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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.44 no.1 Rio de Janeiro jun. 2012

 

SEÇÃO LIVRE

 

Colidouescapo. Poesia, sonho, condensação e linguagem em Freud

 

Colidouescapo. Poetry, dream, condensation and language in Freud

 

 

Tainá PintoI; Tania RiveraII

IGraduada em Psicologia pela Universidade de Brasília; Mestranda em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília
IIPsicanalista e Professora da Universidade Federal Fluminense; Pesquisadora do CNPq; Doutora em Psicologia pela Université Catholique de Louvain, Bélgica, com Pós-Doutorado em Artes Visuais na escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro

 

 


RESUMO

Nesse artigo são explorados pontos comuns entre as composições vocabulares do livro-poema Colidouescapo, de Augusto de Campos, e o tratamento que frequentemente as palavras recebem nos sonhos. Tanto nas formações do inconsciente como na poesia a palavra é tratada como matéria concreta, coisa sonora e visual. Nossa reflexão toma a condensação, conceito fundamental na teoria freudiana do trabalho do sonho, como a operação que permite a formação de palavras-valises que resistem a qualquer significado e ao mesmo tempo abrem para caminhos múltiplos de sentido. Neste paradoxal lugar, nos limites da linguagem, tais formações são articuladas ao umbigo do sonho, ponto de denso emaranhamento dos pensamentos do sonho que não cedem à interpretação.

Palavras-chave: poesia; sonho; condensação.


ABSTRACT

In this article common points between the word formation taken from the book-poem Codidouescapo by Augusto de Campos and the treatment that words usually get in dreams are explored. In both shaping the unconscious and in poetry, the word is treated as a concrete subject, something visual and audible. Our reflexion uses the Condensation, the fundamental concept of the Freudian dream-work theory, as the operation that allows the formation of "portmanteau words" which resist to any signification and at the same time open themselves to multiple pathways of meanings. In this paradoxical place, in the limits of language, such formations are articulated to the navel of the dream, point of dense entanglement of the dream thoughts which do not succumb to interpretation.

Keywords: poetry; dream; condensation.


 

 

Colidouescapo, de Augusto de Campos (1971/2006), é uma obra de difícil definição. Trata-se de um objeto vermelho, com as mesmas dimensões de uma capa de CD, atravessado horizontalmente pelas letras brancas garrafais que formam o título e que por pouco não cabem no espaço. Para lê-lo é preciso virar o objeto já que na frente há apenas: "COLIDOU", e no verso "UESCAPO", sendo que a letra "u" que une as duas palavras está pela metade tanto na capa como no verso. Por dentro encontramos folhas brancas, soltas, dobradas ao meio e em cada uma delas há uma palavra (ou duas, se quisermos) escrita em vermelho, tanto na frente como no verso. A dobra da página, que nunca é numerada, marca sutilmente uma divisão de cada palavra: "SUBS/CONTRO"; "DESEN/TENDO"; "SUS/ CREVO" (Campos, 1971/2006).

A palavra-valise colidouescapo tem origem no Finnegans Wake de James Joyce, onde consta collideorscape no original em inglês. Em português ela parece a união de "colido" + "ou" + "escapo", além de sugerir uma proximidade com caleidoscópio. O livro foi lançado numa edição de autor em 1971 e em 2006 ganhou nova edição que reproduz integralmente o projeto gráfico original1. Em sua folha de rosto lemos: "redobrar as folhas e/ou misturar as páginas à vontade" seguido por uma assinatura com apenas as iniciais de Augusto de Campos. E mais abaixo, enigmaticamente, quem sabe antecipando uma questão que ainda nem tivemos chance de formular, temos: "reposta: um colidouescapo". Seguir a única recomendação significa praticamente não limitar-se em praticamente nada, podemos tomar "redobrar e/ou misturar à vontade" como uma espécie de não regra. O leitor é livre para montar seu projeto de leitura como bem en-tender, seguindo uma dentre as inúmeras possibilidades que a obra oferece.

