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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo jul./dez. 2021

 

O OLHAR DE ULISSES

 

A odisseia de ulisses e a vida como aventura: aproximações entre poesia e psicanálise1

 

The odyssey of Ulysses and life as adventure: approaches between poetry and psychoanalysis

 

 

Vinícius Romagnolli Rodrigues Gomes

Graduado em Psicologia e História, mestre e doutorando em Psicologia (UNESP-Assis), psicanalista e docente do curso de Psicologia da PUC-Maringá - Maringá / viniciusrrgomes@gmail.com

 

 


RESUMO

A relação entre mitologia e psicanálise é de fundamental importância para a compreensão do humano e da subjetividade. Freud tinha profundo interesse e admiração pela Grécia antiga e pelas tragédias, tendo se apropriado delas para ampliar seu olhar sobre as questões que lhe surgiam em sua prática clínica. Os mitos antigos são formados do mesmo tecido que os sonhos e fantasias investigados por Freud, que, ao aproximar a mitologia da psicanálise, resgatou a potência da dimensão simbólica e nos mostrou como encarar a vida como um poema, conhecendo e construindo nosso mito individual, a fim de tomar consciência de nossos atos e escolhas, iluminando, assim, aspectos sombrios que passavam despercebidos. Neste trabalho, lançamos mão da Odisseia, poema épico de Homero, para realizar uma aproximação entre a poesia e a psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise, poesia, Odisseia


ABSTRACT

The relationship between mythology and psychoanalysis is fundamentally important for the understanding of the human and subjectivity. Freud had a deep interest and admiration for Ancient Greece and the tragedies, appropriating it to broaden his view on the issues that arose in his clinical practice. Ancient myths are formed of the same tissue as the dreams and fantasies investigated by Freud, who rescued the power of the symbolic dimension by approaching the mythology of psychoanalysis. He showed us how to view life as a poem, and know our own individual myth in order to become aware of our actions and choices, thus illuminating dark aspects that went unnoticed. In this work, we used the epic poem of Homer's Odyssey to make an approximation between poetry and psychoanalysis.

Keywords: psychoanalysis, poetry, Odyssey


 

 

Introdução

"Encarar a vida como um poema,
e a você mesmo como o participante de um poema"

(Joseph Campbell)

A Odisseia é um dos primeiros textos escritos da literatura ocidental (estima-se que date de aproximadamente 650 a.C.) e mescla em uma narrativa mítica tanto o elemento histórico como o fantástico. Essa espécie de "poema marítimo" retrata a saga de Ulisses, o qual, durante dez anos, tenta voltar para a sua terra, Ítaca. Essa viagem mostra o herói em busca de si mesmo e toca em temas atemporais e inerentes a todos nós, humanos. Não por acaso, a obra se configura como um clássico que segue dizendo aquilo que tinha a dizer, criando e recriando sentidos da existência. Homero extrapolou com sua literatura os limites da Grécia e chegou até nós. Antes disso, contudo, chegou até o jovem leitor Sigmund Freud, que viria a criar a psicanálise.

O laço que une psicanálise e literatura é estreito. Freud desejava ser um homem de ciência, mas isso não o impediu de ser reconhecido como grande escritor, tendo recebido o Prêmio Goethe e sendo considerado um "incomparável explorador das paixões humanas". A obra freudiana é habitada pela companhia de vários escritores, como Goethe, Shakespeare, Schiller, Heine, Hoffmann, além de interlocutores contemporâneos como Arthur Schnitzler, Stefan Zweig e Thomas Mann. Essa extensa lista inclui Homero.

Freud reconheceu na Dichtung - atividade poética - um acesso privilegiado para a verdade psíquica. Para ele, tanto a literatura como a psicanálise visam, por meio de procedimentos próprios, explicar a complexidade da alma humana e seus conflitos obscuros. Freud tinha uma atitude ambivalente em relação aos poetas, ora admirando, ora invejando a capacidade destes de fantasiar e criar. Podemos dizer que os poetas tornaram-se aliados de Freud em sua investigação racional numa tentativa de síntese entre essas duas influências em sua vida e obra (Pontalis e Mango, 2013).

