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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.9  Rio de Janeiro dez. 2015

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Des-idades, Poesias e Lutas: Articulações e Rupturas1

 

Des-idades, Poesías y Luchas: Articulaciones y Rupturas

 

 

 

Carolina Salomão CorrêaI

Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (NUCEPEC/UFC)

 

 


RESUMO

O texto busca uma articulação possível entre des-idades, poesias e lutas. Para tanto, lança mão de alguns textos poéticos, de autores brasileiros (Mário Quintana, Cora Coralina, Manoel de Barros, Belchior, Chico Buarque, Francis Hime e Milton Nascimento) e estrangeiros (Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Leon Gieco, Mia Couto, José Saramago), que abordam a força da poesia, no sentido de fazer-se despropósitos, revelar o cotidiano, interrogá-lo e levar-nos a desassossegos e reflexões sobre rupturas de dimensões que possam impedir a concretização da vida e contribuir para as transformações de ordens estabelecidas com as quais não se concorda. Os conteúdos dos poemas são relacionados a conceitos de luta (J. Comeford; Plínio de A. Sampaio), ação política (Alba Carvalho; Carlos Nelson Coutinho); utopia (K. Mannheim) e à desconstrução possível da rigidez que usualmente é imposta a noções de idades.

Palavras-chave: poesia, luta, utopia, (des)idades.


RESUMEN

El texto busca hacer una articulación posible entre des-idades, poesías y luchas. Con ese fin, hace uso de algunos textos poéticos, de autores brasileños (Mário Quintana, Cora Coralina, Manoel de Barros, Belchior, Chico Buarque, Francis Hime e Milton Nascimento) y extranjeros (Fernando Pessoa, Pablo Neruda, Leon Gieco, Mia Couto, José Saramago), que abordan la fuerza de la poesía, en el sentido de hacerse despropósitos, revelar lo cotidiano, interrogarlo y llevarnos a desasosiegos y reflexiones sobre rupturas de dimensiones que puedan impedir la concreción de la vida y contribuir con las transformaciones de órdenes establecidas con las cuales no se concuerda. Los contenidos de los poemas son relacionados a conceptos de lucha (J. Comeford; Plínio de A. Sampaio), acción política (Alba Carvalho; Carlos Nelson Coutinho); utopía (K. Mannheim) y a la deconstrucción posible de la rigidez que usualmente es impuesta a la noción de edades.

Palabras-clave: poesía, lucha, utopía, des-idades.


 

 

De despropósitos

O que pode ultrapassar limites e reducionismos das idades, e ser efetivamente des-idades?

O termo me instigou, ao perceber que, pelo menos, duas dimensões da vida social estariam muito bem neste espaço e neste lugar, também ocupado por des-idades: a poesia e a luta. Como chegar aos lugares sociais da poesia e da luta, associando-as a des-idades?

Tomo como referência o significado atribuído ao termo des-idades na apresentação da revista homônima: des-idades significa, como escolha do título da revista, que as idades, como critérios fixos que naturalizam comportamentos, habilidades e modos de existência, segundo uma temporalização biográfica linear, precisam ser problematizadas de maneira a permitir novas abordagens, perspectivas e diálogos sobre as relações entre os grupos geracionais2.  

O caminho não foi árduo: foi sério e não sisudo, talvez com a seriedade que amiúde ouvimos como característica das crianças ao brincar. E me dei conta, na memória, de um dizer do José Saramago: “Tentei não fazer nada na vida que envergonhasse a criança que fui”.

Senti como me habitam os despropósitos. Manoel de Barros (1999, p.7) se interroga, na introdução ao poema “O menino que carregava água na peneira”, “Será que os absurdos não são as maiores virtudes da poesia? Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso?”

Ainda a propósito de despropósitos, afirmativa de Pablo Neruda (1974/1987, p. 39) contribui para a reflexão: “É tão difícil as pessoas razoáveis se tornarem poetas quanto os poetas se tornarem razoáveis”.

Despropósitos guardam estreita relação em duas direções opostas, no que concerne à vida: com a utopia, quando as práticas e reflexões se voltam para a busca do que, no plano da razoabilidade, parece impossível de alcançar, de realizar; e com a rudeza e crueza da vida, quando a razoabilidade parece não dar conta de fenômenos, eventos e processos que significam extremo despropósito com a vida e sua preservação.

