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Psic: revista da Vetor Editora
versão impressa ISSN 1676-7314
Psic v.7 n.2 São Paulo dez. 2006
ARTIGOS
Como brincam as crianças surdas: um estudo à luz da fonoaudiologia
How the deaf children play: a study based on a phonoaudiology approach
Como juegan los niños sordos: un estudio sobre la óptica de la fonoaudiología
Ana Carolina Sales Oliveira I, 1; Elizabeth Oliveira Crepaldi de Almeida II, 2; Sandra Maria da Silva Sales Oliveira III, 3; Ana Beatriz D'Alma Pinto 4
I Faculdade de Ciências Médicas Santa Casa de São Paulo
II Pontifícia Universidade Católica de Campinas
III Universidade do Vale do Sapucaí
RESUMO
Este estudo tem como objetivo analisar por meio de observação em atividades livres o brincar de crianças surdas em um instituto especializado. Participaram 18 crianças surdas na faixa etária compreendida de 2 a 5 anos de ambos os sexos, estudantes de um instituto para surdos no interior de Minas Gerais. Foram efetuadas cinco observações e uma filmagem, pelas pesquisadoras que analisaram os resultados de como brincam as crianças surdas e puderam-se extrair dados para as atividades profissionais do fonoaudiólogo. Tanto as observações quanto a filmagem foram realizadas na própria escola, no horário do recreio, e permitiram captar uma variedade de situações ou fenômenos obtidos na "própria realidade". Os resultados deste estudo trouxeram contribuições do brincar no espaço onde exista a palavra, levando o fonoaudiólogo a se preocupar não apenas com os brinquedos e as ações, mas com o que a criança "fala" (simbologia) no brincar.
Palavras-chave: Brincar, Surdez, Desenvolvimento.
ABSTRACT
This study aims at analyzing the playing moments of deaf children through the observation in free activities in a specialized institute. Eighteen deaf students from an institute for deaf children in the inner part of Minas Gerais (Brazil) were studied. Their ages ranged from 2 to 5 years old, male and female, all of them students of an institute for deaf children. Five observations and a video recording were analyzed, and the results about how the deaf children play made possible to obtain data for the professional activities of the phonoaudiologist. The observation and the recording provided a variety of situations or phenomena in the "real context". The results of this study brought contributions from the playing activities in a space where the word is present, supporting the phonoaudiologist worrying about the toys, actions, and specially to what the child "says" (symbolism) while playing.
Keywords: Play, Deaf, Development.
RESUMEN
Este estudio ha tenido como objetivo analizar por medio de observación en actividades libres el jugar de niños sordos en un instituto especializado. Han participado 18 niños sordos con edades entre 2 y 5 años, de ambos sexos, estudiantes de un instituto para sordos en el interior de Minas Gerais (Brasil). Las investigadoras que analizaron los resultados de cómo juegan los niños sordos efectuaron 5 observaciones y 1 filmación, y han podido obtener datos para las actividades profesionales del fonoaudiologista. Tanto las observaciones como la filmación han sido realizadas en la propia escuela, en el horario del recreo, y han permitido captar una variedad de situaciones o fenómenos obtenidos en la "propia realidad". Los resultados de este estudio han traído contribuciones del jugar en el espacio donde exista la palabra, llevando el fonoaudiologista a preocuparse no apenas con los juguetes y las acciones, pero también con lo que el niño "dice" (simbólicamente) en el juego.
Palabras clave: Jugar, Sordera, Desarrollo.
Introdução
As atividades lúdicas, desde muitos séculos, integram-se ao cotidiano das pessoas sob várias formas, sejam elas individuais, sejam coletivas, sempre obedecendo ao espírito e a necessidade cultural de cada época. Percebe-se que o brincar é definido por uma cultura preexistente que o leva a ser uma atividade cultural que presume a aquisição de estruturas que a criança assimilará à sua maneira em cada nova atividade lúdica, ou seja, para brincar é necessário possuir os pré-requisitos para o brinquedo que são a sua cultura específica. Trata-se de uma atividade que permite atribuir outros significados à vida cotidiana.
