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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.25 no.3 Goiânia set./dez. 2019

https://doi.org/10.18065/RAG.2019v25n3.13 

TEXTOS CLÁSSICOS

 

Meio século de filosofia

 

 

José Ortega y Gasset*; Tradução: Msc. Alan MüllerI

IUFPR

 

 

Almeja O Correio da Manhã que eu narre aos seus leitores o que tem acontecido com o pensamento filosófico durante estes cinquenta anos, no decorrer deste século. O pensamento filosófico é uma coisa humana, mas as coisas humanas não são propriamente "coisas", mas sim "coisas que acontecem ao homem", são acontecimentos que acontecem a alguém, e não se assemelha a estas brincadeiras chamadas de "fenômenos físicos", pois estes não acontecem a ninguém. Ora, não se pode falar adequadamente das coisas que consistem em "algo que acontece com alguém", pois estas coisas são passíveis apenas de serem contadas ou narradas. A razão narrativa, a razão histórica, é a única forma de razão que nos permite entender às coisas humanas. Contemos, pois, o percurso do pensamento filosófico de 1900 a 1950. O empreendimento é neste caso desesperador porque não posso inundar com o fluxo da minha prosa toda a solene edição do O Correio da Manhã. Tendo recebido um breve espaço na área destas páginas vejo-me obrigado a condensar meu pensamento. Mas, ocorre que a razão histórica, o contar, é, dentre as figuras da razão, a que menos admite a possibilidade de condensação. A razão histórica é essencialmente prolixa, é um falatório interminável, é a "história sem fim". Não por acaso, Dilthey, o primeiro homem que vislumbrou a razão histórica e que pôde se dedicar, sem distrações, toda uma boa parte de sua vida aos temas ligados a ela, caracteriza-se como aquele a dar apenas os primeiros passos, os primeiros fragmentos, a esboçar os primeiros projetos, os primeiros volumes, primeiros capítulos, os primeiros suspiros, gerando certo balbuciar dentro deste grande falatório que é a razão histórica. Vamos então suspirar - os leitores e eu, conjuntamente - sobre o que poderia ser uma história do pensamento filosófico dos últimos cinquenta anos. Esta jornada cronológica coincide com minha própria vida e, com efeito, ninguém poderia contar-me esta história, porque ela é minha própria existência. Daí que minha narrativa adquire, por vezes, um olhar autobiográfico. A autobiografia é o superlativo da razão histórica.

A vida é um repertório ou sistema de ocupações porque nos foi dada vazia e não há outro remédio senão tentar preenchê-la, ocupá-la. Uma destas ocupações que os homens cultivam, de modo a preencher a vida, é a filosofia. Heidegger concebe a ideia de que o homem é filosofia; isto equivale a dizer que todos os homens em todos os tempos tenham se ocupado com esse peculiar modo de vida que é filosofar. Mas, esta ideia de Heidegger é hiperbólica, incontrolável e aniquila a ínfima fração de razão que ela contém. Para que se pudesse dizer verdadeiramente que viver é filosofar, seria necessário tornar o conceito de filosofia tão vago que equivaleria a esvaziá-lo por completo. Equivaleria a dizer que pensar é o oposto de fazer com que todos os gatos sejam pardos, e a partir disso concluir que não vale a pena falar sobre gatos. Sem dúvida, o homem tem sempre uma certa atitude ante ao que podemos chamar de "ultimidades", mesmo quando esta atitude é negada, quando está incognoscível ou é simplesmente esquecida, negligenciada. Mas a filosofia não é um tipo qualquer de atitude "ultimista", senão uma representação precisa e exclusiva desta atitude: é, em suma, um enfrentamento dos problemas últimos por meio dos instrumentos conceituais. Existem outras formas de enfrentar estes problemas e, a exemplo, durante milênios o homem tem preferido optar pela embriaguez, por um dar-se ao frenesi sensual, buscando alcançar estas "ultimidades". Uma das criações mais primitivas do homem foi o que os etnógrafos chamam de "casas de suar", local que se introduziam pedras ardentes que provocavam um suor tão extremo que o homem se alienava, delirava. Acreditavam assim que, neste delírio, alcançavam o transcendente.

No meu entendimento, em vez de hiperbolizar e enfraquecer os conceitos das ocupações humanas devemos restringi-los e torná-los concretos. É deveras danoso nomear da mesma forma atividades distintas que apenas superficialmente se assemelham. Chama-se indiscriminadamente de religião, poesia, filosofia, várias atividades que não possuem entre si nada de comum, gerando um engodo relativo à autêntica realidade destas. Chamar de "poesia", conjuntamente o que fazia Homero e o que fazia Verlaine, serve unicamente para que não possamos compreender o que Homero fazia e o que fazia Verlaine. Pois não se trata de uma questão de demarcar a diferença entre os estilos poéticos, mas sim elucidar que em ambos a atividade na qual se ocupam possui um propósito e um papel funcional dentro de suas vidas e que são completamente distintos.

