaspers y sobre la posterior evolución del método de la comprensión en psicopatología em 1953 foi orientada por Lain Entralgo, autor espanhol de grande repercussão em pesquisas sobre história da medicina. A tese foi publicada em forma de livro no ano de 1955 sob o título Dilthey, Jaspers y la comprensión del enfermo mental. Além dessa obra, sua produção no campo da psicopatologia foi vária e interessante do ponto de vista das contribuições da Fenomenologia filosófica para ela; Martin-Santos dedicou-se a escrever sobre Dilthey, Jaspers, Sigmund Freud, Martin Heidegger e Jean Paul Sartre, e suas propostas conceituais beberam dessas diversas fontes, embora sempre se mantiveram no escopo fenomenológico e existencial e um acento mais sartreano.

Nesse capítulo vamos resumir os principais conceitos de duas obras: Dilthey Jaspers y la comprensión del enfermo mental (1955) e o artigo Fundamentos teóricos del Conocer Psiquiátrico (1955) , ambos publicados em 1955, embora o primeiro, como já dito, tenha sido redigido em 1952. As obras são complementares e tratam em essência sobre o mesmo tema: a compreensão dos enfermos mentais.

Em seu livro publicado a partir de sua tese de doutorado, Martin-Santos demonstra o modo como a obra de Dilthey influenciou a de Jaspers, principalmente em sua obra maior: Psicopatologia Geral (1913). Para o que nos interessa, a conclusão da tese nos brinda com os três níveis da compreensão do doente mental, tema a que o autor continuará se dedicando ao longo de sua carreira.

O doente mental pode ser compreendido em três níveis e só o terceiro pode se legitimar como propriamente psicológico. A primeira forma de compreensão é a Lógica ou Racional: própria do pensamento científico natural, que pode dar ao psiquiatra apenas um indicativo da doença mental, caso algo no discurso do paciente soe como irracional e precise ser averiguado, embora isso não seja conclusivo, já que o paciente pode estar mentindo ou dissimulando um discurso irracional.

Outro nível de compreensão é o Analógico-Simbólico: próprio da psicanálise e das correntes antropológicas, esse tipo de compreensão entende o doente com base em uma teoria subjacente que visa buscar analogias entre o seu discurso e o escopo teórico escolhido. Não há aqui uma compreensão propriamente psicológica, mas um pensamento dedutivo que visa encaixar os pressupostos teóricos em um fenômeno dado. Esse modo de compreensão será revisto pelo autor no decorrer de sua obra quando ela se mostra mais próxima à psicanálise e a análise existencial.

No terceiro nível de compreensão, denominado como Psicológico Propriamente Dito, Martin-Santos falará de duas formas complementares; o modo estático, quando a vivencia individual é captada em sua forma e conteúdo e o modo dinâmico, que é a compreensão que se obtém ao longo do tempo e do discurso do paciente e que possibilita entender os nexos motivadores e agregadores de seu discurso.

Como dito anteriormente a questão da compreensão dos doentes mentais é colocada por Martin-Santos em outro trabalho, quando ele trata desse tema de forma mais abrangente. Em seu artigo: Fundamentos Teóricos del Conocer Psiquiátrico (1955) o autor propõe quatro níveis de modos de compreensão e aqui estão incluídas e diferenciadas a compreensão desde o ponto de vista psicanalítico e existencial.

Assim, segundo o autor os modos de compreensão são o Estático, derivado de Husserl principalmente o identificado com a obra Ideas II, que segue o mesmo modelo de seu esquema anterior; Dinâmico, seguindo as contribuições de Dilthey nas quais vivências podem se captadas desde sua evolução e seus motivos conectores tal qual foi também proposto em sua tese de doutorado; Profunda, desde as contribuições teóricas da psicanálise, que se embasa na dinâmica pulsional do homem e Existencial, desde os existenciários de Martin-Heidegger. Dessa forma, na compreensão da doença mental, o psiquiatra deveria estar atento aos diversos níveis de compreensão e observar as rupturas em cada um deles, pois ela seria indicativa das enfermidades mentais no discurso do paciente.