Em O poeta e o fantasiar (1908/2015), Freud visa compreender de onde o escritor retira seu material e como nos toca profundamente com seus escritos, provocando em nós profundas emoções. Freud considera o escritor um "sonhador em pleno dia" e a obra literária e o devaneio, como a substituição daquilo que um dia foi a brincadeira infantil. Ele sugere que é na infância que encontramos os primeiros traços da atividade criativa, visto que, para a criança, a brincadeira é sua ocupação. Ao brincar, a criança comporta-se como o criador literário, construindo para si um mundo próprio. Freud mostra como na língua alemã há um parentesco entre brincadeira infantil (Spiele) e produções literárias (Lustpiel, Trauerspiel) (Freud, 1908/2015).

Nesse texto de 1908, Freud argumenta que o oposto da brincadeira não é a seriedade, e sim a realidade. Assim, a criança por vezes se apoia na realidade para brincar, como, por exemplo, quando brinca de ser gente grande. Ao crescer, a criança empenha-se em aprender a realidade com seriedade; e, quando se torna um adulto, pode recordar-se de suas brincadeiras e as equiparar às suas ocupações sérias, livrando-se do pesado fardo imposto pela vida, alcançando assim o ganho proporcionado pelo humor. Dessa forma, quando paramos de brincar, renunciamos ao ganho de prazer que tínhamos com a brincadeira. A respeito disso, Freud diz que nada é tão difícil para nós quanto a renúncia a um prazer já experimentado (Freud, 1908/2015).

Freud diz que, no fim das contas, não renunciamos, apenas trocamos uma coisa por outra substituta. O adulto não brinca, mas fantasia, constrói devaneios e sonhos diurnos. Os adultos muitas vezes se envergonham de suas fantasias e as ocultam, pois deles se esperam seriedade e atuação no mundo real, isto é, que não brinquem ou fantasiem, uma vez que a fantasia é associada a algo infantil e ilícito. Isso pode ser visto, segundo Freud, quando um adulto fala de suas fantasias e desejos inconscientes, algo que não suscita simpatia em nós. Já, quando um escritor ou poeta nos brinda com seus escritos, sentimos prazer. Para Freud essa ars poetica consiste em uma técnica de superação do choque ligado às barreiras que separam cada Eu do outro (Freud, 1908/2015).

Quando o escritor nos apresenta suas fantasias, há um ganho de prazer estético, um prazer preliminar ou brinde incentivador, sendo a fruição da obra literária fruto da libertação de tensões em nossa psique. É como se o escritor nos permitisse desfrutar nossas próprias fantasias sem recriminação e pudor (Freud, 1908/2015). A odisseia de Ulisses é exemplar nesse sentido, tal como as tragédias gregas que tanto marcaram a vida e a obra de Freud.

 

Freud, a Grécia e a dimensão trágica da existência

Em sua Poética, Aristóteles considera a tragédia uma representação de situações dolorosas, na qual a realidade apresenta-se de modo suportável, revelando ao espectador apenas sentimentos passíveis de serem apreendidos pela razão. É um espetáculo exposto à contemplação, entendida por Aristóteles como um processo no qual o espectador somente se deixaria atingir por afecções consideradas "saudáveis". Dessa forma, o filósofo grego oferece um novo olhar sobre a obra de arte, por meio do qual a obra deixa de ser analisada apenas em si mesma e passa a levar em consideração os efeitos que produz. A tragédia provoca catarse, uma espécie de limpeza e purificação da alma que confronta o sujeito que assiste à sua apresentação com a tragicidade intrínseca à existência humana. Freud vai se apropriar dessa noção em sua obra, que demonstra, assim como a tragédia o faz, o confronto com o impossível e com anseios inatingíveis (Bohadana, 1996).

A tragédia grega, como poetar, mostra o fascínio que as palavras exerciam na origem da pólis. A palavra como expressão exclusiva do humano produz nele a ilusão do mundo. Aqui já podemos antever como Freud, que acreditava no poder mágico das palavras, vai se apropriar da mitologia em sua obra. Nascida do culto ao deus Dionísio, a tragédia é uma presentificação do delírio dionisíaco, um espetáculo de sombras e fantasmas (Bohadana, 1996).

