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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS

 

Sintaxe do tempo nos tempos de hoje

 

The space of time, today

 

 

Plinio Montagna*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O autor aborda algumas sutilezas da composição e do modo de vivenciar o tempo no mundo mental, sua continuidade/descontinuidade, permanência/impermanência, atemporalidade inconsciente, e problematiza a aceleração e a condensação do tempo no mundo contemporâneo, de primazia do presente. Relaciona essas questões ao tempo da sessão/processo analítico, virtualidade do espaço transicional e considera implicações para a possibilidade resiliente, hoje.

Palavras-chave: Contemporâneo, Identidade, Resiliência, Self, Tempo.


ABSTRACT

The paper deals with aspects of experiencing time in mental life, its continuity/discontinuity, permanence/unpermanence, unconscious atemporality, raising questions about acceleration and condensation of time in the contemporary world, under the primacy of the present. It relates this to the time of the psychoanalytic session, virtuality of the transitional space and considers conditions for resilience today.

Keywords: Contemporaneity, Identity, Resilience, Self, Time.


 

 

Não pises este lugar
ontem de tarde havia, por aqui,
vaga-lumes.

O livro dos Hai-Kais.

A sublime leveza deste haicai firma o humano respeito ao nosso entorno e a nós mesmos, embalada em espaço e tempo emoldurados pelo sagrado da existência. O poema prescreve consideração ao que foi presente nesse lugar, hoje vazio, onde quase ainda se sente o acende-apaga, o luzir e o sumir de vagalumes. Claro e sombra, presença e ausência fugidias, e no entanto marcantes, nos confundem, mas nos fazem lembrar. Devem permanecer em nossa memória, ou... Supõe-se, ao ler o poema, que algo está em jogo no futuro, nossa sorte jogada no fio íntegro, não rompido, do tempo, naquele espaço. Trata-se, afinal de contas, de uma recomendação.

A leveza é maior se pudermos sentir o peso do tempo. O poema não trata da continuidade, tampouco da percepção da matéria no espaço. Configura harmonicamente experiência, memória e prospecção: ontem e hoje na direção do amanhã.

Para usufruirmos a experiência estética que a estrofe nos propicia, é necessário que os vaga-lumes, pirilampos e o lugar onde estiveram adquiram uma impressão sensorial de presença dentro de nós, alternando-a com ausência. E, do mesmo modo, a imagem do pisar. A sutileza para absorver a descrição dá-se, em nós, num nível imaterial, no qual as coisas estão e não estão, são e não são, evanescem colocando-se no limite entre o ser e não ser. Situamo-nos no âmbito do simbólico, marco que inaugura o humano e se explicita no exercício da linguagem. Ao mesmo tempo, sabemos que, para que esses vaga-lumes e contornos existam e se instalem dentro de nós, é preciso que nós mesmos os criemos em nosso mundo interior. No contato com suas existências no mundo fora de nós, deixamos de lado o fato de eles lá existirem, e os inventamos para nosso uso particular, só nosso &– mais ou menos como criamos com movimentos de nossos braços e pernas a luminescência dos plânctons no mar das noites escuras. Assim se dá o mundo lúdico, ensinou-nos Winnicott, arte e poesia se situam no espaço do ser e não ser a um só tempo. É onde também se situa o campo da transferência na psicanálise.

Manejamos presença e ausência de modo a aceitar que as coisas estão e podem não estar, são mas também existe o nada, e, para que elas continuem a ser dentro de nós, temos que suportar a existência do vazio do não ser e do nada. Assim nasce dentro de nós um espaço virtual, no qual se instala o tempo do não ser. O símbolo só se inscreve a partir da ausência e de nossa capacidade de vivê-la, caso tenha havido a presença intensa, em que tenhamos nos deixado estar. Não há símbolo se o pisar for automático. É necessário atenção.