Seguindo esse modelo Martin-Santos propõe uma hierarquia dos níveis de compreensão e estabelece a compreensão estática como a mais superior em nível hierárquico, sendo seguida pela dinâmica, existencial e pulsional. O valor hierárquico atribuído por ele se deve ao quanto um modo de compreensão pode ser rigoroso ou frouxo, de acordo com o seu alcance na relação com o doente mental. Do mesmo modo, os modos de compreensão de acordo com seu nível hierárquico são menos ou mais afetados por alterações biológicas. Os modos inferiores são menos afetados e os superiores mais. Um exemplo: uma alteração perceptual como as alucinações verdadeiras afeta a compreensão estática do psiquiatra afetando todos os outros modos de compreender. Já um conflito existencial pode não ter nenhuma participação biológica e deixar intacto os outros modos de compreensão. Assim, Martin-Santos (1955) propõe que as incompreensões ou rupturas na compreensão são indicativas dos tipos de patologias mentais:

1. Enfermedades con ruptura del cumplimiento instintivo: se trata, ante todo, de las Neurosis (a las que hay de añadir las personalidades psicopáticas) 2. Enfermedades con ruptura de los estratos básicos de la existencia: se incluyen todas las Timosis. En primer lugar, las fases depresivas, maníacas y angustiosas. (A las que hay que añadir algunas graves neurosis y personalidades psicopáticas). En este grupo, la alteración afectiva se agrega a un incumplimiento instintivo. 3. Enfermedades con ruptura del desarrollo comprensivo: son los llamados procesos, ante todo el proceso orgánico. Además de la rotura del desarrollo, se alteran en ellas los afectos fundamentales y el cumplimiento instintivo. 4. Enfermedades con ruptura de la estructura de la vivencia: se trata de la Esquizofrenia en su sentido psicopatológico más puro. La esquizofrenia, además de su negatividad formal esencial, es un proceso, incluye alteración de los efectos fundamentales y presenta fallo del cumplimiento instintivo. (p. 142).

Assim, nas doenças com rupturas no modo de compreender estático, a estrutura da vivência é afetada, mas no modo de compreender dinâmico são as que apresentam rupturas no desenvolvimento compreensivo, as do compreender existencial tem a ver com os estratos básicos da existência e as da compreensão profunda, com os problemas relacionados às pulsões. Assim, as neuroses, as timosis, os processos orgânicos e as psicoses podem ser entendidas como rupturas na compreensão do médico na sua relação com o enfermo. No mesmo artigo Martin-Santos (1955) analisa a questão da origem da doença mental e aponta que a psiquiatria deve dar conta do problema da vida psíquica invadida pelo orgânico, e não apenas da vida psíquica, que é um problema concernente à psicologia. Segundo o autor todas as doenças mentais tem uma origem orgânica, no entanto: "en ninguna enfermedad psíquica la causa determina la totalidad de la vida psíquica enferma" (p. 28). Sendo a loucura o objeto da psiquiatria, o problema da doença mental é um conceito negativo, uma vez que "la locura no es sino ruptura, hiatus, vacío y oscuridad. Ruptura de la comprensibilidad, vacio de lo humano, oscuridad del sentido fallo de la libertad" (p.123). Desde essa compreensão o autor propõe o conceito de psicomorfía.

A psicomorfía alude ao fato de que a vida psíquica sempre se autoestrutura como que para manter uma parte saudável de si mesmo, quando é afetada pela doença orgânica. Desse modo os doentes mentais nunca perdem uma certa ordem de sentido cabendo ao psiquiatra entender a psicomorfia de cada paciente em particular, segundo Gonzáles de Pablo (1998):

Por tanto, para Martín-Santos, en la enfermedad habría una ruptura de la comprensión de la vida psíquica originada por una alteración cerebral orgánica, pero esa alteración no llevaría aparejada una destrucción del psiquismo, sino tan sólo una limitación, y sus restos podrían reconstruirse o, si se prefiere, sufrir una configuración psicomórfica, la cual podría ser a su vez abordada —esto es, comprendida—desde una serie de planos complementarios (p. 81).

Assim, a psicomorfia oferece ao psiquiatra e ao psicólogo um novo aporte, uma vez que eles podem compreender os efeitos das doenças orgânicas na vida psíquica.