A tragédia revela o enigmático e profundo sentido da criação artística, bem como a forma de existir do humano. Possui dois lugares: o lugar do comunicável por meio do ator (aquele que se diz pela linguagem) e da imagem, e o incomunicável, cuja exposição se dá com base na arte e na dança. Dionísio e Apolo não são partes de um todo, mas sim efeitos de um todo. A comunicação entre as duas divindades é resultante do jogo de figuras que de ambas emergem. Dionísio e Apolo têm existência independente, porém, mantêm um vínculo e estão inexoravelmente ligados, e ambos invadem a vida dos mortais (Bohadana, 1996).

Tragédia não é, portanto, a cisão de dois opostos, nem um todo indiferenciado, mas duas "partes-todo" das quais só temos o efeito, pois não há entre elas uma espessura que as delimite, o que inviabiliza saber onde, na tragédia, nascem e terminam Dionísio e Apolo. Tanto Dionísio como Apolo, amaram e foram traídos por mortais, e se dizem por meio destes (Bohadana, 1996).

Vernant (1990) aponta o fato de que o pensamento racional é inseparável do pensamento mitológico, tendo em vista que a origem do pensamento racional ocidental se deu com base nesse pensamento, e não fora dele. A tragédia apresenta-se por meio dessas duas divindades, revelando-se quando há uma tensão em que os diferentes impulsos mantêm-se num perpétuo desafio e constituem, por meio de seus efeitos, uma unicidade que não se faz "UM".

Em sua obra, Nietzsche (1992) critica a pretensão da ciência a explicar tudo no mundo, o que a tornou uma espécie de "nova religião"; além disso, critica a consciência, tida pelos modernos como confiável, mas representante de nossa parte mais fraca. Critica ainda a tradição filosófica com base em sua racionalidade, ordem e equilíbrio (Apolo), em oposição aos mitos e tragédias, associados ao desejo e à afirmação da vida (Dionísio). A filosofia, nesse sentido, seria o triunfo do espírito apolíneo, em detrimento do dionisíaco, o que levou a civilização e o homem ao declínio. A denúncia de Nietzsche (1992) é que o espírito de Dionísio teria sido reprimido, e, assim, estaríamos afastados da intuição sensorial e da verdade espiritual. Os mitos e a tragédia se perderam. Para Nietzsche, a vida estética seria fundamental, enquanto a vida racional seria apenas secundária. Sabemos que Nietzsche não conheceu Freud; no entanto, encontramos em toda parte intuições freudianas antecipadas em sua obra.

O trágico da tragédia é sua estrutura paradoxal repleta de tensões, as quais foram amplamente abordadas pelos chamados filósofos da suspeita, como Nietzsche e Freud. Em Freud, vemos o resgate da maneira pela qual os gregos antigos vivenciavam a palavra por meio da tragédia. O que importa para a sua psicanálise não é só dizer, mas redizer e dizer a cada vez ainda uma primeira vez, como num jogo entre esquecimento e memória. Freud clareia o esquecido re-apresentando a tragédia, vendo nela uma expressão do paradoxo da palavra (Bohadana 1996).

Coutinho Jorge (2002) diz que o grande rasgo de gênio de Freud foi transformar radicalmente a abordagem do inconsciente ao comparar o sujeito neurótico do fim do século XIX a um herói da Grécia antiga. No momento em que as ciências avançavam dissociando-se das narrativas fundadoras, Freud faz o caminho inverso. Em vez de abraçar o progressismo de seu tempo, ele volta às antigas mitologias e age como pensador antimoderno. O neurótico sofre por ter uma família e pertencer a uma genealogia; está doente por ter um inconsciente povoado de tragédias, e não de neurônios; sofre por ser humano. Mas o que é o humano?