Brougère (2000) salienta que até antes do século XIX a brincadeira era vista como algo fútil, sendo útil apenas para a distração e o recreio, visão esta que gerou o papel delegado à recreação. No início do século XIX houve uma mudança de perspectiva quanto à concepção de criança e em conseqüência de brincadeira, tal mudança de perspectiva se deve à ruptura romântica. Então a partir de Rousseau, a criança começou a ser vista de uma maneira positiva quanto às suas atividades espontâneas, ou seja, foi com o Romantismo que a brincadeira infantil foi valorizada.
Entender o significado do brinquedo e do brincar é um caminho necessário e útil para poder conhecer a criança e o seu processo de desenvolvimento. O brinquedo não é um mero divertimento, ele é sério, e, a criança ao jogar, mergulha fundo em seu jogo, em um mundo à parte, no qual o mundo do adulto não tem mais lugar, é um outro universo. A criança é criança porque ela brinca (Volpato, 2001).
Se a criança não sabe brincar, poderá se tornar um adulto que não sabe pensar, pois a alma e a inteligência crescem na criança por meio do jogo, do brinquedo. Portanto o objetivo da infância é treinar pelo jogo as funções, tanto psicológicas quanto físicas, pois o jogo é o centro da infância (Palladino, 1999).
Vários autores como Winnicott (1975), Piaget e Inhelder (1995), Leontiev, Lúria e Vygotsky (1992); Carneiro (1995), Dorin (1978); Junqueira (1999), Outeirol (1998), Bee (1997), Papalia e Olds (2000), Biaggio (2002), Brougère (2000) e Kishimoto (2003) fazem referência ao brincar como sendo uma atividade que propicia o desenvolvimento e a imaginação da criança, uma vez que brincando ela tende a realizar, no plano simbólico, as ações do mundo adulto. No entanto, esses autores divergem radicalmente no que se refere às leis que motivam o brincar e sua relação com o desenvolvimento cognitivo.
Com relação à importância do brincar para o desenvolvimento, Leontiev, Lúria e Vygotsky (1992) argumentam que essa esfera de atividade implica a presença de regras e ações imaginativas, ainda que esses componentes não estejam igualmente envolvidos em diferentes modalidades de brincadeiras. No caso do faz-de-conta, a imaginação é uma característica central, que corresponde a uma crescente libertação do perceptual-imediato.
De acordo com Junqueira (1999) o brincar é uma manifestação da forma concreta do pensar da criança, que ainda não é capaz de realizar abstrações. Os atos de brincar, o jogo ou o faz-de-conta facilitam a compreensão do mundo pela criança, e também a vida e a si mesma. Diante disso é possível dizer que o brincar é a base do desenvolvimento cognitivo, emocional, motor e social da criança.
O brincar visto numa perspectiva que privilegia seu caráter sociogenético e seus vínculos com a inserção na cultura é estudado por Oliveira (1988), Oliveira, Mello, Vitória e Rosseth-Ferreira, (1992), Coelho e Pedrosa (1995), Bomtempo (1996), Rocha (1994) e Vieira (1998).
Reily (2004) acrescenta que o brinquedo é um dos recursos mais eficazes para promover a ação da criança sobre o objeto. O aluno com necessidades especiais, que se vê excluído de muitas experiências vividas por seus pares, pode, por meio do brincar, fazer jus ao seu direito de ser criança. Há possibilidades de os acontecimentos que ela presencia de longe chegarem até ela quando o brinquedo está na sua mão e quando ela está entre outras crianças brincando. O brinquedo que valoriza as ações do aluno promove a acessibilidade e é um mediador de grande eficácia, por trazer o mundo para perto da criança, ao mesmo tempo em que a criança dentro do mundo.
Ao considerar a surdez uma diferença, não existe uma patologia nem uma inferioridade do sujeito em relação aos demais. Essa diferença recai sobre a ênfase no desenvolvimento de recursos próprios para interagir com o meio, até mesmo por meio de uma língua própria que permita ao surdo expressar-se. A autora considera a surdez a partir do modelo sociocultural no qual ela é vista como uma diferença em relação à comunidade ouvinte e não como uma deficiência. A deficiência é algo patológico em que o insucesso na aquisição e o desenvolvimento da língua padrão oral, como nas atividades escolares, é atribuído à própria deficiência, que limita a capacidade dos sujeitos (Almeida, 2000).