Interessante notar que em três anos o autor incorpora a seus trabalhos teóricos as contribuições da psicanálise e do chamado movimento antropológico na psiquiatria de base fenomenológico-existencial. Em sua tese de doutorado nenhum desses movimentos merece destaque como modos de compreensão propriamente psicológicos. Por outro lado, os níveis de compreensão estáticos e dinâmicos, referidos em sua tese de doutorado como propriamente psicológicos são, em seu novo plano conceitual os que figuram superiores em uma escala hierárquica. De acordo com Lázaro (2009), a respeito da relação com o autor com a Psicanálise:

Sus referencias al freudismo son, en esta etapa inicial, superficiales, críticas y distantes, como era habitual en el ambiente académico en que se movía. Desde mediados de los años cincuenta va incorporando conceptos psicoanalíticos, lo que culminará en el libro póstumo Libertad, temporalidad y transferencia en el psicoanálisis existencial (p. 40).

As contribuições da psicanálise freudiana se mostram patentes na proposta de Psicanálise Existencial escrita por Martin-Santos em uma obra póstuma, sobre a qual iremos tratar no próximo capítulo.

 

3. AS CONTRIBUIÇÕES DE MARTIN-SANTOS PARA A PSICOTERAPIA

Outra contribuição importante de Martin-Santos foi no campo da psicoterapia e mais uma vez as fontes teóricas são varias, embora se centre no esboço de Psicanálise Existencial de de Jean Paul Sartre, esboçadas em O Ser e o Nada. Essas contribuições estão escritas no livro Libertad, temporalidad y transferencia en el psicoanálisis existencial: para una fenomenología de la cura psicoanalítica (1966).

Nessa obra Martin-Santos esboça que o método psicanalítico é um método privilegiado pois inaugura no Ocidente uma nova forma de relação humana. Para nosso autor, as ações humanas não podem ser compreendidas a partir da liberdade radical sartreana, mas o ser humano só pode ser compreendido a partir de seu próprio ser que é liberdade. Assim, embora a dimensão pulsional não possa ser negada, ela deve ser vista a partir da dimensão própria do humano na sua condição de ser livre. Segundo Martin-Santos (2004):

Lo que queremos hacer no es sino un examen y descripción existencial de los hechos que fácticamente ocurren en el transcurso de una cura psicoanalítica clásica concebida el modo freudiano. Solo de modo secundario señalaremos algunos aspectos técnicos que pueden derivarse de nuestro examen. Esto nos permitirá descubrir ciertos hechos "nuevos". A los psicoanalistas ortodoxos les afecta una cierta ceguera para las realidades que no se adaptar a su aparato teorético. También para ellos permanecen inconscientes – por utilizar su vocabulario – realidades que viven no téticamente en su práctica psicoterápica. Por último debemos señalar, desde ahora, que el pensamiento existencial que se utiliza en este trabajo es muy concretamente el de Jean-Paul Sartre, y que sólo de modo más indirecto nos inspiramos en otros filósofos de la existencia (p. 151).

A obra se divide em quatro partes: La presencia de la libertad en la cura psicoanalítica, la temporalidad en la cura psicoanalítica, la dinámica existencial de la transferencia y la psicoterapia como proceso dialéctico. Em todos essas a questão da liberdade, para além dos motivo e razões de ordem pulsional, é destacada, uma vez que em cada escolha e em todo ato psíquico está embutido o projeto original humano.

O autor se atém de modo especial à temporalidade, para ele a concepção linear de tempo não tem valor para a psicoterapia, por isso critica o modo como Binswanger descrevia seus casos em tom romanceado e temporariamente linear. Desde essa visão analisa três temas que se apresentam concomitantemente no processo de cura da clínica psicanalítica: as recordações, os produtos atuais e os movimentos afetivos. Trataremos de cada um deles no modo como se entrecruzam no movimento da cura que se dá no processo psicoterápico.

No recordar se presentifica aquilo que advém à consciência do paciente, sendo esta atividade uma das que possibilita a cura, uma vez que ao recordar o paciente descobre realmente quem foi e compreende que pode ser outro. Em geral, o recordar vai do mais atual até o mais remoto, ainda que esta ordem não seja a única, uma vez que ela depende da qualidade da relação transferencial estabelecida. As recordações mais importantes se dão espontaneamente, não são escolhidas voluntariamente, mas chegam à consciência e o sujeito é passivo em relação a elas. Elas cumprem duas funções: por um lado completam parcialmente a historia conhecida e por outro reestruturam o sentido dessas, além disso vem acompanhada de uma carga emocional que se dá no âmbito da transferência. Dessa forma, o sujeito se torna responsável na medida em que suas recordações assimilam novas formas de ser si mesmo e podem fazer compreensíveis as relações de sentido.

