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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo jan./jun. 2020

 

LITERÁRIAS

 

Eco

 

 

Luciana Miranda Penna

Em formação, cursando o 3° ano no Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. E-mail: penna.luciana@gmail.com

Correspondência

 

 

Ele anda distraído, para lá e para cá na floresta verde, sem fixar seu olhar em parte alguma. E há tantas árvores centenárias e liquens e musgos emaranhados e coisas miúdas da terra para ver. Talvez nada lhe interesse, talvez seja bom demais e nada espere. O que soa descaso deve ser desapego. Sua beleza é tão plácida e harmônica que parece um anjo, deve ser a bondade. É um homem santo, mas as pernas são bonitas demais pra isso. Não tem a tez sofrida dos anacoretas nem a postura de um. É viçoso. Saudável. É um príncipe. Ele só pensa em si mesmo, pode ser. Desdenhoso, quiçá. Egoísta, anote aí. Bobear, monstruoso. Mimado, talvez seja a palavra. Predestinado, também tem isso. A vida é assim. Hoje em dia. Nunca se sabe.

Nem muito de perto, nem muito de longe a menina, a mulher, Eco, o espreita, embevecida por tamanha beleza. Em júbilo, estado de graça e flor. Nunca viu ninguém assim, nem quando servia a Zeus. Ela precisa dizer a ele o quanto, o tanto, aquilo tudo que ela sente ao vê-lo. Já viu muita coisa, nada parecido. Ela precisa falar. Falar sempre foi a sua arte, assim ela tinha enrolado Hera. Mais ou menos. Hera vingara-se dela. Falastrona. Não terás mais voz própria e ficarás para todo o sempre repetindo a última palavra do que ouvires. Bom dia. Dia, dia, dia. Boa noite. Noite, noite, noite.

Ele parece cansado - da própria beleza, deve ser. Resolve se refrescar no lago. Nele há tanta água e plantas aquáticas e peixes e espécies de pássaros e borboletas magérrimas e maravilhas fluviais para ver. Mas ele só pensa na sua garganta, na sua garganta seca e no tamanho de sua sede. Eu quero beber. Eu preciso já. Agora, pra mim. Infantil. Infantojuvenil. Debruça-se feito uma garça sobre o lago, tão cheio de graça que é, mas não vê o lago, só vê a si próprio, um alguém. Perfeito. Só dá ele. Ele não sabe que é ele mesmo. Ele não pode saber. E como você é lindo. Lindo, lindo, lindo. Como eu nunca te vi antes? Antes, antes, antes?

Narciso nunca tinha se visto, sua mãe, quando ele era muito pequeno, levou-o até um adivinho. Ela queria saber se o rebento teria uma vida longa e próspera. Se ele não se conhecer, sim. Estava vaticinado. Liríope sequer olhava o filho nos olhos, de forma que ele jamais se reconhecesse no seu olhar. Passaram-se os anos e, como acontece com a maioria das profecias, essa também foi esquecida.

Narciso vive saltitante e alienado de seu vaticínio, mais ou menos como Édipo, uma figura bem mais razoável, que ao final só fura os próprios olhos, não se mata. Ver, ao fim e ao cabo, difícil era. Mas, voltando, ele está entediado, até que se depara consigo mesmo nas águas. Encanta-se. Eco não pode iniciar nenhuma conversa boa, nenhuma conversa mole, uma cantada que seja, nada. Começa a andar pela floresta desesperada. E ele lá, absorvido. Ela só precisa iniciar uma frase, uma frasezinha, maldita maldição.

Mas ele não ouve mesmo ninguém. Eco chega a repetir-lhe as últimas palavras, e ele acredita ser seu reflexo a respondê-lo. Eu te amo. Amo, amo, amo. Preso ao encanto de sua imagem, definha. Nenhum outro olhar é forte o suficiente para retirá-lo da fascinação. Nenhuma voz é sábia ou mágica o suficiente para resgatá-lo do seu torpor. Nenhum amor é maior do que a paixão por si mesmo. Nem pai, nem mãe, Deuses ou O Deus podem rivalizar com ele.

Narciso se ama tanto que é dragado pelas águas, já sem força, mínimo diante do tamanho de sua imagem. Eco foge para uma caverna e faz-se pedra, condenada à repetição das últimas palavras alheias. Tão gastas, nenhuma boa nova. Dizem que Eco são todos, repetidores desse mito. Petrificados. Dizem que no lugar da morte de Narciso nasce uma flor, branca, de mesmo nome.

Uma vez uma artista fez um vídeo com um Narciso negro e mudou tudo.

Ele anda distraído, para lá e para cá na floresta verde, sem fixar seu olhar em parte alguma. E há tantas árvores centenárias e liquens e musgos emaranhados e coisas miúdas da terra para ver. Talvez nada lhe interesse, talvez seja bom demais e nada espere. O que soa descaso deve ser desapego. Sua beleza é tão plácida e harmônica que parece um anjo, deve ser a bondade. É um homem santo, mas as pernas são bonitas demais pra isso. Não tem a tez sofrida dos anacoretas nem a postura de um. É viçoso. Saudável. É um príncipe. Ele só pensa em si mesmo, pode ser. Desdenhoso, quiçá. Egoísta, anote aí. Bobear, monstruoso. Mimado, talvez seja a palavra. Predestinado, também tem isso. A vida é assim. Hoje em dia. Nunca se sabe.

 

 

Correspondência:
LUCIANA MIRANDA PENNA
Rua Cayowaá, 1742/17, Sumaré
01258-010 - São Paulo/SP
Tel.: 11 99559.1921

Recebido 14.07.2020
Aceito 14.08.2020

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