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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo fev. 2015
ARTIGOS
Entre os filmes "Cisne Negro" e "O Lutador": duplos, alegorias e a questão da morte da significação
Between the films "Black Swan" and "The Westler": doubles, allegories and the question of the death of the significance
Richard de Oliveira*,I; João A. Frayze-Pereira**,I,II
I Universidade de São Paulo
II Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
RESUMO
Este trabalho propõe um exercício de psicanálise implicada na arte. Seu objetivo é realizar uma leitura do filme "Cisne Negro", considerando o processo de sua criação. Nesse sentido, fomos levados a compará-lo com outro objeto estético – o filme "O Lutador" – do mesmo diretor. Dessa comparação, surgiram as questões do duplo, do estranho e da alegoria que implicaram uma reflexão sobre o modo banal de interpretação dos objetos artísticos e sobre a questão da morte da significação.
Palavras-chave: Cinema, Duplo, Alegoria, Interpretação.
ABSTRACT
This paper proposes an exercise in the art of implied psychoanalysis. Its goal is to analyze the film "Black Swan", considering the process of its creation. In this sense, we were led to compare it with another aesthetic object – the movie "The Wrestler" – by the same director. From this comparison emerged some issues – the double, the strange and the allegory – that implied a reflection on the banal way of interpreting the artistic objects and on the question of the death of significance.
Keywords: Cinema, Double, Allegory, Interpretation.
Propomos neste artigo um exercício de leitura do filme "Cisne Negro" (2010). Sob a direção de Darren Aronofsky e estrelado por Natalie Portman, esse filme foi o grande vencedor da 26ª edição do Spirit Awards (Oscar do cinema independente), com prêmios de filme, diretor, fotografia e atriz. Também, na entrega do Oscar de 2011, ganhou o prêmio de melhor atriz. E, além dessa aclamação, mobilizou críticas que geraram polêmica.
No Brasil, por exemplo, dois críticos importantes manifestaram-se: Inácio Araújo e André Barcinski. Por um lado, Araújo (2011) realizou uma apreciação negativa do filme, colocando-o como uma tentativa malfadada de aprofundar a questão arte-vida. Em especial, diz o crítico, a obra fracassa pela obviedade dos seus temas, não oferecendo nada mais do que "[...] uma estética expressionista aplicada a um tema puramente psicológico, com vistas a impressionar os impressionáveis" (Araújo, 2011). Barcinski, por outro lado, fez uma avaliação positiva, apontando que a felicidade do filme é ter realizado a poética do cineasta, a partir da tematização do perfeccionismo estético e de seus terríveis destinos, bem como a questão da realização da obra em comunicação com a vida. Diz Barcinski (2011): "Aronofsky cria aqui um personagem que precisa ir ao limite de suas capacidades para poder se descobrir". Ou seja, esse crítico elogia na obra justamente o que para Araújo parece faltar: a operação poética que converte os conteúdos não artísticos em forma artística. Então, fica a pergunta: realizada ou não, quais seriam as características dessa forma particular?
Entre os psicanalistas, o filme não passou despercebido. Encontramos alguns artigos que exploram a obra com diferentes estratégias de leitura cujos resultados, entretanto, são análogos.
Por um lado, o filme não é tomado como obra de arte, mas apenas como pretexto para a aplicação e verificação de teorias e conceitos psicanalíticos, tratando o objeto cultural como material clínico (Duarte, 2012; Gregório, 2012; Luz, 2011; Tinoco, 2012). Por outro lado, o filme não é tomado como ilustração de questões clínicas, mas como material cultural (Wu, 2012). Porém, mesmo nesse caso, o filme é abordado como desprovido de linguagem própria, isto é, estética, e a interpretação considera a dinâmica e a forma do objeto analisado como exemplificação de ideias psicanalíticas. Em suma, essas maneiras de ler o filme inserem-se no campo da chamada psicanálise aplicada, resultado de uma prática psicanalítica que considera o objeto cultural como ilustração dos conceitos aplicados a ele para interpretá-lo. E, como sabemos, essa maneira de realizar a psicanálise é criticada por diferentes autores, tanto entre filósofos (Ricoeur, 1977) quanto entre psicanalistas (Green, 1994).