Dante Gallian (2017) argumenta que a literatura nos oferece essa resposta ao nos salvar e nos devolver a propriedade do humano. A Odisseia de Homero nos mostra, por exemplo, que é próprio do humano sair e retornar. Ulisses tenta voltar para casa, e esse retorno é um processo permeado por adversidades. Calipso oferece a ele vida eterna, beleza e juventude, mas o desejo de voltar para sua mulher e seu filho falam mais alto.

Poderíamos pensar na Odisseia tocando nas questões referentes à finitude e à castração, temas inescapáveis em uma viagem analítica. Toda aventura tem um começo e um fim. Milan Kundera captou bem isso em seu romance A ignorância:

Ulisses viveu na casa de Calipso uma verdadeira dolce vita, vida fácil, vida de alegrias. No entanto, entre a dolce vita no estrangeiro e o retorno arriscado para casa, ele escolheu o retorno. À exploração apaixonada do desconhecido (a aventura), ele preferiu a apoteose do conhecido (o retorno). Ao infinito (pois a aventura pretende ser infinita), preferiu o finito (pois o retorno é a reconciliação com a finitude da vida). (Kundera, 2015, p. 10)

É próprio do humano sair para se tornar o que deve ser. Telêmaco, filho de Ulisses, vive o embaraço de assistir a inúmeros homens cortejando sua mãe, assim, sai em busca do pai e de si mesmo. Nessa jornada, é preciso coragem, enfrentamento dos medos não só para atingir a meta, mas também pelo aprendizado que o caminho traz.

 

Uma aproximação entre poesia e psicanálise

Os avanços da ciência moderna no conhecimento da physis/natureza implicaram uma redução - ou ao menos uma expectativa de redução - do valor de verdade da poesia, a qual seria excluída do campo do conhecimento oficial ou transformada em objeto racional da estética, disciplina filosófica. Desde Platão, a poesia ficou excluída do campo oficial do conhecimento (Peyon, 2011).

A poesia surge como possibilidade de resposta humana diante do mistério da vida. Já a ciência seria uma superação do modo poético do conhecimento acerca daquilo que se mostra desconhecido aos sentidos. O poético, por sua vez, seria a manifestação mais originária na busca por uma compreensão da vida, é a emergência do ser, do desejo e da ânsia visceral por compreender o enigma do mundo. Peyon (2011) argumenta que nunca houve nem haverá superação do poético, pois não há construção de conhecimento sem a dimensão do poético, da sensibilidade, da intuição e da imaginação na relação com outro íntimo e estranho, próximo e distante.

Freud, mesmo imbuído da tarefa de construir uma ciência nos moldes do cânone científico moderno, recorre aos literatos incessantemente. Ele considera que a interpretação do sonho assemelha-se a uma frase poética. Desse modo, vemos que a poesia escapa do discurso lógico e objetivo, mas se mostra essencial quando queremos conhecer as causas mais íntimas e o limite da palavra. A ciência não suprime a questão da origem misteriosa que se põe o tempo todo diante de nós. Existe algo que não se desvela no laboratório, nos exames do cérebro, não se mede por meio da racionalidade; essa coisa se imprime como hieróglifo em nós quando lemos a poesia que um outro contemporâneo ou pré-histórico nos enviou (Peyon, 2011).

Ainda assim, é importante dizer que o poético é, desde Homero, um remendo, jamais uma plenitude. O poético insiste em re-velar, velar novamente. O conhecimento não pode ser verdadeiro quando se exclui a existência e seu mistério. Freud fez uma subversão apontando os limites do conhecimento construído pela consciência de que o "Eu não é senhor da sua própria casa»" Freud convoca o poético em sua elaboração teórica e rompe com o discurso filosófico e científico (Peyon, 2011).

O poético se faz necessário sempre que a ignorância se apresenta ao humano, seja referente ao corpo, ao sexual, à morte ou à origem. Freud destaca, no entanto, não existir um desvelamento completo do inconsciente e que o poeta re-vela o desconhecido, renova o enigma e relança a verdade. O poeta constrói uma sabedoria sobre o desconhecido sem ter necessariamente consciência disso. O psicanalista teoriza sobre ou com base na verdade que o poeta re-vela, mas esse último não sabe dizer se o que o psicanalista construiu é de fato explicativo de sua criação. O poeta não precisa ter um saber teórico sobre sua arte (Peyon, 2011).