Por isso perguntar sobre o que se passava filosoficamente em 1900 nos impede de começar a aludir a tais e quais doutrinas particulares que naquela época dominavam ou nela emergiram. É preciso averiguar o que os homens acreditavam fazer naqueles dias quando diziam que filosofavam. Certamente era coisa muito distinta do que, por exemplo, intentou fazer Parmênides; ele que cronologicamente foi o primeiro "filósofo" na Grécia, bem como em todo o universo humano. É obvio que Parmênides não chamou a si mesmo de filósofo, justamente porque andava ocupado em inventar um novo modo de operação humana, ao qual se deu este nome. Parmênides chamava este fazer de Alethéia, que podemos traduzir como "Verificação". Não se tem assinalado, contudo, que Aristóteles, quando almejava afirmar com precisão o modo filosófico stricto sensu em contraponto aos pensamentos que imperavam antes ou conjuntamente à sua filosofia - religião, mitologia, as "teologias" órficas -, e assim, nomeia seu fazer de "método da verificação"; e com este nome refere-se à precisa ocupação intelectual que Parmênides inventara e iniciara.

A situação da filosofia na época moderna é muito diferente da que permeava seu propósito originário na Antiguidade. Não se trata de examinar agora a diferença integral que há, e que é enorme, entre a vida antiga e a vida moderna. Nestas profundidades abissais não podemos por hora adentrar. Trata-se apenas de focar um fator no qual conota às grandes divergências entre estas circunstâncias.

Na Grécia é a filosofia quem revela o conhecimento como o rigoroso "modo de pensar", que se impõe ao homem fazendo-lhe ver que as coisas precisam ser como são e não de outra maneira. Ela alude a um pensamento necessário, ou imprescindível, e ela mesma não consiste senão neste "descobrimento" encetado por Parmênides. Dizemos que algo está "verificado" quando conseguimos expô-lo na forma de estritas relações entre puros conceitos. Ao fazer este desvelamento dá-se conta da diferença radical entre seu "modo de pensar" e os outros, acima aludidos, que em torno dela preexistiam. O pensar de todas estas "disciplinas" mais ou menos tradicionais consistia em pensar nas coisas plausíveis, que se mostram, que parecem ser de determinada forma, e não no pensar necessário, no qual as coisas não dependem de nosso arbítrio ou gosto para que sejam reconhecidas, pois uma vez compreendidas se impõem, sem remédio, à nossa mente. É indescritível este desdém com que esta filosofia primigênia olhou todos estes outros comportamentos intelectuais perante o mundo, exceto - e é importante ressaltar isto - a "medicina", representada pelas sociedades secretas como a dos Asklepíades na ilha de Kos, da qual pertencia Hipócrates.

A filosofia como o pensar necessário era o Conhecimento, era o Saber. Não havia propriamente outra forma de abertura de conhecimento perante a Realidade. Dentro deste escopo, como particularização do seu "modo de pensar", iniciou-se o processo de condensação das ciências. Estas, se preocupavam com partes da realidade - com temas regionais, com figuras, com números, com astros, com corpos orgânicos, etc. - mas, o "modo de pensar" sobre estes temas era o filosófico. É preciso que os homens de ciência atuais engulam velis nolis1, e de uma vez por todas, o fato de que o "rigor" da ciência de Euclides não era nada além do rigor cultivado na escola socrática, especialmente na Academia de Platão. Ora, todas estas escolas se ocupavam principalmente da Ética.