Entretanto, existe um modo de articular a psicanálise e a arte sem o risco do reducionismo. Trata-se de uma maneira que, ao contrário de propor explicações, coloca interrogações, deixando surgir as provocações que a obra faz ao espectador, à maneira de Freud em "Moisés de Michelangelo" (1914). Nesse ensaio, Freud se deixa interpelar pela obra e considera a forma da peça e o seu processo construtivo, antes de propor qualquer interpretação. Trata-se de uma maneira de trabalhar que entendemos como "psicanálise implicada" (Frayze-Pereira, 2010), uma perspectiva que considera a singularidade do objeto a ser analisado e elabora a interpretação para ele, na medida dele. Em última análise, é uma perspectiva segundo a qual o espectador-analista encara a obra como seu outro, isto é, como aquele que exige de nós criação para dele podermos ter experiência (Merleau-Ponty, 1971, p. 187). Então, para realizarmos nosso exercício de leitura, é preciso considerar, inicialmente, a montagem do filme.
A montagem do "Cisne Negro"
A principal referência do "Cisne Negro" é o balé "Lago dos Cisnes". Encenado pela primeira vez em 1887, em Moscou, com música de Tchaikovsky (encomendada pelo lendário Bolshoi), esse balé é baseado em uma leitura francesa de um conto alemão que narra a história da princesa Odette, capturada e encantada pelo feiticeiro Rothbart. Condenada a ficar sob as formas de cisne branco durante o dia e de donzela à noite, esse feitiço seria quebrado se ela fosse resgatada por um homem que a ela jurasse amor eterno. Em um passeio noturno, o Príncipe Siegfried encontra Odette, por ela se apaixona e promete-lhe o seu amor. Porém, logo em seguida, em uma festa em seu castelo, o príncipe é ludibriado pelo feiticeiro que lhe apresenta sua filha, Odille (o cisne negro), disfarçada de Odette, que também o leva a jurar amor por ela. Quando o príncipe percebe o ludíbrio e volta ao lago, Odette revela que, dada a traição, ela deve se matar ou, então, viverá eternamente sob a forma de cisne. Siegfried, ao saber que seu destino está mudado para sempre, decide morrer com ela. Então, os dois apaixonados se lançam no lago, Rothbart perde definitivamente todo o poder e o casal permanece unido para sempre na vida após a morte (Balanchine, 1989; Beaumont, 1952). Se nos voltarmos, agora, ao filme, é possível percebê-lo como uma reinterpretação cinematográfica do conto que serve de base ao balé, apresentando-o como um drama individual vivido por uma personagem contemporânea. Nina é essa personagem cuja relação com sua mãe é problemática, assim como é tensa a sua vida profissional no ambiente competitivo do balé. Durante o filme, a personagem se apresenta com uma infinidade de questões psicorrelacionais. Mas, o que se deve considerar é que ela é deliberadamente composta pelo diretor como um tipo definido com traços psicopatológicos. Para isso, interessado pelo tema da loucura e pela psiquiatria, Aronofski buscou referências em outros filmes como, por exemplo, "Repulsion" (1965), dirigido por Roman Polanski. E, então, apresenta um quadro que se relaciona ao estado de encantamento expresso no conto. Ou seja, do mesmo modo que a princesa está aprisionada na forma de cisne branco, a personagem Nina está constrangida em uma situação psíquica de infantilização. Essa montagem de fato foi feita, como se comprova com a leitura das entrevistas realizadas com o diretor e com Natalie Portman, ela mesma psicóloga formada em Harvard, cuja apreciação da personagem se resume na seguinte afirmação: "[...] é um caso de comportamento obsessivo-compulsivo" (Longsdorf, 2010). Além disso, podemos perceber a figura do bruxo duplicada parcialmente na mãe de Nina, figura perversa que toma a filha como objeto de seu desejo, e, parcialmente, no coreógrafo, devido à forma também perversa com a qual dirige o balé, além do modo como promove a metamorfose de Nina, exigindo a sua transformação. Paralelamente, podemos ver Lily, rival de Nina, como cisne negro, e, ainda, até certo ponto, ver o coreógrafo como uma espécie estranha de príncipe Siegfried, situado "entre" o branco e o negro, entre Nina e Lily.