A cura ocorre fora da ordem da temporalidade cotidiana, ocorrendo na temporalidade vivida fluente. Nessa desvela-se as mudanças psíquicas e as distintas possibilidades de ser livre, tornando o sujeito responsável pelo seu próprio passado, pois nas neuroses o passado é vivenciado como algo obscuro e unitário, a temporalidade é imóvel e a justificativa vem sempre no modo do "eu não posso", precisamente porque o sintoma é de algum modo aceito pelo sujeito. Quando a cura possibilita ao sujeito uma distancia sobre o passado, ao recordar o sujeito enfrenta o dado, podendo assim se responsabilizar e escolher novas formas de ser.

No entanto, as recordações e sua assimilação à vida presente podem produzir angustia. Ainda que haja uma angústia universal, ontológica, o que interessa ao médico é aquela que se dá como forma de manifestação do sintoma. Assim a angústia pode se manifestar como real quando alguma ameaça vem de fora, como livre ou flutuante, quando se mostra sem estar relacionada com nada ou nenhuma situação, sendo essa a forma mais grave, comum nas psicoses, depressões e neuroses graves. Outra forma é a angustia em situação, própria da neurose e que surge em circunstâncias específicas de alguma patologia, como nas fobias, histerias e neuroses obsessivas.

A angústia de situação origina-se do passado e pode ser vivida mediante a recordação. Neste sentido Martin-Santos analisa três tipos de terrores primitivos da infância: o terror cósmico, que se dá relacionado às coisas no espaço, por exemplo ao abismo, escuro, silêncio e distancia; o terror ao outro, que se dá na relação com os outros, vividos como ameaçadores e o terror trágico, que se origina de situações de ruptura na história de vida, como perdas significativas.

Segundo Martin-Santos quando o sujeito recorda e assimila a situação geradora de angústia pode assim alcançar a serenidade, renunciando a falsa inocência da criança, graças à psicoterapia que a trouxe à consciência. As figuras parentais deixam de ser opressoramente cegas e podem agora ser vividas como simples figuras humanas limitadas e articuladas no mundo.

El neurótico deja entonces de compadecer al niño que sufrió la neurosis y puede aceptarlo comprensivamente: puede aceptar al niño que, a partir de su situación, eligió la neurosis entre otros posibles caminos. Sólo a través de esta aceptación se aclara el significado de la neurosis en cuanto que expresión concreta, histórica, del existir de un hombre. Y sólo más allá de esta aceptación, comienza a abrirse la nueva vida que se ha de realizar en el proyecto asumido de curación (Martín-Santos, 1964, p 233).

Assim, a cura psicanalítica é possível na medida em que as recordações aclaram o passado e possibilita o sujeito se tornar consciente dos terrores infantis trazendo maior liberdade. Nosso autor reconhece que na infância, as escolhas são mais estéticas do que éticas. Por outra parte, na vida adulta as escolhas éticas podem entrar em conflito com os projetos infantis uma vez que há que se eleger um projeto, assimilando-o às eleições passadas.

Uma questão importante para Martin-Santos, é como o terapeuta pode favorecer a cura do paciente e para isso ele utiliza-se do conceito psicanalítico de transferência, afirmando que só o seu adequado manejo pode possibilitar a tão almejada cura. . A transferência precisa ser clarificada do ponto de vista existencial, para isso se refere ao modo de ser-com proposto por Heidegger em Ser e Tempo e a leitura de Ludwig Binswanger deste existenciário quando desenvolve o conceito de relação dual. Para o autor suíço o modo dual pode ser entendido como o ser-com no amor e na amizade quando uma pessoa logra ser com o outro e consigo mesmo de forma plena e autêntica. Desde essa constatação Martin-Santos distingue as relações com os outros das relações com as coisas, apontando as diferenças no modo como essas se dão.

Na relação com as coisas, do ponto de vista da tecnologia, o homem pode se servir de sua expertise e assim manejá-las. As coisas respondem de acordo com sua natureza, mas não dialogam com o homem, dessa forma as coisas são amigas do homem, pois se adequam ao seu modo de ser. Já o outro, é para o homem outro mundo, um nada de significação, desse modo a relação com o outro implica em sua liberdade o que é angustiante. Pode-se tentar manejar o outro como coisa, mas isso se dá como um modo degradado de relação. A relação humana com o outro se estabelece pelo olhar, o amor essencial se dá pela via da comunicação, neste sentido onde essa não existe de modo pleno ou parcial está o modo de rutpura de sentido de compreensibilidade o que resulta nas enfermidades mentais.