Na época moderna a situação da filosofia é, mesmo focando exclusivamente no aspecto de sua relação com as ciências, completamente distinta da que acabo de ilustrar. Durante os séculos XVI e XVII as ciências matemáticas, nas quais incluem-se a astronomia e a mecânica, alcançam um prodigioso desenvolvimento. A ampliação de seus temas acompanha uma depuração crescente de seu método, seguidos por grandes descobrimentos materiais e de aplicações técnicas de fabulosa utilidade. Afastam-se com grande independência da filosofia, mais ainda, entram em conflito com ela. Destarte, a filosofia deixa de ser o Conhecimento, o Saber e torna-se apenas mais um tipo de saber perante os outros. Devido a sua busca pela universalidade e por uma questão hierárquica a filosofia pode manifestar certa primazia, mas seu "modo de pensar" não evoluiu, enquanto as ciências matemáticas modificaram consubstancialmente o que aprenderam originalmente com a filosofia, e criaram, em parte, "novos modos de pensar". Já não há, pois, apenas a filosofia perante o Ser. Há outra instância, distinta dela, que se ocupa ao seu modo de conhecer as coisas, e esse modo é de um rigor exemplar, superior em certos aspectos ao modo filosófico tradicional. Diante disto, a filosofia sente-se como uma ciência, dotada de um tema decisivo, mas com um método torpe. Neste contexto, não tem outro remédio a não ser emular as ciências. Quer ser uma ciência e, portanto, não pode encarar o Real sem antes encarar as ciências exatas. Deixa, pois, de reger-se exclusivamente pela Realidade, que é seu tema, e toma, em certo grau, orientação das ciências. Por isso a filosofia moderna tem um olhar duplo. Por isso a filosofia moderna é estrábica. Todo este período pode ser registrado lembrando-se simplesmente da conhecida fórmula de Kant em sua Investigação Sobre a Claridade dos Princípios em Teologia Natural e Moral, de 1764:

"O verdadeiro método da metafísica é basicamente idêntico àquele que Newton introduziu com a ciência natural e que tem gerado diversos frutos". Este texto pode representar ao que, desde Descartes, era aludido como essências "inumeráveis".

Este texto propicia ainda a revelação de como esta adaptação da filosofia ao modo de pensar das ciências exatas é, por sua vez, um processo cujas variações são apenas frutos funcionais originados da evolução destas ciências. De fato, Descartes e Leibniz se orientavam pela matemática pura, pois, não existia ainda uma física, já que eles estavam contribuindo para a criação desta. A geração de Kant encontra-se, por sua vez, diante do triunfo consolidado pela "física de Newton" e o que ela simbolizava. Esta é a razão de Kant desdenhar à matemática pura, buscando constituir a física como regina scientiarum2. O texto supracitado fora escrito no momento em que Kant havia deixado de ser leibniziano e encontrava-se desprovido de uma filosofia. Logo, dispõe-se a encontrar uma, e neste propósito o surpreendemos obcecado pela física de Newton, tomando-a como um ideal de conhecimento. Naquela época, Kant não tinha uma clara noção se a fórmula que expressara seria possível ou não. Por isso mesmo, esta fórmula, citada anteriormente, carrega em si o esnobismo "científico" da filosofia daquele período. Apenas seis anos depois é que Kant publicaria sua famosa dissertação, De mundi sensibilis atque intelligibilis forma et principiis3, onde alcança essa adaptação da filosofia à ciência física.

Estes dois perfis de atividade intelectual - a antiga e a moderna, denominadas com um nome idêntico, filosofia - são, de fato, deveras divergentes. Desde Descartes a filosofia ambiciona - progressivamente - ser uma ciência. Talleyrand diria, como dissera a Napoleão quando este decidiu tornar-se imperador, que a filosofia almejou rebaixar-se. Pois, estas atividades intelectuais, apesar de todas as suas vantagens, têm, como conhecimento, uma séria deficiência. Os problemas que buscam conhecer são, de fato, apenas problemas relativos. Não são problemas radicais, indômitos, ou seja, os problemas absolutos que, quer queira ou não, recaem sobre o homem. As ciências aceitam apenas os problemas do que se sabe de antemão, que pelo menos em princípio são solúveis. São, em suma, problemas previamente castrados; seus chifres não têm uma ponta pavorosa; ou são rudes ou foram artificialmente adaptados. A filosofia que quer "dar ar de ciências" renuncia, em doses diversas, a aproximação com os problemas absolutos, ou seja, com a Realidade desnuda, integral, tal e como se apresenta. Agora, por sua vez, o grego, ao pensar filosoficamente, partia em direção deste conhecimento radical da Realidade indômita, indomada e talvez indomável. Se a esta aventura do Conhecimento os gregos chamaram de "filosofia", isto quer dizer que sua ocupação era muito distinta daquela que os modernos tentaram fazer. Com os gregos, a filosofia stricto sensu morre e outra coisa surge, que, fraudulentamente, passa a utilizar o mesmo nome, mas que é uma forma de conhecimento degradado, sem fé em si mesma, astênica, repleta de cautela e cuidados excessivos devido a sua convalescência; mas, acima de tudo, ela abstém-se de perguntar sobre o imenso Enigma no qual nos movemos, vivemos e somos.