Em consonância com esta linha de reflexão, vieram-me à tona e aos borbotões alguns outros poetas – entre tantos, cujos poemas, ou seja, produtos da poética, da criação, ocupam lugar muito peculiar dentro de mim, e se tecem livremente com as noções de des-idades e de luta – de lutas pela vida.

Assim, vem à minha memória, aos meus sentidos e à razão, como as lutas – que aqui vejo tecidas à poesia e a des-idades – atravessam tempos cronológicos, sociais, internos e externos, sempre que continuam a ter o que dizer, a ter por que lutar, a ter o que fazer, o que sentir, o que enunciar na transformação de uma sociedade, no anúncio e na busca de novos tempos.

São transgressões e insurgências, esperanças e desesperanças, emancipações e encontros, construção de conhecimento sensível e implicado, denúncias e propostas, disposição para lutas por demandas e interesses coletivos, irreverências e rupturas, utopias (no âmbito da sensibilidade, da construção de sociedade mais justa, de rupturas radicais com o sistema capitalista e neoliberal)3. São, em síntese, ações políticas e militâncias pela vida.

Com base no pensamento de Alba Carvalho (2012) e Carlos Nelson Coutinho (2012), ambos fundamentados nas reflexões de Antonio Gramsci, permito-me articular despropósitos, tão presentes no campo da arte e da poesia mais especificamente, com a luta, quando se volta para a ousadia da renovação e da ampliação de possibilidades de transformações da realidade que não corresponde à defesa de interesses coletivos e à universalidade de direitos. Despropósitos e lutas podem, assim, contribuir para a emancipação do pensamento e para a descristalização de visões de mundo, que naturalizam desigualdades e violação de direitos de segmentos mais vulneráveis da população, tais como pobres, negros, portadores de deficiências mentais e físicas, populações do campo, mulheres, segmento LGBTT4, crianças e idosos. Carvalho (2012, p. 6) relaciona a ação política, componente fundamental para a luta, com a possibilidade de “ampliar conceitos e redefinir posturas, no compromisso histórico de desvendar o próprio movimento do real, em toda a sua contraditória complexidade, na perspectiva de transformar o mundo contemporâneo”.

A poesia se aproxima

Nas lutas, nas des-idades, na poesia, reconheço, fundamentalmente, o desassossego5 e a irreverência, a alegria e a seriedade, a subversão de normas com as quais não estamos de acordo, por confrontarem os caminhos de busca da liberdade e da felicidade, nos contornos como as almejamos.

Mário Quintana (1997, p. 104) vem nos dizer, com o humor e a profundidade que lhe são peculiares, em “Os poemas”.

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
Alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
No maravilhado espanto dos saberes
que o alimento deles já estava em ti...

E há uma luta, por certo relacionada à ideia das lidas e estratégias cotidianas, à superação de dificuldades, quando Cora Coralina (1987, p. 45-6), no poema "Ofertas de Aninha", em seu livro ‘Vintém de cobre’, nos anuncia.

Eu sou aquela mulher
A quem o tempo
Muito ensinou.
Ensinou a amar a vida.
Não desistir da luta.
Recomeçar na derrota.

Ademais, a poeta nos anuncia tantas Coras que em si convivem em “Todas as vidas” (1980, p. 35-6), tais quais nossos tantos ‘eus’, tais quais os tantos heterônimos de Pessoa em Pessoas. Se a diversas ‘Coras’ correspondem demandas e expressões peculiares, também haverá articulações entre elas, como a tessitura que entrelaça as dimensões da vida cotidiana.

Vive dentro de mim/ Uma cabocla velha/ de mau olhado,/ acocorada no pé do borralho/ olhando para o fogo...
Vive dentro de mim/ a lavadeira do rio Vermelho./ Seu cheiro gostoso de água e sabão...
Vive dentro de mim/ a mulher cozinheira./ Pimenta e cebola/ Quitute bem feito...
Vive dentro de mim/ a mulher do povo,/ bem proletária,/ bem linguaruda,/ desabusada, sem preconceitos...
Vive dentro de mim/ a mulher roceira./ Enxerto da terra,/ meio casmurra./ Trabalhadeira./ Madrugadeira./ Analfabeta...
Vive dentro de mim/ a mulher da vida./ Minha irmãzinha.../ tão desprezada,/ tão murmurada...
Todas as vidas dentro de mim:/ Na minha vida –/ a vida mera das obscuras.