Assim, nesse esquema da montagem, temos dois planos narrativos: a história do balé e a história de uma garota mentalmente comprometida. E uma forma explícita em que eles se articulam alegoricamente: uma reencenação do conto alemão que inspira o balé cuja alegoria central, a romântica princesa-cisne, seria encenada por outra alegoria, o paciente psiquiátrico contemporâneo.
Ora, se essa fosse a proposição da obra, teríamos que concordar com Araújo, pois ao apresentar o personagem principal como um caso clínico estereotipado cuja vida, tal como representada no filme, nos levaria a tecer relações com o conto, estaríamos limitados apenas a uma dança de alegorias, o que tornaria impossível uma leitura que pretendesse apreender a poética da obra. O leitor operaria com uma das facetas da expressão alegórica, que se configura como uma apresentação imagética que não é mais do que a representação de um dizer, de um conceito, considerando o que Benjamin (2011, p. 175) observa, a "diferença entre a representação simbólica e a alegórica" está em que "esta significa apenas um conceito geral, ou uma ideia, diferente dela mesma, enquanto aquele é a própria ideia tornada sensível, corpórea". Assim, no filme, teríamos a personagem do conto, de um lado, e a personagem mentalmente comprometida, do outro, referindo-se continuadamente uma à outra, alternando-se como forma e conteúdo, mas em uma relação apenas de convergência, superficial e previsível. O resultado dessa interpretação seria nada poético, contrariando uma das características centrais de uma obra de arte, que é justamente ser polissêmica, ser um objeto sensível de inesgotáveis sentidos (Pareyson, 1997, pp. 223-37).
No entanto, essa não nos parece ser a única perspectiva oferecida pelo filme. Há outra cuja apreensão não é imediata. Construída também a partir do encontro entre estes dois eixos roteirísticos (o conto e a vida da protagonista), ela configura uma visão ancorada no campo da estética, exigindo do espectador uma reflexão sobre o fazer artístico, dada a introdução do próprio balé no filme. Desde que este é uma produção artística, é preciso observar, em especial, que ele é a realização de um projeto dentro do qual é abordada precisamente a questão da relação entre vida e obra em um processo de criação. Nesse caso, o jogo é complexo, pois envolve diferentes linguagens, além do próprio cinema, articula a música, a literatura e o balé. Esse jogo entre planos, jogo promovido pela tematização da realização estética, é, afinal, o que confere um sentido ambíguo ao próprio filme. E, assim, pode-se ver que o seu grande tema é a própria criação artística.
Considerando toda uma série de encenações do "Lago dos Cisnes", pode-se seguramente afirmar que é a questão da interpretação que distingue esse balé em relação a outros. Não se trata de uma interpretação qualquer, mas de uma interpretação cujo teor dramático é tipicamente romântico. A música de Tchaikovsky surge como um emblema desse projeto, assim como a exigência de dramatização para a dança que essa música convoca (Wiley, 1985). Se o balé se baseia em um conto popular, ele o reencena, seguindo um projeto romântico que sempre exige uma interpretação e confere aos personagens do conto uma interioridade anímica de caráter dramático a ser expressa em forma de arte – tarefa pertinente, talvez, para a escrita, mas desafiadora para o balé, uma vez que este se vale não de fala e símbolos linguísticos, mas do corpo cujo poder expressivo, de caráter silencioso e analógico, transmite mensagens sempre enigmáticas. É a essa demanda de dramatização do balé que, no filme, o coreógrafo tenta responder. A sua ação é fundamentalmente o gesto que desencadeia a trama do filme, constituindo um dos seus eixos principais. Com efeito, se o conto em que se baseia o balé original é o pano de fundo da trama fílmica, não se pode perder de vista que a realização do balé é o eixo central dessa trama.
Nesse sentido, podemos aprofundar a análise, indagando qual seria o projeto artístico a realizar, a partir do coreógrafo. Na abertura do filme, ele explicita que deseja fazer uma releitura impactante do balé e que, para isso, precisa enfatizar a interpretação do cisne negro, enquanto "duplo maligno" do branco. Desse modo, pretende aproximar os dois cisnes, usando a mesma dançarina para ambos, condensando violentamente, na execução, todos os conteúdos dramáticos que habitam, de forma mais ou menos latente, a obra original. É, então, a partir dessa ideia que o coreógrafo constrói a sua interpretação precisa do balé. E é a partir desta, recusando a cisão entre o branco e o negro, e pretendendo enfatizar o conflito entre os contrários no interior do mesmo ser, que o coreógrafo escolhe Nina como sua intérprete principal: ela encenaria perfeitamente o cisne branco, face ingênua, corpo de extrema leveza, com movimentos de extrema precisão técnica, mas, também, uma intérprete ideal para o cisne negro. Por que ideal?