De 1794 a 1830 os alemães, com sua genial insensatez, buscam romper com a prisão científica na qual a filosofia se asfixia e fazem um esforço para se evadirem pela estreita via de seu "idealismo" - a "transcendental luz do luar", como a chamou Carlyle. Mas, pelo resto do século apenas fazem avançar o processo que vai convertendo a filosofia na estátua de sal de uma ciência. Esta obsessão acabaria reduzindo a filosofia a uma contemplação das ciências; a pura "teoria do conhecimento", como se esta nomenclatura fosse viável na falta de uma ideia absoluta do Ser. Este foi o positivismo que se instalou em todo o Ocidente - único espaço terrestre no qual havia surgido algo assim como a filosofia. Obviamente, o positivismo não é Comte. Comte foi talvez o único filósofo que existira entre 1830 a 1860. O outro grande nome, Schopenhauer, era, por sua vez, um sobrevivente. Mas Comte, ainda hoje, é terra incógnita. Talvez algum dia envie ao grupo de comtistas que ainda estão no Brasil - último refúgio da religião da Humanidade - minhas ideias sobre seu genial mestre, que contrastam com o que foi dito sobre ele e que afirmam que ele fora o primeiro descobridor da historicidade essencial do homem.

Em 1870, o positivismo domina os espaços históricos da Europa. Tudo aquilo que não for positivismo é invalidado. Ora, o positivismo é a renúncia do filosofar. Poucas coisas destoam tanto da filosofia quanto os livros de Stuart Mill (1843-1865). Destarte, não apenas deixam de fazer filosofia, mas perdem o fio da meada. Toda atividade humana supõe a continuidade de uma série de gerações que se ocupam dela. Quando esta continuidade é quebrada, interrompida, se "perde o fio" de seu exercício. E quanto a isto não há exceções. Perder o fio significa deixar de entender sobre aquela atividade, seja a matemática ou seja o amor. Atualmente, perdemos o fio do amor que se engendrou no Ocidente ao final do século XI. Kant dedicou um excelente ensaio a este estranho fenômeno humano que é "perder o fio". Em 1870, repito, não só não se fazia filosofia, como também não se conseguia compreender os filósofos do passado. Eram inscrições hieroglíficas. Mas, nesta mesma época, uma nova geração volta a sentir uma necessidade de filosofia e percebe que nada sabe sobre ela. Para saciar este apetite filosófico decidem ir à escola. Em 1869, Otto Liebmann termina todos os capítulos de seu livro Kant e Epígonos com um clamor que ressoa: "Portanto, devemos retornar a Kant!". Liebmann tinha vinte e cinco anos. O Zurück zu Kant, o retorno a Kant, foi um clamor escolar. É o aprendiz, o aluno que procura os Mestres, que quer ir à escola. Voltam-se a Kant, a Fichte, a Hegel, a Aristóteles (Brentano). Mas, que fique claro, estudar uma filosofia do passado não tem nada a ver com filosofar.

Em 1900 não havia, propriamente, filosofia. O neokantismo passa a dominar a opinião pública intelectual, que fora moldado meticulosamente trinta anos antes. A Teoria kantiana da experiência, primeira grande obra de Hermann Cohen, é de 1871. Na mesma época, começa a escrever Windelband, cuja "volta a Kant" se complicava diante de um vago retrocesso a Fichte. Todo este trabalho culmina na Lógica do Conhecimento Puro, de Cohen, - 1901 -, na Lógica como Ciência do Conceito Puro, no qual Croce embaralha Kant com Hegel - 1902 -, em Os Limites da Concepção Naturalista, de Rickert, discípulo de Windelband - 1902.

A primeira obra de Cohen, na qual expunha e interpretava o pensamento de Kant - tinha ele vinte e oito anos - produziu um efeito fulminante na atmosfera intelectual da Alemanha. Produziu admiração e terror. O terror se originava na concepção disseminada para a população de que, fosse o que fosse, essa coisa chamada filosofia, era inquestionavelmente uma coisa difícil, compreendida apenas por mentes afiadas. Ou seja, algo muito rígido e muito complicado, enfim, coisa substancialmente distinta do aguapé ideológico que vinha sendo o positivismo que o farmacêutico Sr. Homais era capaz de compreender. Não se tem sido devidamente justo com Cohen, pois sua obra elevou de um só golpe o nível da atividade filosófica. Direta ou indiretamente, fez com que os pensadores espremessem bem a cabeça quando se pusessem a pensar. Quando estive em Marburgo em 1906, jogado ali pela primavera de ousadia que fora meus vintes anos, a "escola de Marburgo" continuava exercendo este terrorismo na Alemanha. Inclusive, mesmo os melhores estudantes alemães não se atreviam a ir até lá "porque era muito difícil". As outras escolas neo-kantianas - de Baden, obra de Riehl - apesar de não corresponderem totalmente com o pensamento Cohen, sentiam a influência de sua obra. O nebuloso criticismo de Renouvier, que permitia aos franceses dizerem "que faziam" filosofia, se desvaneceu e, em geral, o colapso filosófico da Europa, a baixa maré intelectual do Ocidente, fora superado e iniciou-se um estágio ascendente que não cessou seu progresso em direção ao zênite até o início da última guerra.