Dessa forma a relação analítica pode lograr a cura do paciente, oferecendo um novo tipo de relação que deve possibilitar que o paciente estabeleça relações significativas com os outros. Para Martin-Santos (2004) a relação analítica está caracterizada pela forma não trivial que ela estabelece, sendo que nesse modo não há espaço para as máscaras sociais, segundo o autor:

Normalmente, la confidencia es impúdica. La confidencia se produce en las relaciones amistosas, en las relaciones amorosas, o bien cuando en las relaciones de dominio se pretende influir sobre el otro. En todos estos casos, quien cae en el impudor de mostrarse pretende lograr el reflejo de la desnudez ajena, o por lo menos conmover emocionalmente al otro movilizándolo así para sus fines. Nada de esto ocurre en el análisis. El analista debe permanecer fuera de la acción modificadora del sistema dinámica establecido (p. 242).

Além disso, a relação analítica, por não se situar no jogo dos olhares comuns onde a trivialidade, a vergonha ou mesmo a objetivação do outro é possível, consegue uma relação assimétrica o que não ocorre na relação amorosa, de amizade ou de tipo coisificante. O analista está no espaço incontrolado, escondido do olhar. Dessa forma a técnica analítica é provocação e espera, ou seja abstinente.

Assim, a postura do analista não deve ser sedutora para o analisando, mas uma espera que o leve a se decepcionar. A decepção primeira se dá pelo silêncio do analista que não responde ao pedido do paciente de resolução de seu problema, criando assim uma assimetria que coloca em marcha a dinâmica transferencial. Uma vez que o analisando encontra o analista em posição abstinente, ele tenta retira-lo dessa tentando que ele, o analista, ajude-o em suas dificuldades, nesse sentido, geralmente, o analisando perguntará sobre a imagem que o analista tem a respeito dele e buscará uma justificativa moral sobre o seu passado.

O analista permanecendo em abstinência defrauda no paciente uma perspectiva paranoica e suspeitosa a respeito dele e se essa é suportada pelo terapeuta a relação pode conseguir que o analisando se desprenda da visão idealizada de criança e assuma seu passado como parte de si mesmo. Ou seja, perca seu medo de que o outro desvele o seu mal, reconhecendo que o mal está em si mesmo. Por isso a transferência negativa pode romper com o círculo neurótico, pois o analista, recusando-se a jogar o jogo neurótico, provoca a agressividade que produz a falta de completude, fazendo com que o paciente busque outros modelos de ser-no-mundo. Dessa forma, o passado fica mais compreensível quando o analisando consegue compreender o processo transferencial, descobrindo que o que ele tentava fazer com o analista é da mesma forma como agia no seu passado neurótico, segundo Martin-Santos (2004):

En el momento en que la pauta de conducta anómala deja de producir la respuesta habitual, el analizado se encuentra desprovisto de la excusa con que encubre sus errores sucesivos. En plena neurosis de estado, el neurótico acostumbra a ver la respuesta del ambiente –aunque provocado por él-como cargada de maldad: el mundo es malo para el neurótico y sobre su maldad se apoya la no-modificación de su curso de vida. Cuando el analista deja de ajustarse a esa habitual maldad y la provocación del neurótico queda como simple acto provocador en el vacío, la excusa se hace más difícil. A partir de este instante, en neurótico repetirá sin sus provocaciones transferenciales a partir de una ciega ley de repetición. Pero no podrá apoyarse en el mecanismo de acción-reacción actual. La pura repetición sin respuesta en el presente acaba por agotarse (p. 251).

Ou seja, ao não responder de modo típico aos modos neuróticos de existência, a relação analítica possibilita que o paciente logre maior responsabilidade sobre si mesmo, seu passado e suas escolhas futuras. Assim, se bem manejada a transferência, o analisando pode conseguir a cura, reestabelecendo as relações com os outros, não no modo coisificante, mas pleno e autêntico do Tu.

A vida neurótica tem como característica uma hipersimplificação das relações pessoais chegando muitas das vezes o neurótico ao isolamento social quase completo. No modo neurótico o outro é visto primeiramente sob a dualidade protetor-desprotetor, já quando a relação analítica se desenvolve o outro pode ser visto como uma subjetividade não aniquiladora até que consiga uma simpatia não objetal. A relação do analista não deve ser de toda no modo de proteção, tampouco de total abandono, se assim sucede o terror primitivo pelo outro, presente na vida neurótica pode ser superado.