Podemos tomar outro exemplo paradigmático dessa inefável permanência/impermanência na descrição que Fabio Herrmann (1992/2001, pp. 77-79) nos oferece sobre o rosto e a face em sua obra A rani de Chittor, que versa sobre a lenda oriental da linda Padmini, rainha de uma cidade do longínquo Hindustão chamada Chittor, hoje em ruínas. O semblante de Padmini só poderia ser contemplado &– por ordem de seu marido ciumento e ameaçador &– à distância, através de um espelho, portanto indiretamente. Faz-se, diz Fabio, “um ver sem ver que elevava a tensão do desejo, para se sonhar por toda a vida com o reflexo arredio”. É a partir do rosto de Padmini que o autor segue sua viagem reflexiva:

Parte de nossa história passar-se-á nesses palácios, ou melhor, estará relacionada com sua geometria virtual. Mas um rosto não será também uma questão de óptica geométrica, quem sabe a mais importante de quantas haja; ou mesmo, mais ousadamente, a origem verdadeira da estrutura de permanência abstrata dos seres materiais notáveis, cuja idealidade é condição para a invenção da geometria? Um rosto é idealidade, é imagem; muda a cara, fica o rosto. Ou, com mais rigor, só há um rosto quando a cara material se vai transformando, pois um rosto é o que resta de idêntico. Idêntico a quê? Idêntico à alma, àquilo que não existe mais, ao inconsciente, se preferem (p. 77).

Aqui, mais uma vez, a natural virtualidade do tempo se impõe como uma presença que nos movimenta, neste caso através da entrevisão que propicia o imaginar, o sonhar. Move-nos a perscrutar o presente que de novo se esvai, deixando registros na memória. Tais registros, nesse caso, revelam o rosto, que permanece, posto que se mantém único ainda que mudem sorriso, cada esgar, mímica facial e as infinitas expressões que a face pode transmitir.

Saltam das entrelinhas do que se expôs: Então, o que é o presente, o agora? É o período em que nos cabe viver nossa vida? É uma fração de segundo? Um milionésimo de segundo? É o mínimo que possibilita a apreensão visual na rolagem das imagens na sucessão de quadros fotográficos que compõem um filme? É o tempo de nossa percepção? Nosso insight em uma sessão psicanalítica? Mas, não é ela formada de muitos momentos, cada um deles um presente em si mesmo? Podemos equacionar atenção-percepção-unidade de tempo? O que dizer do instante? Se poético, ele quebra a continuidade horizontal do tempo unitário, como quer Bachelard (1970)? O que, ao contrário, possibilita sentirmos o tempo como contínuo? Ele é mesmo contínuo? O aumento da aceleração do tempo nos caracteriza. Condensou-se o presente?

E por seu turno dessas questões saltam implicações no tempo de cada sessão, de cada aqui e agora, interpretações e construções, e do processo psicanalítico. Sabemos que as experiências vivas de ampliação de consciência, em “momentosagora” no encontro psicanalítico compõem a base e os pontos nodais na psicanálise e na vida.

***

Uma pessoa entra em minha sala de atendimento com passos curtos, cadenciados, decididos, sem pressa ou afobação, apenas deixando no ar a impressão de alguma ansiedade.

Olha para as duas poltronas lá existentes, vai até elas, tira dos bolsos telefone celular, chaveiro, óculos, deixa-os cair numa delas e, ato contínuo, se dirige para o divã, disposto ao longo da parede oposta. Ainda que seu telefone não soe, desligado que está, ele está lá para nós dois, se quisermos, vê-lo, e, se for o caso, para não deixá-lo de fora da conversa. O aparelho está lá também demarcando a contemporaneidade, o século XXI, seja qual for o tempo em que internamente essa pessoa viva aquele momento. Deixa-se cair no divã, larga-se quase a se estatelar, parecendo que não via a hora de se jogar displicentemente naquele móvel pleno de significado, onde a princípio podia relaxar, suspirar, respirar fundo, abandonar seu desconforto e ali viver uma experiência única, com conforto e muitas vezes outro tanto de desconforto, num outro nível.