Como o homem é congenitamente servo da gleba espaço-temporal, toda coisa humana, e entre elas a realidade "filosófica", está adstrita a um determinado tempo e neste tempo possui uma determinada representação espacial, com seu centro e sua periferia. Desde o final do século XVIII o espaço filosófico tem, queira ou não, seu centro visceral na Alemanha e, no máximo, caberia reconhecer um epicentro que seria a França. Inglaterra nunca tivera filosofia, assim como nunca tivera música. Porém, teve certo período em que as Ilhas Britânicas exerceram um influxo decisivo na evolução do pensamento filosófico. Mas, não porque haviam criado uma filosofia, mas, pelo contrário, porque souberam construir um sistema de objeções a toda filosofia, e isto é o que se tem chamado de "filosofia inglesa" de Locke, Berkeley e Hume. Não estranhem, pois, que eu parta do que tenha ocorrido filosoficamente na Alemanha e trace as linhas da evolução pelo fio da produção germânica. Este tem sido, creio eu, o quadro ou a imagem dentro do qual o movimento de ideias fluiu. Houve coisas que foram iniciadas ou levadas à perfeição fora da Alemanha - o primeiro exemplo, o pragmatismo americano; o segundo, a Lógica matemática - mas, não conseguiram produzir um efeito filosófico decisivo, ativo, não se consubstanciaram em realidades plenas, isto é, não foram "vis histórica", visto que foram integradas na representação do pensamento alemão. Isto será esclarecido em seguida quando analisarmos, sutilmente, a figura de um solista realmente genial, Bergson.

O que era, afinal, a filosofia em 1900? Em cada época de cada sociedade existe um repertório de ideias, normas, valores que são vigentes, que dominam a opinião pública com um caráter de poder estabelecido. O Estado, com a forma efetiva e precisa de suas instituições - e não "no papel" - é só uma vigência entre os demais costumes. Chamam-no também - e melhor - de Poder Público. Mas qualquer costume, por mais ínfimo que seja, tem mesmo que de forma reduzida, todos os caracteres de "poder público"; é poder público. Pois bem, o poder público filosófico em 1900 era o neokantismo. Todo o resto era apenas "opiniões pessoais", sem vigência; umas, sobreviventes anacrônicas, outras, pelo contrário, eram ideias emergentes que, por sua vez, se converteriam em poder público. Como todo costume leva tempo para tomar forma, para "estabelecer-se", o neokantismo emergente em 1870 não ganhou força até meados de 1885. Qualquer opinião leva quinze anos para impor-se, exerce o poder durante outros quinze e, então, declina até ser legada a um caráter padrão de sobrevivência. Ocorreu exatamente deste modo em nosso caso. Em 1900, o neokantismo imperava exclusivamente, e fora precisamente naquele ano que os poderes do futuro surgiram. Em 1900-1901, publicam-se as Investigações Lógicas de Husserl, que se estabelecerá, dentro de quinze anos, no novo regime filosófico. As Ideias para uma Fenomenologia e a Filosofia Fenomenológica, de Husserl, são de 1913; O Formalismo na Ética e a Ética material dos valores, de Scheler, aparecem em 1913-164. Há, pois, entre 1900 e 1915 uma espécie de interlúdio no qual o neokantismo vai decompondo-se sem que outra grande representatividade filosófica, germinada de 1885 a 1900, fosse capaz de constituir-se e assim tornar-se vigente. Aproveitam-se deste vácuo de poder alguns perfis erráticos, magníficos ou, simplesmente, de curiosos solistas. Esta é a hora de Bergson. A Evolução Criadora é publicada em 1907. O Pragmatismo de James, em 1907. A Interpretação dos Sonhos, de Freud, em 1900. Em 1911, realizo a publicação de um artigo sobre Freud no jornal La Prensa, de Buenos Aires.

Percebemos, pois, com toda claridade e pujança, a estrutura ou anatomia da realidade "filosofia" entre 1900 e 1915. Assinalamos três categorias desta realidade: 1ª. A vigência, anormalmente prolongada, do neokantismo; 2ª. Uma série de novos pensamentos emergentes que vão sendo criados e que significam apenas "opiniões particulares de um homem ou de um grupo"; 3ª. Grandes feitos individuais de pensamentos cujo papel histórico real e preciso diferem em cada caso, como veremos adiante. Estas categorias estavam em evidência. Mas, não podemos esquecer uma 4ª, que fluía oculta, no subterrâneo, devido a certa deficiência em seu modo de se manifestar e que, não obstante, virá a ser, de 1915 a 1930, uma das forças doutrinais decisivas. Refiro-me à obra lenta e fragmentária de Dilthey, cuja transcendência estritamente filosófica, ninguém havia visto, nem mesmo na Alemanha, até 1920. Trata-se de um caso curiosíssimo, atingindo o extremo de latência na produção intelectual de uma época5.