A vida neurótica tem como característica pouca ou nenhuma relações não objetais, extrafamiliares, já que na família as relações atualizam os laços edípicos primitivos sendo de natureza neurótica. Quando um paciente logra a cura, ele aumenta seus vínculos e modos de relação para além do âmbito familiar.

Martin-Santos termina essa obra propondo que a relação psicanalítica é um processo dialético, para tal refere-se ao Sartre da obra: A Crítica da Razão Dialética. Nesse intento o autor tece duras críticas ao que ele denomina beateria ortodoxa da psicanálise que ocorre quando essa se propõe onipresente e suas interpretações aparecem apenas como um processo cognoscitivo, o que leva a equívocos de pura arbitrariedade, velando a dimensão dialética da psicoterapia.

El idealismo psicoanalítico lleva consigo una serie de manifestaciones deformadoras de la verdadera naturaleza de la cura. Una de sus más aparentes consecuencias es su tendencia a la omnicomprensión. Para algunos psicoanalistas, víctimas de la beatería incriticada de su pseudoconocer, todo lo psíquico es comprensible. Para los más exagerados no sólo es comprensible todo do psíquico, sino incluso todo lo somático. El psicoanálisis llegaría a ser la última ratio de todo proceso cultura, artístico o religioso (Martin Santos, 2004, p. 261).

A busca de um rigor no estudo dos modos de compreensão é marca de toda obra de Martin-Santos, assim a caracterização dos fenômenos em acordo com os preceitos teóricos psicanalíticos deve ser cuidadosa e não perder a dimensão concreta existencial das relações interpessoais. A psicanálise é o método adequado para a psicoterapia, mas não pode ser a metafísica última para a compreensão de todos os fenômenos psíquicos.

Fazendo referencia ao conceito de totalização de Sartre, nosso autor diz que a compreensão na psicoterapia deve alcançar a totalidade da vida psíquica do sujeito. Dessa forma o analisando tem a oportunidade de tomar posse de seu processo curativo, sendo consciente de seus sintomas e ao mesmo tempo tornando-se responsável por eles na totalidade de seu ser. Por isso ele acaba por ter consciência de sua condição de má-fé, aumentando sua liberdade em suas possibilidades de ser-no-mundo. Essa formulação não seria válida para os pacientes psicóticos, pois nela, segundo Martin-Santos (1966):

El paciente psicótico no ha elegido dejar de ser libre –como el neurótico lo ha hecho dentro del marco de su neurosis-, sino que objetivamente ha dejado de ser libre. Por ello, en la psicoterapia de las psicosis, no se puede contar con la determinación originaria que inicia la reforma existencial del 'ponerse en cura' (p. 265).

Assim o psicótico deve ser tratado com técnica de apoio e gratificação pulsional até que consiga a aparição de uma certa liberdade, o que o autor nomeia como neoliberdade em uma certa neoneurose que se criaria a partir desse tratamento. Dessa forma pode ser que o paciente consiga, desde que seu Ego seja robusto, uma investigação de sua má-fé em uma psicoterapia propriamente dita. Nos casos comuns de neuroses, a totalização se integra à compreensão e responsabilização nos modos temporais do Eu que se assimila naquilo que foi e naquilo que está sendo. Por isso o presente e o passado se conjugam na cura, quando um paciente se assume integrado naquilo que era e no que está sendo a cura se dá.

A totalidade da cura pode ser descrita no continuum: a-) totalização consciente do passado vivido e assumido; b-) compreensão recíproca deste passado junto com o processo de transferência; c-) integração do passado vivido e assumido no novo projeto com o mundo objetivo dos outros, segundo Martin-Santos (2004): "la curación total del neurótico, o sea, la madureza plena del individuo humano, sólo se logra mediante su integración aceptada y plena de sentido ético dentro del proceso histórico universal" (p. 269). Assim sendo, a cura só se pode alcançar com a totalização do indivíduo à história da humanidade, Martin-Santos adverte que isso não se trata de uma afirmação metafísica, mas que pode se compreender em uma linguagem psicológica a partir da compreensão da superação dos terrores da angústia, já anunciados nesse texto, quais sejam: os cósmicos, os do outro e os trágicos.