Observo os impactos em mim de sua presença. Perceboa ajeitando-se, alinhando-se no divã, até parecer ter encontrado uma posição de alívio, de distensão, antes mesmo que qualquer palavra ou som intencional fosse pronunciado. Enquanto tudo isso ocorre, há um presente, diverso daquele em que me observo pensando no que acabo de experimentar. É o momento em que a experiência subjetiva está ocorrendo. A presentidade (Bachelard, 1970) da experiência vivida é fundamental à sua consistência e à configuração daquilo que os fenomenologistas chamam de consciência do eu.

Hoje, Valter decidiu trazer consigo o livro que lia na sala de espera &– de fato, segura-o, com um braço, sobre seu tórax, no divã. É claro que isso não tem uma importância intrínseca, não é uma linguagem em si, mas, para se constituir com tal, depende de nossa interação dialógica. “Quando um ato começa a ser comunicação?”, indaga Meltzer (1986). Há nessa sessão uma expressão facial (que permanece), comunicação a ser decodificada. Um aspecto dessa face é o tempo em que vive Valter ali, diante do rosto temporal de seu eu. A face irá se esgarçar quando se esfumaçar a temporalidade, ao sabor dos assim ditos processos primários. Ou então pode se petrificar, como se o tempo se instalasse como um presente contínuo, permanente. Noutro momento ele vive o passado presentificado. Pode agir também como se o futuro já tivesse chegado, como se tivéssemos saltado o tempo presente. É impressionante como nesse pequeno período de tempo um vasto mundo de significados psíquicos, que condensam por vezes longos e repetitivos momentos vividos, tem sua história transformada numa dada configuração comunicacional.

Balizada pela história vivencial, a aventura da restituição (ou da criação) de sentido(s) emerge no tempo combinando sincronia e diacronia, também anacronismo, relativos a regressões, transferências, reações retardadas, chegando a encontros com o presente nos “momentos-agora”.

Tudo isso pode se passar na esfera da apreensão não-verbal, ou não verbalizável. Esse campo de conhecimento oriundo da memória implícita se refere tanto à apreensão subliminar (priming) como a experiências sensório-motoras, à aquisição de certas habilidades (memória procedural) e ainda à memória afetiva e emocional ligada às experiências emocionais e às fantasias e defesas primeiras com relação às experiências primitivas do bebê em seu entorno. Tais registros permanecerão em nosso presente com os conhecimentos advindos da memória explícita, que se refere a eventos específicos da vida, conscientemente loca lizáveis, verbalizáveis. Oferece sentido às lembranças de experiências, ou à reconstrução da história pessoal. O funda mental é que de algum modo o ocorrido se inclua como parte de nossa experiência subjetiva. Conseguir essa inclusão, das experiências nos níveis a que me refiro, é, como sabemos, o desafio da psicanálise hoje, além do que se tem como análise clássica. Esta, a rigor, realiza-se no registro do representável, do representado, e pode ser vista como a análise da transferência no âmbito da transferência neurótica.

***

Presente, passado e futuro ditam ritmos. E são eles, os ritmos, os responsáveis pelas primeiras sensações em nossas vidas, nossas primeiras impressões cinestésicas. É nas sensa ções dos ritmos na vida intra-uterina que encontraremos os registros iniciais daquilo que um dia norteará a realização da presença do mundo exterior. Os ritmos primeiros e o pulsar da vida são inaugurados pelas batidas cardíacas da mãe, que carregam consigo fluxos temporais de diferentes intensidades por meio das artérias umbilicais, portadores da informação de um universo dinâmico, em movimento. Compassado, esse ritmo muda com as solicitações do meio. Freqüência respiratória, necessidades e realização delas, tensão e relaxamento, sono e vigília, compõem o amálgama rítmico a que mais adiante se agregarão a presença e a ausência do objeto externo, com graus variáveis de esta bilidade. Essas vivências se dão numa espacialidade que deriva da existência e da consciência do corpo. Freud (1923/1975) mostra que o conceito de tempo e sua gênese são inerentes à organização e ao funcionamento do ego, sendo este inicialmente corporal.