Freud, para ultrapassar as contradições de sua caminhada, lançava mão dos poetas. Peyon (2011) considera que, por mais cientificista que Freud tentasse ser, a psicanalise se inscreve mais no campo da criação literária, isso porque a matéria de que se trata na psicanálise talvez tenha obrigado Freud a ser poeta, pois a teoria do homem remete a esse movimento de criação ficcional, fazendo-se também um pouco literatura.

De certo modo, ser psicanalista é possibilitar ao analisando que escreva sua poesia, re-lance sua narrativa, re-construa seu passado e teça um novo mito sobre seu existir. Freud investiga um objeto irredutível aos cânones da objetividade do modelo científico de sua época, o que exige de seu pensamento invenções a cada vez que precisa avançar com sua teoria. Após o projeto para uma psicologia científica e o desejo de propor um aparelho psíquico com base nos processos neurofisiológicos, Freud vai poetizando ao erguer sua teoria do funcionamento da mente (Peyon, 2011).

Há em Freud uma dicotomia entre o cientista e o poeta, o iluminista e o criativo especulativo. Freud reconhecia em Goethe um bom exemplo da relação entre racionalidade e poesia, entre ciência e arte. Nos dizeres de Peyon (2011): "Freud criou, a partir de sua sensibilidade aos poetas e aos seus pacientes, e, simultaneamente, em acordo e em conflito com seu ideal cientificista, uma das maiores teorias sobre a alma humana. Isso não poderia ter sido feito sem poesia e desejo" (Peyon, 2011, p. 118).

 

Poesia e psicanálise: linguagens esquecidas?

Em meio a um cenário tão autoritário e embrutecido como esse em que vivemos, creio que a mitologia e a psicanálise se aproximem enquanto alguns dos últimos redutos em que o homem ainda pode "viajar", questionando o mundo e a si mesmo. Apoio-me aqui em alguns autores, tais como Julia Kristeva (2010), que consideram a psicanálise como um dos raros lugares preservados para viver a indeterminação; lugar de mudança, surpresa e, portanto, de vida. Erich Fromm (1973) apontava o fato de que a linguagem simbólica, típica dos sonhos, contos de fada e mitos, tão própria à psicanálise, tornou-se uma "linguagem esquecida", mas nem por isso menos importante.

Roudinesco (2000) argumenta lembrando que o homem trágico foi cedendo lugar ao homem comportamental ao longo do século XX. Houve também, nesse contexto, o advento do discurso das terapias cognitivas, da neurociência e do desenvolvimento de fármacos que prometeram restaurar uma pretensa normalidade do sujeito. Para a autora, a psicanálise representa um avanço civilizatório ante a barbárie, restaurando a potência de um homem livre e portador de um discurso, cujo destino não se reduz ao biológico; sendo uma frente de resistência às tendências obscuras que pretendem "reduzir o pensamento a um neurônio ou confundir o desejo com uma secreção química" (Roudinesco, 2000, p. 9).

Lembrar a Odisseia em pleno século XXI é, portanto, uma tarefa fundamental, a qual remete invariavelmente à figura de Sigmund Freud, que, a despeito de sua formação nos moldes biologizantes da época, deparou com os limites da racionalidade médica e teve o mérito de mostrar que nossas vidas são movidas por conflitos inconscientes dignos de romance. Algo que Lacan (2008) chamou de mito individual do neurótico; para o psicanalista francês, há algo da experiência analítica que é propriamente um mito dando formulação discursiva àquilo que não pode ser transmitido na definição de verdade, pois a "definição de verdade só pode se apoiar sobre si mesma, e é na medida em que a fala progride que ela a constitui" (Lacan, 2008, p. 13). Dito de outro modo, a fala não acessa a verdade objetiva, mas a exprime de forma mítica.