O paralelismo estrutural destas quatro categorias pode ser considerado como um paradigma aplicável a toda realidade histórica de caráter coletivo.

Ora, falamos estritamente da filosofia de 1900 a 1915 que havia no Ocidente, isto é, que reinava - no sentido em que reina sempre a opinião pública e, portanto, se diz, e com grande propriedade, a "opinião reinante" -, era o neokantismo, o que nos força a reconhecer que no Ocidente não havia, na verdade, filosofia. Este ensaio não visa acumular nomes de autores ou de título de livros que podem ser encontrados em qualquer manual. Não tenho, entretanto, nada contra os manuais, a não ser minha decisão de nunca os escrever ou lê-los. Aqui nos importa só o importante. Que é denotar que o neokantismo - escola por onde entrei na filosofia - não era propriamente uma filosofia. O kantismo sim o foi, mas o neo-kantismo era o contrário de uma filosofia, a saber, um escolasticismo, uma vez que consistiu na atitude de ir à escola dos antigos mestres intentando aprender aquela filosofia.

O famoso Escolasticismo, isto é, a filosofia que as universidades medievais cultivavam, não foi bem compreendido, porque não foi visto no pano de fundo de muitos outros escolasticismos. O Escolasticismo clássico é apenas um caso particular, europeu e medieval, dentro de toda uma grande categoria histórica de "escolasticismo" com caráter genérico que ocorreu e segue ocorrendo em muitos lugares e tempos. Chamo de "escolasticismo" toda filosofia recebida - em contraste a criada - e chamo de recebida a toda filosofia que pertence a um círculo cultural distinto e distante do espaço social e do tempo histórico daqueles da qual é apreendida e adotada6.

Aqueles que ignoram de quais ingredientes as "ideias" são feitas, acreditam que seja fácil transferi-las de um povo para outro e de uma a outra época. Ignora-se que o que há de mais vital nas "ideias" não seja o que se pensa gradativamente e o que aflora a consciência, mas sim o que subjaz a elas, o que jaz para além delas ao usá-las. Estes ingredientes invisíveis, íntimos, são, às vezes, vivências de um povo concebidas no decorrer de milênios. Este pano de fundo latente que sustenta as "ideias", que as preenche e nutre, não pode ser transferido, assim como não se pode transferir nada que seja autenticamente vida humana. A vida é sempre intransferível. Este é o destino histórico.

Resulta, pois, ilusória a transferência integral das "ideias". Transfere-se apenas o caule e a flor e, talvez pendurados nos galhos, o fruto daquele ano - o que foi imediatamente útil naquelas ideias para as gerações seguintes. Mas a vivacidade das "ideias", que é a raiz, permanece na terra de origem. A planta humana é menos deslocável do que a vegetal. Esta é uma limitação terrível, mas inexorável e trágica.

A noção de "escolasticismo" é como uma categoria histórica e, portanto, como conceito, de grande valor real, evidenciando o fato de que, em semelhança aos conceitos físicos, representa uma magnitude hierárquica que em cada caso é maior ou menor. Os "escolasticismos" possuem factualmente graus diversificados. Assomando um grau extremo no escolasticismo medieval. Consistiu, sobretudo, na recepção do pensamento de Aristóteles, lido em latim - São Tomás nunca pôde lê-lo em grego, ainda que tenha intentado fazê-lo -, bem como por meio dos comentaristas árabes, Avicena e Averroes. Este salto da Grécia para estes circuncisos não fora um mero salto na recepção de um pensamento, mas sim, de um escolasticismo. Sabe-se, mas é conveniente que isto repercuta também nas províncias, que os primeiros escolásticos foram os árabes e não os cristãos. Ocorre, pois, que o escolasticismo implica em distâncias enormes, no espaço e no tempo, a partir do círculo cultural no qual nascera a filosofia grega e onde ela era uma realidade autêntica, plena e concreta: há a distância espacial entre a Grécia e os novos povos cristão do Ocidente, a distância temporal entre o século IV antes de Cristo, a distância entre o helenismo e o arabismo e, cabe ressaltar, a distância entre os árabes e os frades cristãos. Cogitar que aqueles frades de cabeça tonsurada foram capazes de entender os conceitos gregos, a ideia de Ser, por exemplo, resulta em ignorar a dimensão trágica que acompanha o acontecimento histórico, do mesmo modo que um fio vermelho está incluso em todos os cabos da marinha Real inglesa. Na recepção de uma filosofia estrangeira, o esforço mental é invertido, pois não se almeja compreender os problemas que foram levantados, mas sim a busca de entender o que o outro pensava sobre eles, e como estes pensamentos eram expressos em certos tipos de conceitos.