As razões que fundamentam a escolha de Nina para o papel de cisne negro evidenciam-se gradualmente ao longo do filme, pois, desde o começo, apresenta-se esse "duplo" oculto em Nina, ensaiando o seu nascimento. As marcas corporais em Nina cujas causas ela desconhece, as cenas com espelhos e vidros, assim como algumas situações de confusão identitária, são eventos que manifestam de forma sinistra o "duplo oculto". Em outros momentos, como no instante em que ela morde o coreógrafo ao beijá-lo, são reveladas uma sexualidade e uma agressividade potentes, ainda que desconhecidas. Ou seja, são perceptíveis muitos elementos na trama que marcam uma pré-aparição do cisne negro, presente em Nina de forma latente.
Alucinações? Delírios? Cisões? Podem-se ver esses elementos como perturbações psíquicas, dado o caráter da personagem. Isso é o plano de apreensão imediata. Está explícito. Mas, também, podem-se percebê-los como aspectos de um encanto. O encanto de princesa em cisne, que é o ato disparador da narrativa, uma operação que se encarna no corpo de Nina, no destino de se tornar cisne negro, como figura complementar ao branco. Ou, ainda, nas supostas "questões psicopatológicas", nas manifestações perturbadoras que aludem ao "outro" oculto, podem-se ver sinais premonitórios de uma obra em curso, uma espécie de encanto por meio do qual o artista está fadado a criar, justamente no seu exercício de liberdade. E, nesse ponto da realização de uma obra de arte, não há diferença entre ser mentalmente doente e manifestar, na sua encarnação no mundo, a expressão perfeita de uma experiência de dualidade trágica, uma vez que a forma artística conferiria à doença um caráter metafísico. Ou seja, a doença não seria "[...] um fato absurdo e um destino para se tornar uma possibilidade geral da existência humana, quando enfrenta de maneiras consequentes um dos seus paradoxos: o fenômeno da expressão [...]" (Merleau-Ponty, 1975, p. 122)
Com efeito, Nina era, do ponto de vista artístico, a bailarina perfeita para encenar o cisne branco e o negro, a bailarina perfeita para a realização do projeto coreográfico, como o próprio coreógrafo explicita ao escolhê-la. E na realização de um projeto artístico, que se confunde com a vida da bailarina, tal como concebida pelo diretor do filme, podemos entender o sentido profundo de seus atos, aparentemente caóticos, mas que se encaminham logicamente para a encenação do cisne negro. Nina encontrou o seu balé, mas de início não sabe. É o coreógrafo (diretor) que pressente (concebe) esse encontro.
O coreógrafo pressente na bailarina a presença de um "duplo", de um estranho contido em sua própria forma, e exige que ela o liberte, contestando a tessitura do real, para que a dramatização poética se realize. Nesse caso, não um duplo qualquer, mas, tal como concebido pelo diretor, trata-se do duplo que reconhecemos na tradição romântica e que é negado por toda a tradição iluminista e progressista – o duplo encarnado na noite, na loucura, na sexualidade, na morte, na subversão e no estranhamento. Esse duplo requisitado é precisamente a figura do doppelganger (Rank, 2013), o duplo que aparece, além do folclore europeu, também em obras literárias, como, por exemplo, O médico e o monstro (1886), de Stevenson, e O Horla (1887), de Maupassant, obras que nos remetem ao conceito de unheimlich, o "estranho familiar" (Freud, 1919). É uma figura que nos espreita em nossas próprias sombras, pronta para, em certo momento, nos surpreender. Mas, acima de tudo, para abrir uma fissura na tessitura da realidade cotidiana, sempre ilusória, e nos apresentar o abismo não aparente do nosso mundo seguro. É precisamente esse duplo, e seu efeito dramático, que o coreógrafo busca incorporar no balé por ele idealizado. É ele que o diretor também deve ter elaborado ao dizer que se baseou, para compor o enredo do filme, na novela O Duplo (1925), de Dostoievski (Applebaum, 2011).
