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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo jan./jun. 2020

 

LITERÁRIAS

 

Allegro ma nem tanto

 

 

Pedro Desiderio

Bacharel e licenciado em História pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Graduando em Psicologia pela Universidade Paulista. Graduado e mestre em arte marcial Pa-Kua, pela Liga Internacional de Pa-Kua, Buenos Aires, Argentina, da qual é membro. E-mail: pedrohdesiderio@gmail.com

Correspondência

 

 

Marcus era definitivamente um homem metódico. Tinha lá seus rituais diários, ou, como costumam confundir por aí, tinha suas manias. Mas ele mesmo sempre dizia "e quem não tem? Quem não entra sempre primeiro com o mesmo lado do corpo no chuveiro? Quem não começa escovando os dentes sempre pelo mesmo lado da boca? Quem, por Deus, muda o tanto de colheres de açúcar que coloca no café?". Usava sempre tons de verde-escuro em suas vestimentas e uma bengala de madeira, pois a perna esquerda já não tinha mais jeito. Nas ruas já era tratado como "senhor". Inclusive na praça, era bem conhecido. O senhor Marcus era simplesmente o melhor enxadrista da cidade. Uma de suas manias, odiada pelo povo, era a de jogar a bituca do cigarro na escada de entrada da igreja enquanto caminhava às mesas de xadrez.

Marcus era, convenhamos, muito peculiar. Casado com Madalena, preferia estourar seus miolos na parede do escritório a traí-la. Para alguns, o homem era motivo de orgulho, para outros, de escárnio. Até as crianças conheciam a fama do major Marcus. Participara da leva brasileira durante a Segunda Guerra Total. Lutou com sucesso ao lado dos estadunidenses contra os italianos do eixo. Enquanto algumas crianças batiam continência quando ele passava, outras tinham pesadelos horríveis ao ouvir suas gargalhadas medonhas nas madrugadas em que ficava na praça. Ria tanto ao lembrar-se de como o inverno branco assombrou Hitler ao redor de Moscou, que dava até medo.

A figura era mais comentada mesmo por suas atitudes singulares, e quem mais conhecia essas era a senhora Madalena. A preocupação do tempo e da memória deixara suas marcas irreparáveis nas rugas, mas o sorriso afável as ofuscava, e tricotava como ninguém, nem é preciso dizer da magia que fazia numa cozinha com uma panela velha. Madalena trabalhava na copa como um alquimista no auge de sua sabedoria, a perfeita combinação dos temperos e ervas traziam gatos e aves para suas janelas, sem contar os olhos gordos dos vizinhos. A senhora queria sanar algumas manias do marido, mas compreendia que, naquela idade, nem a sua mágica conseguiria o tal êxito. Apesar dos pesares, o casal vivia feliz e tinham absoluta certeza de que morreriam juntos.

Marcus era fissurado por consertar objetos, dos mais diversos. Quanto mais antiga fosse a peça, mais se empolgava. No entanto teimava em não arrumar a bendita da agulha da vitrola que se fazia torta, suja, decadente, "na vitrola não se toca!", por incrível que pareça, nem mesmo para mudar o disco. Jazia no aparelho um vinil todo empoeirado de Beethoven, a quinta sinfonia completa. Marcus gostava dos estalos que só uma vitrola faz durante a música, dizia que fazia da música mais humana e era disso que o mundo precisava.