Boechat (2008) argumenta com o fato de que há uma mitopoese da psique, ou seja, o tecido dos mitos antigos é o mesmo dos sonhos e fantasias investigados por Freud, para quem somos portadores de fantasias que se configuram como a realidade psíquica e decisiva na vida dos neuróticos. Deste modo, Freud tentou resgatar a potência da dimensão simbólica quando se lançou ao estudo dos sonhos e da mitologia grega. Nas palavras de Thomas Mann (2015), Freud se opõe ao racionalismo, uma vez que "seu interesse investigativo está direcionado para a noite, para o sonho, para o impulso, para o pré-racional; e em seu início se encontra o conceito de inconsciente" (Mann, 2015, p. 50), e, assim, defende o primado da vontade da paixão, ou, nos dizeres de Nietzsche, do sentimento perante a razão.

Inês Loureiro (2010) aponta o fato de que o pai da psicanálise, a despeito de sua formação positivista e de seu ideal iluminista desejoso de esclarecer questões obscuras com base na racionalidade, esbarrou em sua prática com os limites da linguagem e da representação, o que mostra sua faceta romântica. Portador de contradições como todo ser humano, Freud e sua teoria acabam por contemplar luz e sombra, razão e desrazão, consciente e inconsciente, Eros e Tânatos.

 

A viagem da literatura à psicanálise

Anda sem de roteiros indagares,
que o mistério da vida, que a beleza da vida
só se dá, gratuita e plena,
a quem, andando sempre, ama a viagem,
porque a viagem é a estrada
e a estrada é a vida

(Daniel Lima)

Existe um campo híbrido entre o fantástico e misterioso mundo da literatura e o enigmático mundo psicanalítico. Kon (2003) argumenta dizendo que, ao final do século XIX, temos um cenário em que o enigma convive e ao mesmo tempo compete com o mistério do fantástico e da histeria, ou seja, um tempo em que o homem psicanalítico convive com o homem fantástico.

Kon (2003) defende a ideia de uma psicanálise poética que assume sua força de literatura. Desde o início, o inconsciente freudiano acolhia a dimensão do maravilhoso, do estranho inquietante, do fantástico. No entanto, essa viagem pelo sobrenatural foi saindo das vidas do homem do fim do século XIX com a rejeição do misterioso, o qual veio a se tornar o "inexplorado", com o advento da ciência. Foi nessa conjuntura que surgiu a psicanálise. Logo, é possível compreender a criação do pensamento freudiano e do novo homem por ele concebido por meio de suas ressonâncias e confluências com a literatura fantástica, a qual faz uma sobreposição de temas aparentemente inconciliáveis, a saber, o real e a fantasia. Diante do fantástico, surge a questão: trata-se de um milagre ou de um enigma? A psicanálise tenta iluminar o fantástico, não deixando espaços para o milagre e o mistério, tomando-os como enigmas inconscientes (Kon, 2003).

A psicanálise possui uma potência ficcional que precisa ser acolhida no ofício do psicanalista, para que dessa forma o encontro analítico assuma sua potência de criação de realidade e sua força de ficção verdadeira, característica de seu modo de ser; ou seja, um modo de fantasiar cientificamente (Kon, 2003). Esse caráter literário, ficcional e criador de realidades, é uma força da psicanálise. Psicanalisar é, portanto, criar, abrir espaço para a geração de histórias, fazer e refazer trajetos, reinaugurar a cada momento significações inéditas para o enredo que passamos a construir para nós mesmos. Nos dizeres de Rocha (2007): "o homem é um peregrino e seus pés não cansam de criar novos caminhos, pois seu destino é caminhar e sua alma é uma 'alma viajeira'. Por isso, o fim a que chega em cada etapa de sua grande viagem é de onde ele sempre está partindo para novas estradas e novas aventuras" (Rocha, 2007, p. 271).

Com a odisseia de Ulisses, aprendemos que viajar não é dado a todos. O viajante é aquele que se transforma com o tempo do trânsito e que, diferentemente do turista, não opera um mero deslocamento espacial de um lugar a outro. Viajar é dado apenas àqueles que se dispõem ao exercício da alteridade, a abertura ao outro e ao porvir (Kon, 2003). Deixar-se transformar pela jornada não é para todos, e a psicanálise é testemunha disso.