Para operar esse "nascimento", pode-se dizer que Nina entra em "vórtice" (Hermann, 1999, p. 16). Experiências com o próprio corpo, com o uso de drogas, a contestação da ordem vigente (mãe) e o retorno compulsivo a uma origem mítica (visitas à bailarina aposentada) são elementos que ela, enquanto personagem total, vive e incorpora de forma a se tornar a intérprete necessária. Aqui, vemos claramente que o balé encena um mito, senão universal, coletivo e histórico: o mito do poeta, pressuposto pelo artista romântico (Frayze-Pereira, 2010, pp. 194-99). Ou seja, Nina busca desentranhar os seus próprios sentidos ocultos e libertar a polissemia desses sentidos contidos em um corpo reificado e disciplinado. Trata-se de um exercício de libertação que desemboca em uma encenação trágica segundo a qual a ascensão simbólica se plasma à queda do corpo vivo, isto é, da própria vida. E o que resulta desse processo que se perfaz de modo doloroso é a composição de si como cisne negro, isto é, uma interpretação perfeita.
Porém, realizada com perfeição, para além da obra artística projetada pelo coreógrafo, o que mais restaria? De que forma essa performance artística se comunicaria mais amplamente com a vida da personagem, para além de capturar essa vida para a realização de uma encenação perfeita? Se a vida realiza a obra, qual seria, em contrapartida, o efeito da realização da obra na vida?
Pensar que a trajetória da personagem no filme se encerra na entrega a um duplo aterrorizante entra em conflito, de forma clara, com o fim do filme, quando, tornando-se novamente cisne branco, Nina percebe ter levado ao limite o perfazer da realização estética. Contrário à entrega total a um princípio obscuro de despersonalização e caos, que preside a formação do cisne negro, o final do filme aponta para uma integração satisfatória entre as facetas da personagem, a partir de sua performance artística. Ou seja, o que a realização do balé lega à vida de Nina é uma realização existencial, que seria possível sondar com mais cuidado. Se o filme alude em seu término à destruição da vida, ele também aponta para uma plena realização artística, portanto simbólica. Novamente, com base em Merleau-Ponty (1975), podemos dizer que em um processo de transcendência, Nina realiza uma vida artística, articulada ao seu ser, que supera a sua vida imediata. No final do filme, Nina diz – "Perfeito". Mas como entender mais precisamente esse processo que se perfez e como ele se articula com a questão do duplo?
Se até aqui, observando os aspectos românticos que compõem a obra, procuramos oferecer outro vértice, propriamente estético, para o entendimento da presença da psicopatologia no filme, com o propósito de explorarmos com mais profundidade as questões suscitadas acerca de polaridades essenciais entre vida, arte e morte, que definem o sentido ambíguo do filme, teremos que abandonar o campo da representação – formado pelos conteúdos manifestos que se oferecem à interpretação, que aludem às questões não exclusivamente artísticas – para passarmos ao campo da apresentação – a forma do filme e sua poética própria, dando atenção às mediações estéticas pressupostas que subjazem à sua constituição como obra artística.
As questões do duplo e da alegoria: uma mediação necessária
Tematizar a ideia do duplo, a partir do encontro entre o conto alemão e a história de uma personagem mentalmente perturbada, foi um projeto explicitado por Aronofsky, que se inspirou em uma novela de Dostoievski para realizar o filme. Entretanto, vale lembrar que o uso do duplo aterrorizante stricto sensu é compatível apenas com livros e filmes de terror, não sendo adequado para a obra em questão, tal como exposto acima, dado o desfecho do filme. Assim, qual seria a natureza desse duplo que, sendo trágico, desemboca em uma realização estética bem-acabada, e não em dilaceramento total da personagem?