A criança surda ao brincar revela como compreende e interpreta uma cultura que é marcada pela oralidade. Para tanto é de fundamental relevância explicar que a brincadeira tem importância central no desenvolvimento cognitivo e afetivo da criança, pois é brincando que ela se envolve em um mundo ilusório em que tudo pode ser realizado (Silva, 2002).
Dos autores revisitados que estudaram o brincar de crianças surdas destacam-se: Góes (2006) que acompanhou 8 crianças surdas, na faixa etária de 5 a 6 anos, e demonstra a capacidade destas para brincar e construir situações imaginárias, encenando enredos e personagens diversos. Braga, Dávilla, Mello, Schiave e Silva (2006) demonstram em suas observações a presença da atividade simbólica em uma sessão de fonoaudiologia com uma criança portadora de deficiência auditiva. Simões (2006) investigou como as crianças surdas, que se comunicam por meio da língua de sinais, representam e constroem os papéis sociais no jogo imaginário. Seu estudo comprovou que as crianças surdas brincam e utilizam as representações sociais, pois possuem uma língua de sinais que as possibilita adquirir a linguagem.
Para situar o brincar na Fonoaudiologia, será conveniente retroceder historicamente ao inicio das práticas fonoaudiológicas em nosso país. Trabalhos sobre a historia da fonoaudiologia que apresentam propostas de atuação clínica com crianças permitem inferir que desde o nascimento da profissão, o brincar ocupa um lugar na cena clínica. Lugar este sob o efeito de constantes modificações geradas pelos diferentes aportes teórico-metodológicos ao qual a Fonoaudiologia vem sendo veiculadas ao longo dos anos, e que se pode notar o brincar em suas várias nuanças.
O fonoaudiólogo não acessou diretamente as bases psicológicas e as introduziu em sua clínica, o fez pela Pedagogia. Nesse sentido a Fonoaudiologia, por ter origem no âmbito educacional, não pôde facilmente se desvencilhar de uma atuação clínico-terapeutica imbricada ao viés pedagógico. A prática fonoaudiológica emergente sustentava-se pelo terapeuta que apresentava à criança o que era de cunho normativo, sempre atrelado a norma culta, corrigindo-a, a fim de que ela pudesse sistematizar sua fala e aprender a forma correta de pronuncia. Isso justifica a dificuldade de, ainda hoje, a Fonoaudiologia se afastar de uma atuação sobre o paradigma pedagógico (Pollonio, 2005).
O brinquedo, segundo essa autora, foi usado na fonoaudiologia em um primeiro momento, como facilitador do treino da fala. Na década de setenta o jogo é visto com o objetivo de favorecer a aquisição de habilidades por funcionar como elemento facilitador e que poderia ser tanto por fonoaudiólogo quanto por educadores. Somente a partir dos anos de 90, uma parcela de fonoaudiólogos passa a encarar de outra forma o brincar e propondo novas teorizações. Hoje, os jogos mostram que o enunciado ou vocalização da criança é interpretado e retomado pela fonoaudióloga, que ao reformulá-lo propicia a seu parceiro ver de fora de si o que produziu, para poder agir sobre isto como objeto externo, desligado de si próprio (Freire, 1990).
A linguagem no brincar da criança surda é um tema que tem recebido pouca atenção e que merece um esforço investigativo maior, pois envolve uma forma de atividade peculiar à infância, de grande relevância para a formação do sujeito. O estudo do âmbito das ações imaginativas pode somar esforços no sentido de ampliar a compreensão do desenvolvimento na surdez e contribuir para a discussão crítica das condições sociais oferecidas para esse desenvolvimento.
Por conta de uma aproximação ao modelo lingüístico de aquisição de linguagem, regido pelo principio do socioconstrutivismo, Freire (1990) considera como recurso para a compreensão do funcionamento de linguagem da criança em processo de aquisição, tanto os processos de especularidade, complementaridade e reciprocidade quanto os "jogos interacionais". Esses, descritos por Lier-De Vitto (1995), correspondem a jogos executados pela criança na presença do outro e são, portanto, precursores para a emergência da linguagem.