O ritual mais singular do homem era praticamente uma sinfonia que ele regia com exímia maestria. Gostava de dormir com a barba feita. E assim se fazia: ao relógio da parede marcar nove horas da noite, Marcus conferia o horário no seu relógio de bolso - relíquia preciosa da guerra. E então o espetáculo começava. Dobrava cuidadosamente as mangas da camiseta até pouco acima dos cotovelos, ia até o armário, abria com delicadeza o whisky trinta anos, escocês, cheirava a garrafa e preparava uma dose sem gelo. A caminho do banheiro colocava Beethoven para lhe agradar os ouvidos. No banheiro, com o copo de whisky ao lado da pia, acendia um cigarro, dava uma tragada e o deitava no cinzeiro. Passava o creme de barbear pelo rosto. Abria uma caixa de madeira onde guardava sua navalha de prata. Sempre polia antes de usá-la. Era tão afiada que cortava até pensamento. Conforme a música, Marcus fazia sua própria dança, raspava com perfeição o rosto, entre goles de bebida e tragos no cigarro, em plena harmonia. Não se barbeava sem Ludwig já havia décadas. E ai de quem o perturbasse no precioso momento. E havia quem o fazia, Madalena. "Já disse para parar de fumar essa droga do inferno!" "Dá-me um tempo, mulher! Não tens ideia das coisas que já vi nesta vida!" - cuspia após cada ímpeto, ímpeto este que a romântica quinta sinfonia o levava à flor da pele. Era sempre o mesmo diálogo. Sua esposa reconhecia tamanha diferença que o homem havia voltado do velho mundo depois do grande conflito. "Tu morrerás deste jeito! É isto que desejas?" A cena era digna da imagem, Marcus movia a navalha com a habilidade de um regente em meio à neblina densa e espessa que transmutava o banheiro de mármore, uma visão do inferno, alguns diriam. Parecia buscar certo tipo de alívio naquele momento, um tempo só para ele.

E foi assim então que, num dia desses, Madalena chegara em casa tarde da noite, pois aos sábados preparava o jantar para os franciscanos na abadia. A quinta sinfonia trovejava em alto volume o gélido "c minor" (Dó menor). Ao entrar chamava pelo seu homem, que não respondia. Foi então que sentiu o calafrio dançar por toda a espinha, a maldita agulha da vitrola havia finalmente mostrado falha, e a melodia repetia incansavelmente o mesmo segundo... Madalena já profetizara, a cena não poderia ser outra. No banheiro jazia a fumaça, o cigarro terminado, a dose de whisky pela metade e o mármore sangrado em tons de vermelho negro, a meia luz lembrava a cor do vinho. Marcus encontrava-se prostrado no chão ao lado da navalha. Os estigmas na garganta personificavam a irreparável repetição do disco riscado pela agulha quebrada. Madalena, apesar dos olhos marejados, o tratou com frieza, como se ainda estivesse vivo. Lavou, limpou e terminou de fazer a barba do cadáver, pois tinha certeza de que era aquilo que o homem desejaria. Levou o corpo até a sala onde havia uma lareira em frente a duas confortáveis poltronas, uma para cada um, e o colocou sentado de frente. O fogo quase extinto ela atiçou com o resto de whisky que sobrara no copo, o que trouxe vigor às chamas. O maço de cigarros ela jogou ao fogo com vontade. Em seguida abriu a bolsa e tirou uma bíblia de dentro. Uma página estava marcada, o marcador era uma agulha de vitrola, perfeitamente nova, que guardara durantes anos com a esperança de que um dia o velho desejasse trocá-la. Madalena arrumou então a vitrola e colocou o bendito do vinil para tocar novamente. Sentou-se ao lado do seu homem. Olhou com pesar aquele livro que guardava as sagradas escrituras e com convicção entregou-o às chamas e ficou observando o papel ser comido rapidamente pelo fogo, enquanto segurava firmemente as mãos geladas do marido.

Passadas algumas semanas, a polícia decidira entrar na casa, devido o número de reclamações de mau cheiro pelos vizinhos. As autoridades encontraram o casal já em estado de decomposição, sentados juntos, lado a lado, cobertos por cinzas. Dos dois oficiais prostrados de frente aos moribundos, um bateu continência a Marcus, o outro fez o sinal da cruz e cerrou os olhos; em seguida, o mais velho deles escondeu sorrateiramente em sua maleta o vinil de Beethoven.

 

 

Correspondência:
PEDRO DESIDÉRIO
Av. Francisco Chagas, 2585/43
15085-485 - Rio Preto/SP
Tel.: 11 97179.2055

Recebido 03.08.2020
Aceito 14.08.2020

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