Para respondermos a essa questão, podemos pensar em outros aspectos do duplo, para além de seu caráter sinistro. Se, por um lado, temos essa figura – unheimlich – aterrorizante, vale lembrar que o duplo, ao mesmo tempo e complementarmente, é a figura que foge às identificações preestabelecidas e banais (Gebra, 2011). Ele se presta a ser um veículo ambíguo que opera a fuga de uma identidade fechada e possibilita um empreendimento criativo que, por sua vez, opera com um sentido de não identidade, exigindo o reconhecimento do "outro" em si mesmo; outro que, ao não se adequar a uma identidade ensimesmada, como dissemos anteriormente, exige de nós certa elaboração para dele ser possível termos alguma experiência.
A partir dessas considerações, pode-se pensar que o sentido último do ato de Nina é, por meio do processo artístico, retirar sua vida da situação de alienação sob o olhar opressor e objetivante dos outros (mãe, coreógrafo, bastidores da arte) e, por meio de uma travessia promovida por um duplo, diferenciar o sentido de sua existência, reabilitando a sua dignidade através de um projeto estético possível. Assim, o olhar que fixa a personagem em um papel, atribuindo-lhe uma identidade de figura submissa e controlada, é desnorteado, ao se deparar com a expressão trágica, como mostram os olhares da mãe e do coreógrafo nas cenas finais do filme. Além disso, esse gesto ilude as interpretações fáceis e estereotipadas, oferecendo a essas, como armadilha, a superfície da expressão alegórica, que é banal, em cujo plano essas interpretações acreditam encontrar sua realização hermenêutica. Tal gesto fere essas interpretações, ferida que subsiste como monotonia estética que desconvida o leitor crítico a tomar a interpretação psicanalítica da obra como pertinente (Thévoz, s/d). Esse gesto, enfim, é garantido por uma segunda possibilidade da forma alegórica, que é a de, em um mundo violento e maléfico, guardar em segredo e a salvo as formulas éticas da redenção (Benjamin, 2012, p. 183).
No entanto, a forma de expressão alegórica não é apenas ocultamento, mas também a possibilidade de outro dizer. Ainda com Benjamin, podemos afirmar que, opondo-se à plenitude e à perfeição do símbolo, a forma alegórica, em sua própria decadência (expressa na ausência de profundidade de sua aparência) e em sua própria aleatoriedade entre conteúdo e expressão (deixando qualquer coisa tomar lugar de outra), inscreve a morte, a ruína no próprio processo de significação. Como diz Benjamin, "[...] a alegoria está no reino do pensamento, o que as ruínas são no reino das coisas" (2011, p. 189). Mas se o processo de significar, em um contexto opressivo, implica a morte progressiva da coisa, a alegoria subverte essa relação. Ao inserir no processo de significação o seu próprio apagamento, a alegoria desloca a questão do significado para o processo de significar (Benjamin, 2011, p. 191), deixando à mostra a crise interna do significado, seu dilaceramento, neutralizando o poder da significação de dominar e de fazer esquecer. E, enfim, deixa os rastros de uma ruína que pode, ao testemunhar a morte da coisa significada, salvá-la enquanto um dizer, que, enfim, é apenas um silêncio, uma negatividade, um não querer ser o que se dá a ver. Ou, ainda, este gesto humano, enobrecido pela forma estética, que ultrapassa o dizer por meio de sua ambiguidade constitutiva, se vinga das linguagens instituídas com suas normas e poderes que tornaram esse gesto radical necessário. Esse gesto não rompe com um destino inexorável através de uma alternativa, mas, vivendo esse destino de forma estética plena, deposita um silêncio violento no próprio mundo social, expondo sua crise, que é ao mesmo tempo a crise de sua linguagem transparente. É justamente esse gesto que expressa o herói trágico (Benjamin, 2011, p. 111). No entanto, se, outrora, o sacrifício desse herói visava despertar e purificar os sentimentos de compaixão e medo pelo outro, aquele a quem o destino inexorável imolou, na modernidade, o trágico desperta no homem o sentimento de compaixão e medo de si mesmo: compaixão de si, por ter apenas a si mesmo como companhia; medo de si, por ter a si mesmo como companhia inelutável (Machado, 2006). E é nessa companhia de si que se inscreve, na tragédia tipicamente moderna, a necessidade do duplo, personagem que teatraliza a profunda crise constitutiva da subjetividade moderna, essa mesma crise que ofereceu espaço ao pensamento freudiano.