Os ritmos pressupõem presença e ausência, permanência e mudança. Isso faz parte de nossa odisséia vida afora. A consciência das mudanças que atravessamos, é “... a condição de que depende nossa percepção do fluir do tempo”, dizia William James (1860/1952). A mudança fundante é a que registra nossa vinda ao mundo. “Há muito mais unidade entre a vida intrauterina e a primeira infância do que a impressionante cesura do nascimento poderia levar a supor”, apontou Freud (1926, p.162). Essa passagem pode ser pensada como aquilo que inaugura, para além dos ritmos intra-uterinos, a organização do tempo na vida humana. A área intermédia, a zona “trans”, de impermanência, é uma mudança que “gera a fratura, a brecha, o abismo, e que por outro lado da memória, o pensamento, liga, articula, interpreta” (Piaget, 1937/1979). Curiosamente a memória, irmã do tempo, na mitologia grega Mnemosine, deusa titã irmã de Cronos, preside a função poética.

***

Uma unidade de tempo é o dia, cujo ritmo &– noite/dia &– sempre foi natural para o homem. Nossa idéia de ano surgiu muito depois. Havia que se considerar a sazonalidade de plantações e colheitas, mas fundamentalmente a das estações, infalivelmente cíclicas. No viver cotidiano, o que importava para a sobrevivência era cada dia sucedido pela noite, ritmo condicionante de toda vida que quer continuar a ser. Desse modo, o ciclo noite e dia foi sempre o norteador natural das condutas humanas. Noite e sono são companheiros inseparáveis de nossa história. A claridade do dia para se viver, a escuridão da noite vinculada ao escondido, ao obscuro ou ao não possível de ser trazido à luz. Assim, esse ritmo em geral condicionou as ações humanas. Nos últimos cem ou duzentos anos isso se modificou enormemente na história da vida pública e privada. As primeiras tentativas de um novo grau de independência &– a independência da luz &–, conseguido pelo fazer cultural humano, foram efetuadas durante a pré-história. Conquistar o fogo foi fundamental na evolução da humanidade. E, desde a pré-história até não muito mais do que cem anos atrás, era ele a única fonte artificial de luz.

Se buscamos as religiões fundantes do Ocidente, e não só deste, o primeiro ato de Deus triunfou sobre as trevas: “E a terra não tinha forma era vazia; e as trevas pairavam sobre a face das profundezas. E o espírito de Deus moveu-se sobre a superfície das águas ... E Deus disse: faça-se a luz: e a luz se fez; e Deus viu a luz que era boa; e Deus separou a luz das trevas”. Antes da criação, “havia o caos original, informe, vazio e escuro”. Lembremo-nos de que se descreve a divindade como “a Luz suprema”, reservando-se a luz do homem aos “luminares” da humanidade. Assim como a luz extraiu ordem do caos, a apropriação da luz pelo homem o fez compor sua história de um modo que não voltaria jamais a repetir-se. A conquista da noite foi parte dos princípios fundamentais de nosso tempo atual, com todas as implicações que esse acontecimento tem em nossas vidas.

Alvarez (1996) é um estudioso do tema, com contribuição muito interessante. Diz ele: “... para que a noite pudesse ser colonizada e tornada segura para os cidadãos respeitáveis, duas coisas eram necessárias: iluminação e força policial. Sem elas, a noite era como o caos original a partir do qual Deus criou o mundo: informe e vazio”. Fechavam-se os portões das cidades, trancavam-se as casas, os cidadãos que saíam à noite tinham que carregar tochas a fim de evidenciar a todos que os vissem que não queriam se esconder, que eram pessoas de boa-fé. As primeiras tentativas de iluminar as ruas datam do século XV, quando tocheiros eram colocados na frente das casas dos ricos. Nas encruzilhadas de Atenas e Roma havia fogueiras, no entanto as primeiras tentativas organizadas de iluminar as ruas ocorreram em Paris em 1662: mediante pagamento, velas eram postas em lanternas e acompanhavam o viajante de um posto a outro. Foi depois da iluminação a gás, no século XIX, que as cidades começaram a ser iluminadas regularmente, em maior escala. Em Londres foram implantadas lâmpadas de gás nas ruas em 1807. A iluminação a gás em São Paulo, lembremos, com os célebres lampiões a gás, que hoje fazem parte inalienável da memória da cidade e do cancioneiro popular, data do início do século XX.