Cora Coralina (1987, p. 109) também se anuncia como ser telúrica (“A gleba está dentro de mim. Eu sou a terra”), bem assim o que vem da terra e lhe habita, ao afirmar, em poema homônimo (p. 108): “A gleba me transfigura”.

A força da simplicidade e da profundidade de Cora permite-nos romper com a limitante configuração corpórea de ser humano, e permite nos transportarmos para as glebas que portamos, e, tal como a poeta, nos transfigurarmos, superando idades, tempos, realidades.

E a luta já se fez presente

Lutar para nós é um destino,
uma ponte entre a desesperança
e a certeza de um mundo novo.
Agostinho Neto (poeta e político angolano)

Qual luta de des-idades estaria longe da crença em valores humanos? Qual luta não nos ensina, e nós a ela não ensinamos?

E é ainda Cora Coralina (1987, p. 139), que anuncia formas de superação frente a adversidades da vida, em seu poema “Aninha e suas pedras”.

Não te deixes destruir...
Ajuntando novas pedras
e construindo novos poemas.
Recria tua vida, sempre, sempre.
Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Qual luta não inclui o semeio, na busca de colheita farta? E a luta traz em si, também, por certo, a utopia. A utopia do que queremos, sem idades ou no campo de des-idades, aquilo que ainda não existe, e que gostaríamos que existisse. Nos dizem Milton Nascimento e Fernando Brant6,

Se muito vale o já feito,
mais vale o que será.
O que foi feito é preciso conhecer
Para melhor prosseguir.

Recorro, novamente, a Mário Quintana, com seu poema "Das utopias" (1997, p. 36), escrito em 1948.

Se as coisas são inatingíveis,
Não é motivo para não querê-las.
Que tristes os caminhos, se não fora
A presença distante das estrelas.

Reconheço que luta é conceito polissêmico, que assume ainda mais significados, ao se considerar o contexto em que é utilizado e concretizado. John Comeford (1995) sistematiza ideias sobre luta, que me servem de inspiração para abordar duas significações: a acepção em que o termo se relaciona a práticas de mobilização, à busca de articulação e união entre atores sociais, em torno da consecução de objetivos que lhes são comuns. Luta, neste sentido, leva à concretização de práticas sociais, dentre as quais se incluem falas e discursos, como ações simbólicas, constitutivas e constituídas de realidades. Com essa concepção fala-se da luta e sobre a luta; fala-se como prática de mobilização, de denúncia, de reivindicação, de diálogo, de articulação. Falar faz "parte de processos de configuração e reconfiguração de vínculos e de grupos sociais" (Comeford, 1995, p. 40). A outra significação de luta, que articulo com des-idades e poesia, refere-se às lidas cotidianas, às estratégias das quais lançamos mão, amiúde, para viver e sobreviver, usufruir da vida, mais ou menos intensamente. Assim me refiro, por considerar que as pequenas revoluções cotidianas podem alicerçar transformações sociais, aparentemente indizíveis e inalcançáveis. Identifico uma convergência entre os dois significados acima para luta: a presença de dificuldades e a busca de sua superação.

E o que é preciso para lutar, no reino das des-idades, das irrazoabilidades? O que é preciso para criar, poetar, no campo das des-idades e irrazoabilidades?

Inspirada no pensamento de Carlos Nelson Coutinho (2012a; 2012b; 2012c), reconheço alguns atores sociais imprescindíveis na luta, que se trava no cotidiano7 e a partir das demandas que dele emergem: os movimentos sociais, que podem levá-las, suas demandas, para compor a agenda política local ou nacional. Há que ficar claro que os movimentos sociais atuam a partir da sociedade civil, que, de acordo com Coutinho (2012a; 2012b; 2012c), é terreno de luta de classes e de conflito profundo, posto que inclui embates que, além de revelar as desigualdades econômicas, igualmente podem se referir a intolerâncias e discriminações referentes a gênero e orientação sexual; raça e etnia; geração, por exemplo. Lutar, portanto, requer presença participativa de diferentes segmentos sociais, que podem voltar sua militância para demandas específicas, bem como para aquelas que dizem respeito ao conjunto da sociedade, como são exemplos o aperfeiçoamento do sistema representativo e de instrumentos necessários para as vivências democráticas; e a universalização de bens e acessos ao usufruto de direitos. Lutar, na compreensão de Coutinho (2012a), é tarefa cotidiana e requer, basicamente, formas de organização coletiva, das quais são exemplos sindicatos, movimentos e partidos políticos.

