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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo jan./jun. 2020

 

RESENHAS

 

Meus começos e meu fim

 

 

Maria da Penha Zabani Lanzoni

Psicanalista, membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), membro efetivo, analista didata e docente da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), mestre em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e membro fundador do Centro de Estudos da Teoria dos Campos. E-mail: mpenhalanzoni1@gmail.com

Correspondência

 

 

Nirlando Beirão. Meus começos e meu fim. São Paulo: Companhia da Letras, 2019, 186 páginas.

Em A ridícula ideia de nunca mais te ver, Rosa Montero, escritora espanhola, escreve: "No fim das contas, na realidade, tudo é uma questão de narração. De como contamos nossa própria história. Aprender a viver passa pela palavra". Talvez aprender a morrer também.

O livro de Nirlando Beirão começa com a notícia de uma doença degenerativa que o acomete em 2016, doença que o levará a uma debilidade muscular progressiva, graves limitações físicas e, poucos meses depois de publicado o livro, à morte. Diz o autor: "'Degenerativa' é uma palavra que tira você para dançar - uma dança de medo. 'Degenerativa', a palavra me pinçou a alma quando o médico a pronunciou, me tirou o chão" (p. 9).

Um impacto, não só para ele, mas para nós, leitores. Ainda virão novos impactos, mas sempre com a delicadeza de sua escrita fluente e elegante; e com o humor apuradíssimo e discreto que o caracterizava. No seu livro não há lugar para concessões nem autocomiseração. Somos como que convidados a dançar com ele, uma dança de medo, como diz, mas que nos envolve num grande abraço. Rodopiamos entre luzes e trevas, coragem e desalento, paixão e castigo, vida e morte. Sempre com muita vivacidade.

Ele entretinha, já havia algum tempo, o desejo de escrever a história do amor proibido entre seus avós paternos, sombra que pairava na família e que acompanhou as gerações seguintes. O proibido do caso o tinha atraído, e o desejo transformou-se em urgência com o aparecimento da doença. E, além disso, havia o prazer de juntar as peças do quebra-cabeça, "pedacinhos de inconfidências", que nem sempre tinham coerência.

Assim, o relato - um romance autobiográfico - entrelaça-se, por um lado, como escândalo provocado pela paixão entre o padre português e a moça do interior, com a família numerosa que constituíram juntos e, por outro lado, com a infância e adolescência do autor no seio dessa família, a saída de Belo Horizonte, onde nasceu, em 1948, uma longa e vitoriosa carreira jornalística, a evolução da sua doença, a consciência da finitude.

E a intimidade revelada nos arremessa para o sentido da vida - dele, e de todos nós. Escreve: "A gente vai chegando a uma idade em que o passado sopra como uma brisa para arejar o presente. Especialmente quando o futuro se submete à metáfora de um alçapão tão tenebroso como aquele lá de casa" (p. 17). O livro é escrito com muita leveza, alguma ironia e um realismo desconcertante.

O avô, Antônio, seminarista em Viseu, na Beira Alta, Portugal, tornou-se pároco (não se sabe se por vontade própria ou se cumpria alguma promessa familiar). Partiu para o Brasil no início do século passado. À época, Portugal vivia a convulsão do fim do Império e início da República. O avô foi ser o padre da pequena e única igreja de uma cidadezinha de Minas Gerais, Oliveira. Alguns anos depois deixa a batina e se casa com Esméria, uma das filhas do dono do Grande Hotel de Oliveira.

Nirlando só veio a conhecer Oliveira de passagem, por ocasião de uma viagem da família em que a Kombi que os conduzia enguiçou. Hospedaram-se no Grande Hotel e ele conta ter tido a impressão de um certo desconforto por parte do pai com a escala.

Casados, o padre e a moça fogem para Alegrete, no Rio Grande do Sul, "distante o suficiente para semear o esquecimento" (p. 43). O ex-pároco abre ali um ginásio e torna-se professor. Os anos de seminário facultaram-lhe sólido saber. Mário Quintana frequentou o ginásio e dedicou-lhe um poema. O casal vai ainda fazer uma parada no Douro, no início dos anos 1920, antes de se estabelecer novamente no Brasil. No retorno do casal a Minas, vão morar em Belo Horizonte, onde o avô monta um comércio, que o pai dará continuidade. E mais uma viagem os aguarda, nos anos 1950, uma jornada de seis meses por Portugal.

No seminário, conta-nos o neto, foi colega de ninguém menos que Antonio de Oliveira Salazar, de quem se tornou amigo.

O dito Salazar escapou, porém, do magistério sacerdotal e se daria por satisfeito em transferir seus recalques de virgindade solitária e seus achaques de emissário da verdade para o campo da política. Virou ditador, o professor doutor Oliveira Salazar, e por lentas décadas a fio reduziria Portugal do século XX ao simulacro de um mosteiro do Baixo Medievo. (p. 21)

A estada de seis meses em Portugal em 1956 teve até uma visita ao antigo colega de seminário, já ditador. "Desgraçadamente, eu nunca soube o que meu avô pensava da ação política do ex-seminarista de Viseu" (p. 57).