Se ocupo um tempo nessa descrição, faço-o por tê-la como um dos marcos iniciais e como pano de fundo concreto do contemporâneo, de temporalidade presentista, em que o centro de gravidade temporal se deslocou do futuro para o presente (Lipovetsky, 2004). O ritmo do tempo novo põe demandas e exige aptidões antes insuspeitas. Uma nova questão homeostática, um novo desafio para nós humanos, do ponto de vista físico e psíquico.

***

Nossa interação com o mundo na atualidade, nesses tempos pós-modernos, é expressa, com precisão, em metáfora com a qualidade líquida (Bauman, 2000/2001). Em vez de manter uma forma constante, os líquidos emprestam-na daquilo que os contém, sempre prontos a mudar. O que conta para eles, diz o autor, é o tempo, mais que o espaço que lhes toca ocupar. Por sua mobilidade são leves. Moldam-se a qualquer lugar, não importa qual forma se lhes ofereça. Importa o tempo presente de sua configuração, que logo se alterará, uma vez alterado o continente. E assim são as referências dos tempos de hoje, que derreteram e derretem padrões e configurações de conduta, as quais não são mais “auto-evidentes”. Longe disso, constroem-se e modificam-se, são maleáveis, não se mantêm por muito tempo; o espaço foi vencido pelas telecomunicações.

Se as questões humanas fundamentais jamais se alteram, as variáveis históricas condicionam sua explicitação. Assim como na Medicina muda a patoplastia quando há mudanças do meio, variações das condições de vida alteram nosso estar no mundo.

A pós-modernidade, em sua liquidez, traz consigo aquilo que Virilio (1984/1992) chama de “poluição dromosférica”, ao referir-se aos efeitos da velocidade das coisas que contamina os elementos, as substâncias naturais, a água, a flora e a fauna, e, mais ainda, o espaço-tempo de nosso planeta. A dimensão oculta da revolução das comunicações afeta o tempo vivido nas sociedades. O mundo está cada vez menos exótico, diz ele, tornase “endótico”, o que implica o “fim” tanto da exterioridade espacial como da temporal. Beneficia-se o único do instante presente, desse instante real das telecomunicações espontâneas.

A presentificação de nosso estar no mundo conduz a um sedentarismo talvez definitivo, em que o movimento de nossos corpos se dá somente a título de lazer ou de prescrição higiênica. É à distância que, através da tecnologia, passamos a controlar o meio ambiente. O movimento do trajeto concreto se rendeu às telecomunicações, ainda que, diga-se a bem da verdade, jamais se viajou tanto pelo mundo. Essa configuração paradoxal se insere numa sociedade do presente intenso, da perda da narrativa e, para alguns (Bauman, 2000), da perda da memória. Para estes, a figura, banalizada, dissimula a realidade das coisas em seu volume natural.

Com o império do presente vem associar-se a imperiosa ausência de qualquer obstrução à satisfação do desejo. A busca da satisfação imediata, sem tergiversação, é característica da nossa era. O espaço de tempo entre a irrupção do desejo e sua satisfação deve chegar ao zero. O presente eterno e o primado do prazer engendram uma fantasia do ser descontextualizado de tempo e espaço, como se fora a-histórico. Eles geram uma fantasia de autocriação, que tem sua expressão plena no selfmade man, o qual supõe uma autofabricação. Ou, como diz Salecl (2005), trata-se da “fetichização do ser autônomo”, que, no limite é a ideologia da autocriação, é corolária à ideologia da sociedade sem limites. Esta, continua a autora, encoraja o moto do “seja você mesmo”, sem uma reflexão acerca do que se está falando, que, por exemplo, conta com a propaganda da Nike, “Just do it”. Nesse contexto de reinvenção de si próprio, da criação de cada um, Walter Benjamin, justo aí, vê um substrato de uniformidade &– as pessoas lembradas afazer o que querem estão na verdade seguindo os ideais de padronização.