Compreendo que utopia e luta mantêm interseções axiais: a utopia dá sentido à luta, na medida em que aponta na direção das transformações para a qual a luta se volta, quer para a consecução de demandas imediatas de um segmento de trabalhadores (como aumentos salariais), quer para mudanças estruturais, como a reforma agrária,  reformas de um sistema parlamentar representativo, ou mesmo para a opção de governo quanto ao modelo econômico adotado – de base neoliberal ou socialista, por exemplo. A propósito, Coutinho (2012b) compreende democracia como socialização da propriedade e do poder, o que implica participação. É por demais difundida a sua afirmativa de que “só há plena democracia no socialismo, porque a divisão da sociedade em classes cria déficits de cidadania, de participação política” (p. 24).

Portanto, lutas hão de ser concretizadas para a criação ou consolidação de instrumentos de participação popular, de espaços de mobilização e decisões coletivas, tais como fóruns, além dos movimentos, sindicatos e partidos políticos já anteriormente referidos. Democratização8, desta forma, é razão para luta.

Luta que se peculiariza quando relacionamos democracia, direito à participação, relacionando-os a idades. Se sobre elas pensarmos sob o viés, ainda hegemônico, da linear temporalização biográfica, deparamo-nos com déficits de cidadania. Relaciono tal peculiaridade de luta a ideias e construtos que podem dar suporte a des-idades, e que requerem esforço acadêmico e de mobilização política para alcançá-los, tais como: a inclusão da fala dos historicamente silenciados, entre os quais se incluem crianças e adolescentes, e idosos; o trato dos problemas coletivos e a partilha de decisões, em espaços diversificados da cena pública, com a participação desses sujeitos; a efetivação de investigações acadêmicas em que crianças e adolescentes são co-construtores de dados, junto a pesquisadores (Pinheiro, 2013).

Poesia, luta, Des-idades

Acrescento, agora, versos de mais alguns poetas. Lutadores também? Parece-me que sim. Um é o compositor argentino Leon Gieco, que clama, em sua canção “Sólo le pido a Dios”9,

Sólo le pido a Dios
Que el dolor no me sea indiferente
Que el injusto no me sea indiferente
Que la guerra no me sea indiferente
Que el engaño no me sea indiferente
Que el futuro no me sea indiferente

Há potência transformadora no clamor de Leon Gieco para que ‘a dor, o injusto, a guerra, o engano e o futuro’ – a nós não nos sejam indiferentes. Há potência para luta, se eles continuam em nós, no campo da sensibilidade, da instigação e da indignação. São alimentos, são seivas da luta e para a luta. Como lutar, quando o futuro nos é indiferente? Como romper com as amarras dos padrões etários, a não ser que nos encharquemos de irrazoabilidades para o mundo presente, de forma a vislumbrar outros futuros?

E como cultivar idades a perder de vista, entre nós e em nós, por dentro e por fora?

Em uma composição, Francis Hime e Milton Nascimento ressaltam a potência das parcerias e que, a partir delas, ao transformar os presentes, é possível reinventar futuros.

Primeiro cruzamos caminhos
Corremos o verde do tempo
Pisamos o chão como índios
Nascemos do mesmo luar
E, então, inventamos futuro
Juramos a cumplicidade
[...]
De fato teimosos que somos
Partimos direto pra briga
Não houve desfeita ou intriga
Que nos confundisse a razão10

Somos nós jovens, crianças, adultos, velhos, adolescentes e outras idades, que nem mesmo sabemos nominar? Ser humano do tempo de des-idades e despropósitos, criança mais desassossegada não conheço do que aquela que está, que se revela, que se constrói na poesia de Manoel de Barros. Reconheço desmesurada potência em seus versos, capazes de transformar realidades que, aparentemente blindadas e a toda prova, se fazem flácidas e mesmo delicadas, diante do vigor incomensurável da poesia.

Diz-nos o poeta, em ‘Memórias inventadas – A infância’, obra publicada quando Manoel de Barros estava com 87 anos de idade (ou DesIdade?),
futuros.

