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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo fev. 2015

 

ESPECIAL

 

Busca de uma fotografia primordial, é possível?

 

 

Deodato Azambuja*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo

 

 

Só podemos avançar andando de costas para o futuro e olhando, ou nos orientando, pelo passado, por nossa história, por nossa experiência.

É também o que nos sugerem os versos de um poema de Antônio Machado:

Caminante, son tus huellas
el camino y nada más
(http://pt.wikipedia.org/wiki/Antonio_Machado).

Para nós psicanalistas e psicanalisandos, as principais huellas, ou pegadas desde o passado, são nossas várias linguagens (verbais afetivas etc.). São as verdadeiras estrelas dos caminhantes-navegantes que também somos; são nossa memória, nosso ser, nosso tempo, nossa história. Verdade que não basta a memória, pois ela, assim como nosso ser, é recalcada a todo momento. Desse modo, com a Fotografia buscamos ir além da memória. Mas não é suficiente, precisamos pensar e interpretar as imagens, pegadas ou fotografias, fundamentais na criação de nossos sonhos e devaneios, que nos dão várias aproximações do real por meio dos inúmeros processos de figurabilidade. Como instantâneos fotográficos, nossos sonhos cercam desesperadamente nossos desejos em busca ou em torno do real.

Nas minhas leituras esparsas encontrei, a propósito, a seguinte frase da poetisa Sophia de Mello Breyner Andresen: "Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real" (2004, p. 18). Eis que existem, pensei, muitos movimentos em busca do real.

Quais são, porém, as "fotografias" primordiais, na história de todo ser humano, que também perseguem o real? O fato de buscarmos com tanta avidez a criação de álbuns de família, além, é claro, da necessidade social de vários documentos e registros fotográficos, parece indicar a busca de fotografias primordiais.

Um momento simbólico fundante, primordial, é, sem dúvida, o que Lacan denominou de estádio do espelho. Esse momento tem conexão com o que Melanie Klein nomeou de posição depressiva.

Resumidamente, a meu ver, o trauma do nascimento inaugura a posição esquizoparanoide, e o trauma do desmame não inaugura, mas gira em torno do estádio do espelho e da posição depressiva. É o momento da descoberta do "Eu" pelo bebê.

Esse segundo momento traumático é o que constitui uma "pegada", "una huella", um "documento fotográfico" do bebê, de que ele existe, de que tem um corpo, um ser no mundo. É um registro, um documento do encontro de um corpo que se integra em uma imagem e ao mesmo tempo dá conta de sua história de fragmentação. E isso é um trauma mais importante, mais intenso, psiquicamente falando, do que o trauma do nascimento, que é muito mais corporal. Teremos agora, nesse segundo trauma, um "documento" psíquico, o "Eu", que irá acompanhar o bebê pela vida toda. Será seu futuro desde o passado; uma luta constante pela integração a partir dessa "pegada- imagem". "Fotografia" primordial.

Mas, em outros termos, em torno do que se trava essa luta pela integração e fuga do corpo despedaçado? Do narcisismo dos pais, que cria a imagem de "Sua majestade, o bebê", como descrito por Freud no seu artigo fundamental de 1914, "Sobre o Narcisismo". Vale dizer que o narcisismo vem não propriamente de um momento anterior ao Édipo, mas da historia do bebê que antecede o próprio bebê. O ser não é uma ilha.

Voltando à fotografia propriamente. Diane Arbus, fotógrafa americana que se suicidou aos 48 anos em 1971, escreveu: "uma foto é um segredo sobre um segredo, quanto mais ela revela, menos você sabe" (http://en.wikipedia.org/wiki/Diane_Arbus, tradução livre). O que quer dizer, elas não são reais, são recortes do fluxo da vida, do tempo. Fotos são estórias inventadas, em parte mentiras, pois nossa mente não tem a capacidade de separar um momento de outro e registrar cada momento com a precisão com que faz a fotografia. A memória que a câmera revela não esclarece coisa alguma. De fato, "the more it tells you the less you know". Pois aquele instante da foto nunca passou pelos nossos olhos – ou, antes, passou, mas nossa memória é incapaz de retê-lo do mesmo jeito que uma foto. Nossa memória recria estórias, sequências de acontecimentos. É assim que damos sentido ao mundo, à nossa própria narrativa. Nessa narrativa, fotos são como pesos de papel, pontuam instantes com sua presença absoluta e aparentemente inquestionável (aparentemente, pois é apenas um recorte).

Retomemos, porém, o que vinha desenvolvendo anteriormente sobre a descoberta do "Eu" pelo bebê. Descoberta que aproximo agora, como metáfora, ao instante fundamental em que o sujeito faz "pose" para uma foto. Roland Barthes, em seu livro Câmera clara (1980), faz uma magnífica análise fenomenológica, entre outras situações ligadas à fotografia, desse momento da "pose". Lembremos que o sujeito descobre o "Eu" exatamente quando a mãe, ou outro adulto, aponta o bebê para ele mesmo na frente do espelho, dizendo: "olha o Juquinha". Faz-se um gesto muito parecido com o gesto do fotógrafo antes do clique, chamando atenção do fotografado: "olha o passarinho, cheese, atenção etc.". E o fotografado faz pose com a maior vontade de aparecer bem na foto. O bebê parece feliz em agradar à mãe e a si mesmo.

Nesse momento o "Eu" se constitui, e se reconstitui várias vezes, em conjunto com o outro, seja a mãe, o fotógrafo, ou o analista quem sabe, ou os que verão a foto etc. Esse "Eu" nada mais é que um sintoma, um "empenho de unificação" nas palavras de Freud em algum lugar, complementando a metáfora da "Sua majestade, o bebê", empenho desesperado em oposição ao trauma da fragmentação do sujeito no real, observado desde o passado. O que pode ter a ver com a ideia de Clarice Lispector, ela mesma maravilhosa Mona Lisa, ao dizer: "[...] todos os retratos de pessoas são... Mona Lisa" (1964, p. 18). Pois posamos "importantes" nesses e em outros momentos.

Isso lembra o conflito entre as sombras projetadas pela luz proveniente do real, descrito desde o mito da caverna de Platão. E a fotografia tem tudo a ver com esse conflito, pois ela é a arte da luz e das sombras, das verdades e das mentiras da realidade, assim como os sonhos, uma das matérias-primas da Psicanálise.

 

Referências

Andresen, S. de M. B. (2004). Poemas Escolhidos. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Arbus, D. Recuperado em 27/05/2014: http://en.wikipedia.org/wiki/Diane_Arbus.         [ Links ]

Barthes, R. (1980). Câmara Clara. Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira.         [ Links ]

Lispector, C. (1964). A Paixão segundo GH. Rio de Janeiro: Ed. Rocco.         [ Links ]

Machado, A. Recuperado em 27/05/2014: http://pt.wikipedia.org/wiki/Antonio_Machado.         [ Links ]

 

 

* Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.