O "conceito" não é uma palavra da língua, senão um signo artificial. Por isso, não é compreendido por si. Ele é criado com o objetivo de se chegar a uma definição, que por sua vez é composta de outros conceitos. Por isso que todo escolasticismo é a degradação de um saber em mera terminologia. Embebem-se, nos seminários, os frades e sacerdotes cristãos atuais com uma bazofia terminológica e logo almejasse que sirvam para alguma coisa, esperando que saíam trotando pelo mundo. O exemplo máximo deste esforço para conseguir chegar à algum sentido conceitual personifica-se nos apuros que passaram os grandes escolásticos de Paris, Oxford, Pádua, Salamanca e Coimbra, para lidar com o vocábulo Ser.

A ontologia, ou busca do ser, é uma coisa que ocorreu aos gregos e não pode, com a mesma autenticidade, voltar a ocorrer com ninguém. Por isto tem sido uma frivolidade, um capricho acadêmico de Heidegger, querer ressuscitá-la, conseguindo apenas gerar mais confusão, incapacitando-se, mesmo sendo um pensador de primeira ordem, alcançado no fim o que Platão pretendia alcançar, e que chamava "sair ao Ser". Para a filosofia se tornar possível nos dias de hoje se faz necessário superar a noção de Ser, e evadir-se dela. Neste intuito, Sartre, enfant terrible dos novos intuitos filosóficos, não ousou fazê-lo, recaindo na empoeirada terminologia hegeliana, nos deixando atônitos tentando interpretar palavras como "ser-em-si", "ser-para-si", "ser-para-outro". Os conceitos greco-latinos Ser e Ente não são válidos atualmente para entender a Realidade - principalmente a vida humana. O homem, por exemplo, consiste em ser o que ainda não é. Mas, a trava-língua resultante desta afirmação demonstra que não há sentido em manter tal fórmula, a não ser que visa uma primeira aproximação ou continuidade com o passado filosófico. Logo, esta ideia deve ser abandonada urgentemente, pois é como um navio que náufraga.

Nesta representação extrema do escolasticismo, que fora o escolasticismo medieval, projetamos o neokantismo de 1900, descobrimos neste todos os traços daquele, só que de tamanho muito reduzido. De fato, o neokantismo de Marburgo - que foi verdadeiramente magistral - foi um escolasticismo de graduação mínima e, por essa razão, afirmei mais acima que não era uma filosofia. Os mestres de Marburgo pertenciam ao mesmo círculo cultural que o kantismo original e cronologicamente estavam apenas a uns setenta anos de distância dele.

A distância é, pois, nula no espaço social e mínima no temporal. Essas duas coordenadas levariam a pensar que não se trata de um fenômeno de recepção de ideias, mas de normal continuidade e evolução das mesmas. Mas há um fato que se opõe a tal interpretação; Entre 1840 e 1870 há duas gerações que lidam com política, fazem suas revoluções, constroem ferrovias, criam as primeiras grandes "plantas" industriais, colonizam, napoleonizam, bizmarckizam, desarmonizam. Estão, portanto, muito entretidos com as coisas no mundo e isso as obstrui o entendimento. A visão do bosque é bloqueada pelas árvores. Para se ver o mundo - o Enigma - é necessário imaginá-lo e de algum modosair dele. É por isso que essas gerações ignoram a filosofia e essa se perde. Ocorre, consequentemente, uma censura, um rompimento da continuidade histórica no questionamento filosófico.

Eis a razão do fio ter se perdido. E posso assegurar aos jovens de hoje que testemunhei, em Marburgo, a dolorosa tarefa de homens determinados a encontrar algum sentido nos conceitos de Kant, os quais se apresentavam para eles de forma incompreensível, reluzindo em suas carapaças de palavras técnicas, semelhantes a uma quitina dura e cheia de reflexos na qual se revestem os besouros. Em Marburgo não se percebia as coisas - nem presentes, nem pretéritas - senão, através dos misteriosos vocábulos que Kant usava: "transcendental", "consciência geral", "esquematismo", etc.