Tudo o que não invento é falso.
Porque se a gente fala a partir do ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore.
Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina.
Uso a palavra para compor silêncios.

Já em ‘O Fazedor de amanhecer’, Barros nos sussurra uma terna confidência, em dois tempos, “só o silêncio faz rumor/ no voo das borboletas”.

Diz mais ainda, “com as palavras se podem multiplicar os silêncios”.

E aponta uma invenção sua, literalmente relacionada ao firmamento, e aos tantos dos seus mistérios, “o fazedor de amanhecer para usamentos de poetas”.

Nutrindo a luta e para a luta

Na poesia e na luta, há o nutriente da delicadeza e da irreverência, de utopias e subversões; de resistências e de encontros. Há lutas que, em parcerias, conservamos e cultivamos dentro e fora de nós. A propósito, assim se expressou uma jovem militante, durante evento11 realizado em Fortaleza, em maio de 2014, “A gente luta bastante e festeja bastante”.

Ainda a respeito de parcerias, sobre as quais nos falavam, há pouco, Francis Hime e Milton Nascimento, há uma pulsante expressão, utilizada por Mia Couto (2005), no livro ‘O último voo do flamingo’, ao falar do “tear de interexistências a que chamamos ternura.” (p.110)

É neste campo de (re)ações e (re)configurações, que vislumbro o vigor da expressão que se segue, do movimento Hip Hop, ao nos conclamar a estar ‘junto e misturado’, para, na realidade concreta, construir a superação da segregação e da opressão.

E me dou conta de tantas parcerias que firmei e reafirmei, ao longo da construção deste texto, entre despropósitos e utopias, poesias e lutas. E sinto que vou seguir firmando-as, ao partilhar o seu conteúdo, por meio de sua publicação.

Ademais, ir à luta, fazer-nos luta, ultrapassa obstáculos e vislumbra, por certo, algo diferente, desejado, pungente. Encontro ressonância no que diz Chico Buarque, “apesar de você, amanhã há de ser, outro dia”. Des-idades, luta, poesia.

Aliadas à poesia e à luta, reconheço na indignação e na esperança forças incomensuráveis de des-idades. Ou será que elas – indignação e esperança – é que são forças para as des-idades? Ou, mais ainda, será que elas – luta, poesia, indignação e esperança – estão presentes nas des-idades, e as des-idades presentes em todas elas?

Versos do compositor Belchior iluminam minha compreensão, “o que transforma o velho no novo/ Bendito fruto do povo será”12.

E, assim, no reino da poesia e das lutas, da indignação e da esperança, da irreverência e dos encontros, a travessia se faz, des-idades se presenciam, se concretizam. Militância pela vida e na vida, e em estado de poesia. Sempre.



Referências

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______. Entrevista de Carlos Nelson Coutinho, por Emiliano José e José Corrêa Leite, em 2002. In: Plebeu Gabinete de Leitura. Para os que Vivemos e Lutamos no Sul do Mundo – Nossa Homenagem a Carlos Nelson Coutinho. Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura & ENFF, 2012b. p. 15-30.

______. Entrevista com Carlos Nelson Coutinho por Hamilton Octávio de Souza, Marcelo Salles, Renato Pompeu e Tatiana Merlino. In: Plebeu Gabinete de Leitura. Para os que Vivemos e Lutamos no Sul do Mundo – Nossa Homenagem a Carlos Nelson Coutinho. Fortaleza: Plebeu Gabinete de Leitura & ENFF, 2012c. p. 31-40.

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www.suspeitas.blogs.sapo.pt. Acesso em 2 abr. 2015.


Data de recebimento: 11/06/15
Data de aceitação: 01/11/15
 

 

1 O conteúdo corresponde, em parte, ao texto construído pela autora quando do lançamento da Revista DESidades, em 15.05.14, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil.
El contenido corresponde, en parte, al texto construido por la autora para el lanzamiento de la Revista ‘Desidades’, el 15/05/2014, en la Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil. 

2 www.desidades.ufrj.br. Acesso em: 4 abr. 2015.