Dessa forma, elucida-se um pouco o sentido da expressão que se encontra no filme. A vida miserável da personagem seria uma espécie de microcosmo da sociedade contemporânea, onde reina o "vazio", o pensamento reificado e unidimensional, e a hegemonização das formas de vida e de expressão. O personagem do coreógrafo e o diretor do filme necessitam da vida de Nina, mas em planos diferentes. Para o coreógrafo é a realização de um balé dramático que o guia. No caso do diretor, mais do que isso, o projeto é mostrar, por meio da transformação de uma vida em obra de arte, que, ao entregar o corpo à interpretação, Nina transcende a sua existência oprimida por intermédio de uma figura alegórica que a realiza com outro sentido. Nesse processo, ela se expressa de forma íntegra e trágica, com os sentidos ocultos que lhe pertencem.
"O Lutador": duplo do Cisne
Essa interpretação é corroborada por uma breve incursão na poética do diretor, sobretudo se considerarmos outro filme seu, "O Lutador", "irmão gêmeo" do "Cisne Negro", espécie de duplo, segundo o próprio diretor (Ezabella, 2011). Nesse filme, é encenada a vida de um lutador de luta livre, Robin Ramzinscki, adorado e glorificado em outros tempos, mas em franca decadência. Uma vida arruinada: uma doença cardíaca, alcoolismo, esteroides, relações instáveis, uma filha que abandonou quando pequena. No filme, são traçados vários movimentos de reparação, tentativa de recuperação de uma suposta vida "saudável", "normal" e "feliz", bem como gostam de prescrever os ortopedistas morais (Foucault, 2008). Porém, uma análise menos imediata pode perceber que essa vida foi uma existência entregue à luta, e que foi por intermédio do seu duplo, o "Carneiro", que o personagem encontrou a si mesmo e a redenção.
Como um sumotori, que encena sua luta para os deuses, Robin enfrenta seu desafio final, visando à transcendência produzida a partir de seu corpo. Ou seja, trata-se da realização da vida a partir de um projeto estético, que envolve a profunda relação com uma identidade alegórica, lembrando que a luta livre também é uma atividade circense, na qual o uso de alegorias é parte intrínseca do espetáculo. Nessa obra, a temática trágica que a percorre não é expressa pela convivência de princípios contraditórios, como no "Cisne Negro", mas percorre um eixo temporal, a relação do mito com seu auge e com sua ruína; não é a coexistência insuspeita do branco e do negro, mas a distância mítica entre a glória e o ocaso. Assim, Robin retoma gloriosamente seu passado mítico a partir de um ritual de sacrifício.
Em suma, Aronofsky trabalha com duplos. Mas, através de leituras diversas, amplia artisticamente o tema, elabora-o em seus paradoxos, e abre um campo de interrogação, inclusive para a psicanálise. Pois seus duplos, além de portarem o sentido de um destino trágico inexorável, aparecem como imagens que possibilitam o trânsito do efêmero para o eterno e do singular para o universal. A poética dos duplos de Aronofsky não se restringe ao script, mas se estende à escolha dos atores, uma vez que para os papéis principais nos dois filmes foram escolhidos Mickey Rourke, ator e ex-lutador de boxe cuja carreira estava em franca decadência, e Natalie Portman, atriz conhecida pela beleza e perfeccionismo, mas também pela escolha de filmes difíceis que contrariam o padrão blockbuster de Hollywood. Mais ainda, em ambos os filmes, além dos atores relatarem um desgaste físico e psíquico monumental devido ao projeto, Aronofsky deixou que eles usassem seus conhecimentos e experiências na montagem dos personagens e das falas. Ou seja, o projeto de Aronofsky tomou arriscadamente os atores como duplos de seus personagens, consumiu seus intérpretes (Horowitz, 2008; Longsdorf, 2010). A partir de mais um jogo de duplos, embaralhou a relação vida e arte para além do conteúdo do filme. Nessa medida, pode-se dizer que esse vertiginoso jogo é parte essencial das duas obras artísticas analisadas.