Anos mais tarde, numa viagem à terrinha, combinada com muita imaginação, o autor nos transporta a Viseu e região, ao seminário, numa reconstituição de época que parece mais um roteiro cinematográfico. Surpreende-se com a bandeira do Brasil hasteada na fachada do hotel onde se hospedou. "Soube depois que era para mim" (p. 52). Foi uma recepção calorosa, simpática, com direito a muitas emoções e muitos sabores. "Se sou hoje membro da Confraria Báquica do Vinho do Dão, se estou aqui hoje contando essa história, devo isso à confluência de tantos acasos - teias de um destino que arrancaria da clausura daquele maciço monastério de Viseu a ovelha a ser desgarrada do rebanho" (p. 53).

A história dos avós vai sendo desvendada para nós.

Mas foi a história que não ouvi que acabou por dar sentido à história que, antes calada, depois sussurrada, enfim testemunhada, busco agora concatenar, com uma urgência destemperada, liberando-me dos flashes fugidios do passado, da intoxicação de angústias intoleráveis, da bisbilhotice culpada da infância, do silêncio incutido aos beliscões, das novenas desesperadas em família. (p. 45)

Ao mesmo tempo, várias passagens da vida são lembradas e deliciosamente contadas: a faculdade, a emoção vivida com o nascimento da filha, a paternidade, a separação, a estada de um ano em Paris, as amizades, a profissão de jornalista, um novo casamento. Há encanto ainda na descrição da igreja de Oliveira, da cidade de Ouro Preto, do espírito e do modo de ser do povo mineiro.

O jovem Nirlando deixa Belo Horizonte, depois de ter trabalhado na sucursal mineira da Última Hora. O que era um bico em 1967, enquanto estudava direito, tornou-se um ofício de 50 anos. Aportou em São Paulo, lar de muitos excelentes jornalistas mineiros, convidado de Mino Carta para trabalhar no JT, o Jornal da Tarde, o irmão mais jovem do Estadão. Foi aí o local onde ouviu, pelo rádio, a promulgação do ai-5.

Daí em diante, transitei por toda publicação que se possa imaginar. Ajudei a fundar umas, a fechar outras. Em algumas fui feliz, em poucas me deixei estressar. Trajetória tão esticada sugere ou que você passou a acreditar na relevância de uma missão quase sacrossanta ou que, ao contrário, se acomodou no nicho crítico de certa indiferença. (p. 70)

Mas como o passado familiar vai se emaranhando ao próprio passado e com as vivências recentes, passamos a conhecer como é esse país em que agora habita, o País da Doença, como diz.

Diferentemente do que pregam as Sagradas Escrituras, com sua carranca de dogma, o homem levou alguns milhões de anos para descer das árvores, erguer-se no solo e passar a se locomover sobre duas pernas. Milhões de anos. Eu não vou precisar de mais que alguns meses para voltar ao estágio inicial. (p. 28)

Mas ele não se lamenta, põe a vida em movimento como pode, locomove-se como é possível. A doença progride, mas Beirão continua trabalhando e escrevendo. A mente ora calma, ora em ebulição, os afetos numa gangorra.

Cunhei uma boutade, para uso externo, quando me perguntam como estou. Digo: 'Tem dias que acordo Franz Kafka, tem dias que acordo Frank Capra'. Uma risada sublinha esse percurso que vai da barata medonha à felicidade cinematográfica. Faz sucesso. (p. 112)

A palavra, fiel companheira, convertida em ofício, ganha-pão, obsessão, insistem em abandoná-lo. Primeiro a palavra pronunciada vai lhe escapando cada vez mais e, em seguida, mesmo a escrita, ainda que seja possível apenas pelo esforço da mão direita. "Acovardado pela mão que virou garra e pela outra, que sobrecarregada, emite alertas, vou desconversando também as palavras escritas. Estas páginas, elas próprias, andaram mudas por algum tempo." E na sequência: "É a mais fatal das minhas perdas, pior até do que a capacidade de amar" (p. 140).

O País da Doença é novo e desconhecido. "O País da Doença é a suspensão de tempo e espaço." "O País da Doença são arrumações sempre adiadas." "O País da Doença é uma terra de exílio." "O País da Doença é totalitário." São frases que vêm acompanhadas de reflexões, algumas profundas, outras com humor e certa leveza, na tentativa de agarrar algo que não é passível de ser agarrado. "Eu só hei de saber me conduzir através desse vasto território da doença pela intoxicação do sentimento. Que as surpresas trazidas pelo cotidiano sejam bem-vindas, mesmo quando dolorosas" (p. 59).

Esta é uma história muito bem contada, escrita por um jornalista, que não por acaso, foi conhecido por ter sido um dos melhores textos da sua geração. Foi um privilégio lê-lo. Para ele, um privilégio, entre outros provavelmente, deve ter sido o de "ver encarapitada na banalidade da minha árvore genealógica tão flamejante tramoia de Vênus e de Eros" (p. 120).

 

 

Correspondência:
MARIA DA PENHA ZABANI LANZONI
Al. Lorena, 1304/908, Cerqueira César
01424-000 - São Paulo/SP
Tel.: 11 98277.5518

Recebido 18.07.2020
Aceito 14.08.2020

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