Os terrores cósmicos que se manifestam em angústias ao espaço são mais simples de se superar, em geral a superação ocorreria em fases entre a infância e adolescência, a maioria das pessoas passam por esses terrores sem a necessidade da psicoterapia. Os terrores em relação ao outro, como já tratado no decorrer deste texto já não são tão simples e acometem a neurose, sobretudo em sua concepção de outro de forma objetal, como coisa, o que a psicoterapia pode ajudar desde que obtenha sucesso no manejo transferencial.

Já o terror trágico é o mais difícil de superar, sendo talvez o que requeira maior maturidade interpessoal. Trata-se dos casos em que se exige a consideração do ser-para-a-morte, a superação da má-fé e a compreensão de si como totalidade temporal e histórica, em suma consistira em aceitar o destino como facticidade a qual estamos lançados. O autor faz analogia entre a superação do terror trágico com a sublimação em Freud, em ambas as formas trata-se de um compromisso com a humanidade, no sentido que é sair de si mesmo para se totalizar na história.

Assim, os três momentos dialéticos da psicoterapia se concluem com a superação dos terrores através do adequado manejo da relação transferencial que possibilita ao neurótico a maturidade nas suas relações interpessoais de forma não objetal atingindo o tu, até que ele se reintegre à totalidade de sua história pessoal com a humanidade, sentindo-se parte integrante da totalidade histórica.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Martin-Santos, ao nosso ver, centra-se no problema da compreensão na psicopatologia e na clínica psicológica. Entendemos que mesmo em seu trabalho erudito, de Dilhthey e Jaspers, seu ponto central é a relação médico-paciente, sendo um autor com preocupações eminentementes clínicas, compreendendo-a na dinâmica relacional.

Assim, desde quando propõe os tipos de compreensão na psicopatologia e que as rupturas dessas podem indicar as enfermidades, até quando demonstra o processo psicoterápico, o autor se firma na possibilidade de uma relação interpessoal de forma que a relação Eu-Outro, e Eu-Mundo, possam se estabelecer. A possibilidade de que o sujeito se integre na totalidade histórica da humanidade, não deixa de refletir o caráter multifacetado da pessoa de Luis Martin-Santos que vocacionado para a psiquiatria e a literatura, não deixou de ser um ativo participante da história da Espanha de seu tempo.

Entendemos que a obra de Martin-Santos continua sendo atual e traz grandes contribuições ao campo psi. Nesse sentido concordamos com German Berrios que a titula como o melhor trabalho feito até hoje sobre a origem histórica do conceito de compreensão e a influencia de Dilthey em Jaspers. Assim, esse artigo teve como objetivo não desgastar todo o alcance das temáticas desenvolvidas por Martin-Santos, mas divulgar ao público brasileiro um autor desconhecido e com contribuições bastante profícuas para os estudos das ciências psi e a clínica da saúde mental.

 

Referências

Gonzalez de Pablo. Á. (1998) El sentido de la enfermedad en la obra de Luis Martín-Santos. Asclepio, (L) I, 79-102.         [ Links ]

Lázaro, J. (2009). Vidas y muertes de Luis Martín-Santos. Barcelona: Tusquets.         [ Links ]

Martín-Santos, L. (1955). Dilthey, Jaspers y la comprensión del enfermo mental, Madrid: Ed. Paz Montalvo.         [ Links ]

Martín-Santos, L. (1953). La influencia del pensamiento de Guillermo Dilthey sobre la psicopatología general de Karl Jaspers y sobre la posterior evolución del método de la comprensión en psicopatología. Tese de Doutorado, Archivo de San Bernardo, Madrid.         [ Links ]

Martín-Santos, L. (1964). Libertad temporalidad y transferencia en el psicoanálisis existencial. Barcelona: Seix Barral.         [ Links ]

Martín-Santos. L. (2004). El análisis existencial. Ensayos (ed. José Lázaro). Madrid: Tricastela        [ Links ]

 

 

Notas sobre o autor

Gustavo Alvarenga Oliveira Santos
Professor do Departamento de Psicologia da
Universidade Federal do Triangulo Mineiro.
Doutorando na Facultad de Psicología da Universidad de Buenos Aires.

 

Recebido em junho de 2013
Aceito em maio de 2014

 

 

3 Bolsista da Capes processo numero 098914-2.