Este diagnóstico sobre o que fora o neokantismo, em sua realidade, não diminui a admiração que é devida ao grande Hermann Cohen. Sua obra espremeu as cavilhas do pensar e está repleta de grandes vislumbres geniais, embora seu direcionamento final não pudesse levar a nada substancial, estável e capaz de consequências concretas. Tinha uma belíssima cabeça de semita, com os cabelos de uma brancura alva, o nariz com uma suave e perfeita curvatura, os lábios de coloração parda e repleto de pequenas fendas, ou seja, a boca típica das raças nômades que o vento dos desertos mancha e seca. Em suas aulas, era como se fulminasse raios por um de seus olhos - o outro olho estava morto -, raios como os de Isaías, profeta iracundo e feroz. Tinha por mim, que era um rapaz celtibérico7 de vinte e três anos, um entusiasmo surpreendente. Pude observar que os hebreus de alta qualidade, como era este, sentem uma estranha simpatia pelos povos que alguma vez expulsaram suas tribos. Acontecera isto com os egípcios. As denúncias que o Antigo Testamento acumula contra eles não anulam o fato de que os admiravam, ao ponto de querer imitá-los, e, como os egípcios se circuncidavam, os judeus decidiram fazer o mesmo para não se rebaixarem. A circuncisão hebraica é a primeira grande manifestação do notório esnobismo judaico.

Como doutrina, o neokantismo permaneceu como puro positivismo, e isso basta para classificá-lo como um fenômeno intelectual pertencente ao último terço do século XIX.

Não há mais conhecimento do que o alcançado pela experiência, mas esses positivistas alemães aprenderam em Kant que a experiência possui apenas uma ínfima parcela ligada aos sentidos. Não há experiência se não há uma teoria construída pela mente e, portanto, "pura", ideal, não experimental, na qual os fatos sensíveis observados adquirem significação Que a chamada "experiência" exista e nela se configurem as verdades, não é, por sua vez, algo experimental. A "possibilidade da experiência" - o mögliche Erfahrung de Kant - transcende a toda experiência. É puro Lógos. Os conceitos básicos que tornam possível a ciência empírica ou experimental são construções lógicas, estritas e livres, que consistem na negação de tudo que é que fruto dos sentidos. Daí a negatividade óbvia na forma das palavras que os designam: a-tomo, in-dividuo, in-finitesimal, etc. Daí também para os neo-kantianos que a ciência das realidades e, portanto, do empírico e do sensível, deve constituir-se por um esqueleto da matemática pura. Em Margurg se...8

 

 

Revisão: Profº. Drº. Adriano Furtado Holanda - UFPR
Nota Biográfica: José Ortega y Gasset (1883-1955) foi um filósofo espanhol preocupado com os problemas que assolavam a Espanha do século XIX. Herdeiro da chamada Geração de 98 espanhola, Ortega buscou na Alemanha a ciência que acreditava faltar em sua terra. Em território alemão estuda com Wundt, Cohen e Natorp, aprofundandose na filosofia neokantiana. Posteriormente, encontra na fenomenologia de Husserl uma "boa sorte" para escapar da escola do neo-kantismo. Atuou como político, jornalista e foi o fundador da Revista de Occidente (1923). Ministrou cursos e escreveu diversos ensaios e livros. É um dos mais influentes pensadores espanhóis, sendo considerado o maior divulgador da fenomenologia na Espanha e na América Latina. Seus alunos ficaram conhecidos como a Escola de Madri, tendo dentre eles grandes pensadores espanhóis, tais como: Xavier Zubiri, José Gaos e Julián Marías. Suas obras foram compiladas e reeditadas (2004-2010) pela Editora Taurus e pela Fundación José Ortega y Gasset, formalizando dez volumes.
* (1951/1980)
1 (Nota do Tradutor). Expressão latina que significa "queira ou não queira".
2 (Nota do Tradutor). "Rainha das ciências".
3 (Nota do Tradutor). "Da forma e dos princípios do mundo sensível e do mundo inteligível".
4 (Nota do Tradutor). Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik.
5 (Nota do Autor). Como não tenho espaço aqui para mostrar de que consistia e como essa latência se originou, transmito ao leitor o meu estudo "Guillermo Dilthey e a Idéia da Vida". (Reimpresso no volume da coleção El Arquero, Kant, Hegel, Dilthey, quarta edição, Madri, 1972).
6 (Nota do Autor) Em Sensu Stricto, Escolasticismo significa o uso da filosofia para lidar com conceitos teológicos, mas este significado tem sido relegado por aquele que designa a peculiar filosofia usada pelos clérigos do Ocidente para essa necessidade.
7 Refere-se à origem hispano-celta.
8 (Nota do Tradutor): Aqui conclui a página 111 do manuscrito. Ignoro se Ortega interrompeu a escrita ou se as páginas subsequentes do ensaio foram perdidas.

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