Quais as qualidades favoráveis à resiliência na contemporaneidade, além da plasticidade mental? Ou seja: o que favorece o enfrentamento das condições atuais, das adversidades específicas que elas impõem (cada época impõe as suas próprias), quais os caminhos não só para a sobrevivência como para o desenvolvimento emocional a partir daquilo que nos sucede no âmbito do mundo contemporâneo?

Tomemos para reflexão os modos de funcionamento mental em que ocorrem modificações características da dimensão do tempo, com o propósito de buscar os corolários, no mundo interno, da emersão das acelerações dromológicas a que nos referimos, permitindo-nos um pleonasmo, inverso, do mundo parado. Para exemplificá-lo, utilizemos, contraposta à pós-modernidade, a vivência de um personagem do filme O deserto dos tártaros (2003), de Dino Buzzatti. Deslocado até um quartel de fronteira para fazer a guarda, onde vivia sozinho, vigilante para o caso de vir uma guerra ou o ataque de supostos inimigos, ele via cada dia passar, monótono, sem que nada ocorresse. Pobreza de estímulos, lentificação da vivência.

Nossas vivências interiores, ancoradas nos afetos, são nuançadas pela variação da dimensão temporal. Refiro-me, por um lado, à depressão com sua característica alteração do tempo interno e, por outro, à mania. Naquela, a vivência interior de tempo é de lentidão, o pensamento é vagaroso, a dificuldade de acesso ao mundo externo e às próprias associações de idéias pode ser grande, há restrição da vida psíquica, diminuição da velocidade, dificuldade no decidir, no fazer, apatia, cansaço corporal, empobrecimento da subjetividade. Os deprimidos, no extremo, parecem congelados na imobilidade.

O ser no estado maníaco, por seu turno, parece se escoar na velocidade, aceleradas que são a vivência e as associações de idéias. Estas fluem, jorram, a ponto de surgir grande angústia por não poder o indivíduo contê-las dentro de si.

Tanto a depressão como a mania podem ter desencadeantes de ordem exterior e interior. Em ambos os casos, falham os instrumentos de manutenção de nossa homeostase.

Tomemos a analogia com nossa temperatura corporal. Fôssemos poiquilotermos, não poderíamos preservar a temperatura corporal constante. Também do ponto de vista psíquico, há a possibilidade de regulação e preservação homeostática de nosso mundo interno. Fazemos isso através de barreiras impostas entre nós e o exterior, às vezes até mesmo entre nós e nós mesmos, as quais nos põem, se não a salvo, ao menos protegidos da pobreza de estímulos que nos bombardeiam impiedosamente. Mas, assim como a regulação da temperatura corporal, nossa homeostase psíquica suporta uma gama de temperaturas externas. Aquém ou além delas a temperatura interior é perturbada, ocorre febre ou hipotermia. Podem ser muito graves, levar até à morte.

As dificuldades aparecerão na medida em que for ultrapassada a capacidade homeostática de cada indivíduo. Dá-se exatamente o mesmo com a estimulação emocional e, de modo mais amplo, psíquica. Com a diferença de que aqui, até certo ponto, podemos solipsística ou autisticamente nos isolar do entorno. No mundo da hiperestimulação, a invasão do mundo interno a todo momento por essas solicitações, com a conseqüente dificuldade da configuração do mundo interno em contato com barreiras definidas, passa a ser questão fundamental na relação eu-mundo. Como resultado, tem-se a pobreza de fantasias e repertório onírico, com o incremento das patologias psicossomáticas, das patologias da quebra de limites tipo borderline, daquelas ligadas a impulsos e suas satisfações, como os distúrbios alimentares, as adições (a drogas, sexuais, jogo etc.).