Lier-De Vitto (1995) explicita que existem cinco jogos que regem o aparecimento dos sons da fala. O primeiro é o rítmico, em que há uma marcação temporal e o som da fala se dá numa pulsação específica. O segundo é o jogo de numeração e de reconhecimento de objetos em função do desenvolvimento da audição e na articulação. O terceiro é o jogo fonético, em que aparecem as dimensões segmentais e supra-segmentais da língua. Na seqüência, emerge o jogo fonológico, momento de integração das faces rítmicas, articulatórias auditivas, de combinatória arbitrária de segmentos lingüísticos, além da síntese paradigmática e sintagmática do objeto lingüístico. O quinto jogo seria a alternância dos jogos supracitados, dado que a criança se encontra em processo de aquisição de linguagem e circula no movimento da língua. Quando a criança se torna capaz de analisar e articular as diferentes faces, passa ao que se denomina "jogo de contar" o que, no entanto, ainda é anterior às narrativas. Diante do discurso que o adulto mantém com a criança, vê-se que pode haver simetrização ou não entre os dizeres, o que impulsiona a criança a ajustar o seu dizer, transformando-o.
O jogo, a que se faz referência nessa perspectiva, possibilita "avanços dialógicos". Insere-se aí o pressuposto de que o jogo, como ação discursiva da criança perante a interação com o outro, aponta para a relação da criança com a língua, um indicador de como o sujeito se relaciona na/pela linguagem. O outro, no caso o próprio terapeuta, tem função estruturante na linguagem da criança, ora devolvendo o que lhe é dito, reorganizando esse dizer, ora pontuando, por meio de um estranhamento, o que não compreendeu.
Quando os adultos se aproximam das crianças costumam brincar com elas a fim de estabelecer um vinculo. "Para estabelecimento desse vinculo, pode-se questionar como os terapeutas, acabam privilegiando o brincar ao instituir uma relação com seu paciente?" (Lier-deVito, 1995, p. 1). O fonoaudiólogo faz uso do brincar por tomá-lo como um instrumento terapêutico que traz efeitos para a clínica e , por mais que a brincadeira permita a aproximação com o paciente, a autora não deixa de citar que o clínico tem outros olhares, diferentemente do leigo, diante da condução desse brincar (Palladino, 1999). Ao conceder a linguagem como comunicação, o fonoaudiólogo elege o brincar como meio de colocar e manter a criança numa situação prazerosa, o que lhe permite aperfeiçoar as condições para o treinamento da linguagem. A efetividade do trabalho terapêutico depende do controle das condições de treinamento.
Quando se pretende estudar o brincar de crianças surdas que utilizam intensamente a sua gestualidade e encontram-se em fase de aquisição da língua de sinais e da língua falada, uma importante indagação diz respeito a como, com base na dinâmica interativa, essas crianças compõem a brincadeira em termos de recursos expressivos usados na estruturação da atividade e do modo pelo qual esses recursos participam da configuração dos papéis simbólicos (Silva, 2002).
Ao conceber a linguagem como de natureza simbólica, noção esta presentificada no campo psicanalítico, Palladino (1999) articula tal noção como necessária de ser trazida para o espaço fonoaudiológico. Considera que a linguagem é o espaço da forma e do sentido, e que é necessário que o terapeuta tome outra postura, baseada numa concepção de linguagem tida como constitutiva do sujeito, ao brincar com seu paciente.
O brincar deve ser vislumbrado como um aporte técnico do fonoaudiólogo, tanto para a lida terapêutica quanto para funções diagnósticas. As crianças são alvo de inquietação para o terapeuta visto que a língua ainda lhes forma plena. Por essa razão, apregoa que o brincar aponta para o funcionamento de linguagem dessas crianças e os modos delas se presentificarem ante a interação com o outro.
Para Palladino (1999, p. 8), "o fonoaudiólogo vai brincar porque ali irá advir material para uma lida com a linguagem, ali haverá material suscetível à escuta fonoaudiológica. A palavra instaura o brincar e aí mesmo ela ressurge, na interpretação do outro".