3 Quando falo em utopia, tenho como inspiração as ideias de Mannheim (1972), formuladas já em 1929. O autor presumia que a mentalidade utópica pressupunha tanto estar em contradição com a realidade vigente, como, igualmente, romper com os ditames da ordem estabelecida. Ademais, utopia, de acordo com Mannheim, se concretiza na ação de grupos sociais, transcende o contexto sócio-histórico e orienta a ação, em direção a elementos que não existem na realidade presente. Trata-se, assim, de uma busca por transformar a ordem existente, de acordo com as concepções próprias aos grupos sociais que a perseguem. Por fim, importa ressaltar que o autor considerava ser a utopia inalcançável apenas dentro de uma determinada ordem social já sedimentada. Para o aprofundamento dessas ideias, sugiro a leitura de: MANNHEIM, K. ‘Ideologia e utopia’. Rio de Janeiro: Zahar, 1972; e BOBBIO, N. et al. ‘Dicionário de política’. Brasília: Editora UnB, Vol. 2, 1999. 

4 Refiro-me a lésbicas, gays, travestis e transexuais, historicamente discriminados na sociedade brasileira.

5 Relaciono, de imediato, a significação do termo desassossego com a obra de Fernando Pessoa (1980; 1985) – ou Pessoas? Em ‘Livro do desassossego’ (1983), com autoria do heterônimo Bernardo Soares, o termo parece revelar a ideia de inquietação, diria mesmo de conturbação, por aquilo que não foi feito, dito, alcançado, contrapondo-se ao que o autor chama de ‘sossego de vulgar’ (p. 88). O trecho a seguir, parece-me, ilustra alguns significados de desassossego para o poeta: “Sofri em mim, comigo, as aspirações de todas as eras, e comigo passearam, à beira ouvida do mar, os desassossegos de todos os tempos. O que os homens quiseram e não fizeram, o que mataram fazendo-o, o que as almas foram e ninguém disse – de tudo isto se formou a alma sensível com que passeei de noite à beira-mar. E o que os amantes estranharam no outro amante, o que a mulher ocultou sempre ao marido de quem é, o que a mãe pensa do filho que não teve, o que teve forma só num sorriso ou numa oportunidade, num tempo que não foi esse ou numa emoção que falta – tudo isso, no meu passeio à beira-mar, foi comigo e voltou comigo, e as ondas estorciam magnamente o acompanhamento que me fazia dormi-lo”. (p.187)

6 Trecho da canção “O que foi feito deverá/O que foi feito de Vera”, que integra o CD “Clube da Esquina 2”.

7 O professor Plínio de Arruda Sampaio (2014), que se reconheceu, em 2008, aos 78 anos de idade (ou desIdade?), como há mais de 58 anos empenhado na transformação do Brasil, em direção ao socialismo, traz interessantes ideias sobre a luta como trabalho cotidiano. Ademais, discorre sobre três características fundamentais para a luta – e que me parecem também como motivações para a luta: a perseverança, um cotidiano perseverante, por considerar os extensos períodos para alcançar os seus objetivos; a indignação, diante de tantas contradições que caracterizam a história social e política do país; e a coragem, que para ele “é você continuar lutando, apesar da aparente impossibilidade” (Sampaio, 2014, p. 7). À aparente impossibilidade, associo a significação atribuída por Mannheim (1929/1972) à utopia, como expus na nota de rodapé 5. Sampaio (2014) ressalta, ainda, a necessidade de que os lutadores, ou seja, as pessoas que estão lutando para mudar, encontrem diversificadas formas de organização e que possam se unir diante de lutas concretas.

8 Coutinho (2012c, p. 36) compreende democratização como “o processo de crescente socialização da política com maior participação na política, e, sobretudo, a socialização do poder político”.

9 A música consta do CD “Mercedes Sosa – Para Cantar He Nacido”.

10 A música está no CD ‘Essas Parcerias’, de Francis Hime.

11 Seminário “A Cidade para Quem? Crise Estrutural do Capital e Perspectivas de Superação”, promovido pelo Comitê Popular da Copa, CEDECA-Ceará (Centro de Defesa da Criança e do Adolescente) e Diaconia ActAlliance.

12 Trecho da música “Como o Diabo Gosta”. A letra completa pode ser encontrada em www.letras.mus.br/belchior Acesso em: 10 mai. 2014.

I Psicóloga, doutora em Sociologia, professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil, integrante do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisas sobre a Criança (NUCEPEC/UFC), autora do livro ‘Criança e adolescente no Brasil: Porque o abismo entre a lei e a realidade’ (Edições UFC, 2006). E-mail: a3pinheiro@gmail.com

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