Poderíamos então nos perguntar: quais as adaptações necessárias para o ser humano que deve viver em baixas ou em altas temperaturas? Com altas ou baixas intensidades de estímulo? Talvez aí tenhamos uma pista de como começar a entender a resposta ao mundo em que vivemos. Não se trata, entretanto, de teorizar ou supor, e sim de observar como reage o ser humano, também do ponto de vista da patologia, à alta velocidade e à quantidade dos estímulos externos, para promovermos uma reflexão a respeito.

Ou, com outras palavras, quais as restrições, ou características, que o mundo exterior nos impõe? No calor excessivo, tendemos naturalmente a nos movimentar menos, ao passo que, no frio, nosso movimento é maior. Lembremos da expressão “tempo quente”, que denota barulho, confusão, discussões acaloradas.

Mais uma vez: o que nos ajuda na adaptação, ou melhor, na possibilidade de uma sobrevivência humanizada nos tempos de hoje? Quais os fatores de resiliência particularmente relevantes no momento atual?

Bem, a princípio devemos considerar a preservação de nosso mundo interno com certa autonomia em relação à estimulação intensa e permanente do meio exterior. Nossa reserva ecológica interna (Freud, 1911/1958), por assim dizer, é nosso mundo da fantasia &– em última instância, “de nossos sonhos”. As fantasias, sabemos, não são cópias passivas da realidade exterior, ao contrário, são transformações ativas dela a partir de nosso mundo interno. Os próprios registros das experiências exteriores contêm nossa marca pessoal, e, a partir deles, a vida mental é uma criação ativa.

Assim, preservar esse espaço da fantasia e do sonhar representa a possibilidade de respirarmos a subjetividade, de tão fundamental manutenção na atualidade. Para que haja uma interação efetiva com aquilo que nos cerca, pode ser de bom alvitre a existência, nessa subjetividade, de espaços reflexivos e criativos capazes de abarcar a ambigüidade, a incerteza, a ambivalência e a contingência (Elliott, 1997). O espaço reflexivo é essencial para a identidade em tempos pós-modernos, de tanto estímulo externo, de tanto controle por intermédio dos sistemas técnicos, os quais se contrapõem à extraordinária liberdade do mundo privado. Os espaços lúdicos, então, no mundo interno, apresentam-se na interseção que integra os processos da relação da realidade com aqueles oriundos do mundo da fantasia. A integração profunda entre a matéria da razão e as de emoção e de afeto reflete uma organização que possibilitará &– e esta é a questão &– articulações entre um estado subjetivo e o seguinte, conferindo ao ser humano seu senso de existência, de continuidade e de individuação. Em suma, o livre trânsito entre razão e emoção lhe dá a perspectiva de lidar com a realidade e a fantasia. E esse é um fator de resiliência da maior importância. Ele se relaciona também a uma qualidade mental já valorizada por Freud desde o início, que segue como característica de algo que se pode ter como favorável à vida humana &– a saber, a plasticidade.

Aliado a isso, estará a capacidade de preservarmos nosso limite e de sermos genuinamente nós mesmos, ainda que diante de pressões e invasões externas. Ou seja, a possibilidade de se estruturar um self verdadeiro, contraposto àquilo que se conhece como falso self, cuja tendência é tentar uma resposta adaptativa ao mundo externo, mas rígida e em detrimento de necessidades internas.

Viver hoje, no contexto que expusemos, pressupõe outras duas variáveis valiosas: vínculo e sentido. Se pudermos encontrar um sentido em nossas vivências, se pudermos vivê-las sob a primazia de vínculos significativos, então não só estaremos mais preparados para enfrentar o mundo que nos cerca, como também para usufruí-lo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Plinio Montagna
Rua Gracindo de Sá, 71 &– Jardim Paulistano
01443-080 &– São Paulo &– SP
Tel.: 11 3368-3364
E-mail: pmontagna@uol.com.br

Recebido: 26/05/2008
Aceito: 03/06/2008

 

 

* Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.

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