 

Considerações finais: a vida como aventura

Com a psicanálise, aprendi que somos seres fictícios. O próprio Freud, em sua juventude, tinha enorme apreço pela mitologia grega vista em Sófocles, pela Ilíada e Odisseia de Homero, por Hamlet de Shakespeare e Dom Quixote de Cervantes, com suas inter-relações entre fantasia e realidade, entre razão e des-razão. Em seu Dicionário amoroso, Roudinesco (2019) aponta a dimensão da fantasia, que representa, em psicanálise, uma realidade deformada, a qual remete justamente à ficção, ao fantasma, espectro e alucinação. Fantasia é a realidade psíquica, e não o equivalente à mentira, mas antes uma forma simbólica e alegórica de representar algo para a pessoa.

A virada para o século XX assistiu ao incremento do ideal positivista e iluminista de ciência e ao desencantamento do mundo que concorreu para o apagamento da dimensão trágica e conflitiva da existência, fazendo com que o discurso do homem comportamental e da neurociência ganhasse cada vez mais força - ambos propagando a suposta morte da psicanálise e do sujeito do inconsciente (Roudinesco, 2000).

Freud era um iluminista, um cientista que apostava suas fichas na racionalidade, mas que também era amplamente influenciado pelo romantismo alemão; portanto, deparou com a imensidão do inconsciente, com os limites da razão e da linguagem. O inconsciente freudiano acolhe o antigo maravilhoso e misterioso, próprios do universo fantástico tão retratado na literatura e mitologia. Por isso, nos dizeres de Inês Loureiro (2013), Freud era um "iluminista sombrio", uma expressão contraditória, não?

A própria noção que Freud cunhou do humano é a de um ser contraditório e em constante conflito. Se serve de alento, o poeta Mário Quintana pode nos consolar ao dizer que "quem nunca se contradiz, deve estar mentindo" (Quintana, 1997). Freud mesmo disse, em carta a Romain Rolland, que trabalhou ao longo de sua vida para desfazer algumas de suas ilusões e ilusões da humanidade. Thomas Mann (2015) aproxima essa postura freudiana de um aforismo de Nietzsche que diz: "faça a ilusão desaparecer!" Eis o intento malogrado da psicanálise, pois, por mais que nos esforcemos, não podemos viver sem um pouco de ilusão, justamente por não suportarmos tanta realidade. Cito Pontalis: "Freud escritor? Freud cientista? E se a singularidade de sua obra, se o que ela tem de inclassificável, resultasse em grande parte desse convívio, dessa tensão entre os dois polos?" (Pontalis, 2013, p. 215).

Seguir apostando na aventura que é nosso trabalho como psicanalistas é seguir apostando no mistério do desejo, na potência do romance e da narrativa, na restauração poética da dimensão trágica da existência, que continuam a intrigar aqueles que se mostram dispostos à tentativa de decifrá-los e de se implicar em suas questões e sofrimento. Agambem (2015) postula que não basta vir ao mundo, é necessário aventurar-se, entrar em contato com o mais distante pela observação do mais próximo; saber viver o presente como modo de viver o passado, aventurando-se amorosamente de uma singularidade à outra. Um verdadeiro elogio ao ofício do psicanalista.

Milan Kundera (2010) lembra o poeta Novalis, o qual dizia que os sonhos nos protegem da monotonia da vida, pois nos liberam da seriedade mediante o prazer de seus jogos. Nada mais psicanalítico. Sonhos e fantasias desempenham um papel no romance literário e também no romance de nossas vidas. Por fim, me autorizei e me aventurei a escrever um pequeno poema com base nessa discussão e finalizo este trabalho com ele:

Ulisses

Ao longo de um dia
a dimensão da tragédia se anuncia,
entre a chegada e a partida
quantas aventuras se pode ter na vida?
Alienados que somos
não notamos
que o heroísmo não é exclusividade do tempo mítico,
mas próprio do humano!

 

Referências

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1 Esse trabalho é inédito e não foi apresentado anteriormente

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