A Fonoaudiologia deve fazer uso do brincar enquanto técnica terapêutica, pois assim conseguirá compreender o funcionamento de linguagem do paciente. Diferentes formas do brincar comparecem na clínica fonoaudiológica desde a sua constituição. Sabe-se que não existe na Fonoaudiologia uma homogeneidade teórica, o que caracteriza a presença do brincar de forma distinta. O que se pretendeu esclarecer, no entanto, é que uma ação clínica se configura a partir de um regimento teórico, de uma tomada de posição do fonoaudiólogo, e assumir uma escolha implica atribuir ao brincar um comparecimento não linear.
Por fim, cabe salientar que o método clínico fonoaudiológico é lingüístico discursivo. O brincar, tal qual concebido, detém função clínica desde o processo diagnóstico e adentra a terapêutica enquanto técnica, instrumental ou recurso propulsor para a dialogia, como mencionou Palladino (1999) ao afirmar que o brincar emerge no espaço onde existe a palavra, como possibilidade de a criança transitar na polissemia, de operar simbolicamente. O brincar no atendimento clínico fonoaudiológico, funciona como técnica, possibilitando por meio do método clínico entender as mudanças na linguagem da criança.
Neste século pode-se observar maior aproximação entre a fonoaudiologia e a educação, pela expansão das ações no contexto escolar. O fonoaudiólogo vem buscando com o passar dos anos melhorar sua atuação a fim de resgatar o papel social voltado à promoção da saúde na escola. As instituições voltadas para a educação e o atendimento de pessoas com deficiências necessitam do atendimento fonoaudiológico em função da sua clientela. Durante o trabalho terapêutico, o fonoaudiólogo fortalece a relação com a escola discutindo os dados de evolução da criança, as dificuldades que permeiam o trabalho e os progressos apresentados.
A escola deve ser vista como um local privilegiado de observação em que ocorre um encontro do fonoaudiólogo com as crianças, professores e famílias. Isso leva esse profissional a direcionar o olhar para as crianças que apresentam comprometimento na comunicação oral e/ou escrita com o intuito de minimizar as diferenças. Observar como as crianças brincam na escola pode ser início do tratamento fonoaudiológico, ou seja, é a partir dele que a criança começa. Por meio das brincadeiras é possível à criança projetar-se e também construir-se.
Método
Participantes
Participaram deste estudo 18 crianças surdas na faixa etária compreendida entre 2 e 5 anos de ambos os sexos, estudantes de um instituto para surdos no interior de Minas Gerais. Ressalta-se que foram escolhidas 18 crianças porque formam uma turma no instituto com idades compreendidas entre 2 e 5 anos, divididas em duas turmas, sendo uma turma com crianças de 2 a 3 anos de idade e outra turma com crianças de 4 a 5 anos.
Material
Para a viabilização deste estudo foi preciso: termo de compromisso com a instituição; termo de consentimento assinado pelos pais; folhas de papel sulfite para transcrever as observações; brinquedos, filmadora para o registro minucioso das brincadeiras.
Procedimentos
Inicialmente foram solicitadas a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da PUC-Campinas, a autorização da direção da escola e dos pais das crianças; em um segundo momento, marcaram-se horários e datas para a realização das observações. Foram efetuadas cinco observações e uma filmagem no período de cinco dias pelas pesquisadoras que se deslocaram até a escola para realizá-las. Os dados foram analisados e após as análises, produziram-se resultados em termos de pesquisa que podem colaborar com um maior entendimento de como atuar e usar as brincadeiras com os pacientes com problemas auditivos. Tanto as observações como a filmagem permitiram captar uma variedade de situações ou fenômenos obtidos "na própria realidade".
Resultados e discussão
Foi possível perceber uma oscilação na freqüência dessas crianças nas aulas no instituto, visto que nos cinco dias em que as observações foram realizadas, o total de crianças presente nos recreios variou de 6 a 18. Isso pôde ser observado com a verificação da freqüência feita pela professora todos os dias. Contudo, independentemente desa variação, notou-se que as crianças brincam bastante, aproveitando o tempo do recreio.