O cisne negro de Nina e o carneiro de Robin são figuras misteriosas que encerram sentidos existenciais profundos cujo acesso nos é dado nas suas performances corporais. São tais ações que, em um exercício de realização estética e ao mesmo tempo de ascese redentora, perfazem a sua obra e a sua salvação, pensada esta como realização da dignidade humana. Ou seja, a abertura que essas figuras exigem de nós, intérpretes, para com elas termos contato, é eminentemente estética. Ou melhor, não requer a aplicação de uma teoria psicanalítica, mas a escuta implicada de um objeto singular que, como toda coisa sensível situada no mundo, ao se caracterizar pela ambiguidade, presença-ausência e inesgotabilidade de sentidos, pede uma atitude que desenvolva uma reflexão sobre a existência.
Assim, mediada por uma consideração acerca da questão da alegoria e da figura do duplo, chegamos a uma tematização cara à psicanálise: a ideia de um princípio de não identidade, subjacente ao estranho em nós mesmos, que apenas nós podemos enfrentar, apesar do mal-estar, para interrogarmos a alteridade que nos habita. Mas, também, é um tema caro à arte. Sem dúvida, não seria o trabalho do artista, na sua interpretação e expressão das coisas, interrogar o mundo comum, revelar suas dobras e sombras insuspeitas, trazer à tona algo novo que possa romper o campo do cotidiano banalizado? O artista faz isso com um trabalho de interrogação que necessita um deslocar-se de si mesmo, em busca da alteridade radical cujos signos premonitórios ele pressente no mundo em que vive, subjetiva e objetivamente, e que se materializa na criação de um objeto artístico, absolutamente singular (Pareyson, 1997). E sabemos que o psicanalista também faz isso ao seu modo, isto é, com a interpretação, especialmente, quando esse trabalho, implicado na matéria que interpreta, torna-se "arte da interpretação" (Herrmann, 1991).
Mas, ainda podemos perguntar, para onde vai essa figura, essa vida simbólica, que se levanta a partir do corpo e da comunicação humana? Não se sabe. E esse é um possível sentido para ambos os filmes analisados, nos quais, na cena final, quando se vislumbra possivelmente a morte, a cena é cortada e ficamos sem saber se os personagens morreram ou não. Os filmes não apresentam o encerramento da vida de nenhum deles, mas a indeterminação do destino de uma existência que é sempre "[...] uma vida que interpreta a si mesma livremente" (Merleau-Ponty, 1975). É a esse tipo de experiência ontológica que os filmes, em última instância, fazem alusão por meio da narrativa dos personagens, seres feitos apenas de imagem e som cuja coesão estrutural e expressiva se apresenta a nós, seus espectadores, como forma artística.
Ora, dada certa visão instrumental que institui um saber e um poder disciplinares sobre a vida biológica, psíquica e social, até que ponto essa visão não impede que a indeterminação possa operar sobre o nosso entendimento? E, nesse percurso constrangido, até que ponto, no lugar da alteridade, o que vemos é apenas um espelho silencioso de nós mesmos? Esse é um ato de grande violência, pois essa visão compactua com um movimento antigo, porém totalmente atual, que consiste em ideologicamente retirar a palavra justamente dessa experiência ontológica humana que a tragédia universaliza. E é contra essa condenação ao silêncio que tanto a psicanálise quanto a arte, amparadas em certa ética trágica, devem se posicionar. Cabe, então, ao trabalho de interpretação, assim como às obras, facilitar a emergência do duplo e criativamente oferecer-lhe um lugar digno para que ele possa se manifestar. A sua singularidade, assim, estaria preservada e sua expressão garantida; e, principalmente, garantida estaria, não sem alguma luta, a possibilidade do olhar descentrado, aberto ao desconhecido, que obras como as que tomamos em consideração têm o poder de promover.
Referências
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Endereço para correspondência
RICHARD DE OLIVEIRA
Rua Poetisa Colombina, 381
05593-010 – São Paulo – SP
E-mail: kir_ricardo@hotmail.com
JOÃO A. FRAYZE-PEREIRA
Rua Joaquim Antunes, 727, cj.72
05415-012 – São Paulo – SP
E-mail: joaofrayze@yahoo.com.br
Recebido: 19.11.2014
Aceito: 05.12.2014
* Mestrando do programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (FAPESP). Pesquisador do Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte do IPUSP.
** Membro efetivo-docente da SBPSP. Professor Livre Docente do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP e do Programa de Pós-Graduação em Estética e História da Arte da USP. Orientador de pesquisas do Laboratório de Estudos em Psicologia da Arte do IPUSP.