A tabela apresenta as brincadeiras que as crianças menores (de 2 e 3 anos) e as maiores (de 4 e 5 anos) realizaram durante os dias de observação do recreio no instituto. Por ela é possível perceber que as crianças menores brincaram mais de correr e de construção que com os brinquedos de encaixe. E as crianças maiores brincaram mais de pular corda. Apesar da limitação de opções de brinquedos, as crianças brincaram bastante e aproveitaram o tempo do recreio, porém nota-se que as menores participaram de uma diversidade maior de brincadeiras que as maiores.
Verificou-se que as crianças menores eram mais direcionadas pelas professoras que as maiores, sendo que esse direcionamento ocorreu na maioria das brincadeiras, principalmente nos jogos com regras em que havia a participação em grupo, como nas de pular corda, nas com bola, no esconde-esconde, no pega-pega e na pista de psicomotricidade. Nas brincadeiras mais individuais, como as de construção com brinquedos de encaixe, de correr, de desenhar com giz no chão, de telefonar, com animais de plástico, de escrever no quadro-negro e de carrinho, as crianças maiores interagiram em grupo, compartilhando seus feitos e ajudando os colegas, e as crianças menores brincaram na maioria das vezes sozinhas, mesmo estando próximas de outras crianças.
Observou-se a importância do brincar, do faz-de- conta, premente na criança com perda auditiva, pois a falta de audição impede que perceba as alterações da voz, timbres, mudanças de tonalidades, etc., o que a deixa à margem da comunicação subjetiva. Dessa maneira, sua própria vivência de como lidar com fatos por meio dos brinquedos dá-lhe uma segurança maior no trato com a realidade, fazendo-a vivenciar à sua maneira suas dificuldades e seus desejos em relação aos outros. Além disso, o brinquedo dá novo impulso à fala, pois prepara o intelecto da criança para o uso dos símbolos expressos por palavras, ou seja, o acesso à linguagem oral.
Observou-se ainda que brincar, para a criança com perda auditiva, é o recurso que encontra não só para desenvolver o simbolismo como para entender o mundo que a cerca. Passa a lidar forma natural de lidar com o mundo, para entender suas regras e exigências sociais, porque não encontra muitas vezes respostas para seus questionamentos, pois seu vocabulário ainda é precário, enquanto o da criança ouvinte é rico, pela diferença na possibilidade de ouvir.
A brincadeira de construção com os brinquedos de encaixe foi a mais realizada pelas crianças, tanto pelas menores quanto pelas maiores; em seguida tem-se a de pular corda que foi extensamente e intensamente realizada pelas crianças maiores e a de correr que também foi extensa realizada pelas crianças menores. Já as brincadeiras menos realizadas foram a de esconde-esconde e a de escrever no quadro-negro, ambas realizadas cada uma em apenas um dia de observação.
As brincadeiras de bola e na pista de psicomotricidade foram realizadas com as duas turmas juntas, sendo que nestas não pareceu existir dificuldade no relacionamento entre as crianças devido à diferença de idade e sim uma interação, apesar do direcionamento dessas atividades pelas professoras. Ficou evidente que a maioria das crianças percebe o "outro", reconhece seus parceiros no brincar como alguém ou algo passível de emoções e se mostrou capaz de planejar ações com início, meio e fim. Observou-se ainda o domínio da simbolização, embora seja sabido que se trata de um processo mais lento em crianças com perdas auditivas. As crianças encenavam episódio de faz-de-conta de forma bem articulada, ações que são pertinentes à pessoa ouvinte.
O que chamou atenção foi o fato de as crianças não apresentarem comportamentos agressivos, tão comuns nessa faixa etária; das cinco visitas feitas ao instituto apenas em uma pareceu ocorrer uma situação de agressividade, quando um colega apertou o dedo de uma das crianças na porta, porém não pareceu ser proposital e sim acidental. Embora a escola não tenha um número diversificado de brinquedos, o que contraria a opinião de Silva (2002), quando enfatiza que para investigar o brincar deve haver locais propícios para o encontro de crianças, ricos em sua diversidade de brinquedos e/ou recursos materiais variados e respeitosos com relação ao interesse da criança, de forma que ela brinque do que quiser e de quem quiser, sem restrições, pôde-se perceber que todas as crianças brincaram bastante, exploraram o seu mundo e que a comunicação entre elas ocorreu de forma natural.
Considerações finais
Este estudo mostrou que o desenvolvimento infantil encontra-se intrinsecamente vinculado ao brincar, independentemente de a criança ser surda ou ouvinte. Brincar é uma das atividades fundamentais para o desenvolvimento da identidade e da autonomia. O fato de a criança, desde muito cedo, poder se comunicar por meio de gestos, sons e representar determinado papel na brincadeira faz com que ela desenvolva sua imaginação. Nas brincadeiras as crianças podem desenvolver capacidades importantes, tais como atenção, memória e imaginação. Amadurecem também algumas capacidades de socialização, por meio da interação e da utilização e experimentação de regras e papéis sociais.
O objetivo da brincadeira da criança pequena é o próprio processo de brincar e não os seus resultados que a criança não consegue perceber com antecedência. Nesta etapa, a criança surda não se diferencia da criança ouvinte. A criança surda também brinca da mesma forma que a criança ouvinte, mas a questão é se o significado atribuído ao brinquedo e a si própria são iguais para estas crianças. A criança ouvinte participa de conversas com e entre os pais e outros adultos; essas informações criam outras possibilidades de significação para a criança que as crianças surdas com atraso de linguagem provavelmente não têm.
As crianças deste estudo parecem desenvolver-se do mesmo modo que as crianças que não apresentam surdez, uma vez que brincaram com as mesmas brincadeiras citadas pela literatura infantil, apropriadas para a idade em que se encontram, como por exemplo, os brinquedos de encaixe comuns para crianças de 2 a 4 anos. Cabe ao fonoaudiólogo aproveitar as situações que surgem, analisá-las e ser capaz de assumir que é no jogo entre dizeres, que a criança se coloca no processo terapêutico. É nesse sentido que, também, se pode afirmar que o lingüístico abre espaços de subjetivação: espaços de dizer e implicar-se nesse dizer.
Por fim, o brincar passou a ser compreendido como um recurso técnico que impulsiona a dialogia e permite ao fonoaudiólogo o acesso ao funcionamento de linguagem da criança. A interdialogia (fonoaudiólogo-paciente), instaurada a partir do brincar, propicia ao fonoaudiólogo, assumir que a linguagem sofre alterações mediante um alçamento da própria linguagem. Assim a criança pode assumir outras formas de discursos.
A linguagem no brincar da criança surda é um tema que tem recebido pouca atenção e que merece um esforço investigativo maior, pois envolve uma forma de atividade peculiar à infância, de grande relevância para esforços no sentido de ampliar a compreensão do desenvolvimento na surdez e contribuir para a discussão crítica das condições sociais oferecidas para esse desenvolvimento. O estudo do âmbito das ações imaginativas pode somar esforços no sentido de ampliar a compreensão do desenvolvimento na surdez e contribuir para a discussão crítica das condições sociais oferecidas para esse desenvolvimento.
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Endereço para correspondência
Av. Antonio Augusto Ribeiro, 155, Jd Elisa, Pouso Alegre, MG. CEP: 37550-000
E-mail: anacal55@yahoo.com.br
Recebido em: julho 2006
Revisado em: setembro 2006
Aprovado em: novembro 2006
Sobre os autores:
1 Ana Carolina Sales Oliveira é fonoaudióloga, atua em consultório e cursa especialização na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
2 Elizabeth Oliveira Crepaldi de Almeida é fonoaudióloga, mestre pela PUC-SP, doutora pela Unicamp e professora titular da Pontifícia Universidade Católica de Campinas.
3 Sandra Maria da Silva Sales Oliveira é psicóloga e pedagoga, mestre em Avaliação Psicológica pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia, da Universidade São Francisco, docente da Universidade do Vale do Sapucaí.
4 Ana Beatriz D'Alma Pinto é fonoaudióloga e atua em consultório.