Um exemplo consiste em encaixar as folhas umas dentro das outras, como se fôssemos os próprios editores da obra. Desta maneira cada página virada apresenta uma palavra, e como as folhas são soltas é sempre possível alterar a ordem da paginação. Assim, criamos um livro móvel. Obedecer à risca a não-regra a cada vez que pegamos o livro-poema implica praticamente na impossibilidade de repetir a experiência de leitura anterior. Jorge Luis Borges (1949/2008), em um trecho de seu famoso conto O Aleph, diz que quando criança ficava maravilhado com o fato de as letras de um livro fechado não se misturarem nem se perderem ao longo da noite. Colidouescapo parece realizar tal temor borgeano, ao embaralhar literalmente as palavras, transformando, por exemplo, subs/preso em subs/tento e dis/paro em desam/paro.

Mas montar um livro móvel é apenas uma das possibilidades de composição. Seja qual for a forma de ler, interessante é destacar que esse livro-poema nos convida a criar não só palavras como também maneiras de leitura. Trata-se de uma obra que convida à participação aquele que lê e, portanto, explicita a leitura como atividade de criação, vivência e transformação da linguagem. Podemos dizer que ela é um processo já que é apenas ao longo do exercício de experimentação que a obra se constitui. A matemática certamente nos permitiria chegar à quantidade exata de combinações possíveis de Colidouescapo. Mas o importante não é descobrir esse número e sim jogar, seguir o convite e brincar com o acaso, à vontade. E é assim, brincando, que acabamos também convocados a refletir sobre a linguagem.

 

SUBS/CONTRO(S)

Nesse jogo com fragmentos vocabulares, na maioria das vezes colidimos com palavras esquisitas, para as quais jamais encontraremos sentido em dicionários, do tipo: deses/prezo ou exis/crevo, palavras que podem ficar ainda mais estranhas e sem sentido quando combinadas a três: res/pero/canto ou dis/exis/tinto. Formam-se combinações interessantes que por mais inusuais que sejam ainda assim nos remetem a restos de palavras conhecidas como: desamparo, existir, escrever, desespero, desencanto, desprezo.

Tomando por exemplo deses/prezo, podemos pensar que ela aponta para palavras como preso, desprezo, desespero. É possível pensá-las assim separadamente ou ainda juntas, como se deses/prezo fosse uma palavra única para significar desespero desprezível, desprezo desesperador ou ainda preso desespero. Enfim, as possibilidades são diversas e tal aglomeração de sentidos nos sugere a formação de palavras-valise como a que dá título ao livro-poema.

Gilles Deleuze (2009) define palavras-valise como aquelas que contraem várias palavras e ao mesmo tempo envolvem vários sentidos. Para que não sejam confundidas com meras contrações o autor reforça o aspecto dos diferentes campos semânticos: "É a função ramificante ou a síntese disjuntiva que dá a definição real da palavra-valise" (Deleuze, 2009: 50). A síntese disjuntiva é a própria união dos campos semânticos distintos e por função ramificante entendemos a função do que o autor chama de "palavra esotérica", em sua capacidade de ramificar sentidos, abrir trajetos. A palavra-valise guarda sentidos em sua maleta, com ela é possível ir de uma palavra a outra por caminhos múltiplos, podemos pensar que ela nos lança em um mar de infinitos percursos, travessias diversas e incessantes. Pensar Colidouescapo como um criador de palavras-valise só acentua sua potência caleidoscópica da linguagem, e sobre tal potência e os elementos envolvidos falaremos mais adiante.

Colidouescapo promove (des)encontros de pedaços vocabulares, inventando palavras no momento em que colidimos com elas. Nessa colisão, somos convidados a refletir sobre o que seria deses/prezo ou subs/contro, por exemplo. Subs/contro poderia ser um encontro por baixo, inferior ou faltoso? Além de buscar um possível sentido, somos praticamente impelidos a refletir sobre a própria natureza da palavra com a qual colidimos: não seriam todos os encontros, inclusive esses vocabulares, um tanto sub? Jamais plenos e satisfatórios, não seriam eles na verdade plenos de incompletude e insuficiência?

 

EX/ISTO OU "O EXTRANHO"

É curioso observar que depois de tanto cruzar com essas novas palavras impensáveis, quando de repente colidimos com uma palavra conhecida surpreendentemente a estranhamos: ex/isto é o mesmo que existo? E é algo que deixou de ser e por isso ex-iste ou é externo e existe fora? Pensado assim aos pedaços, o ex e o isto da existência nos provocam.

E numa primeira olhada é como se sus/piro não ex-istisse e não tivesse sentido assim como sus/prego ou menos/piro. E depois de al-guns segundos de não reconhecimento nos pegamos pensando: há piro em suspiro; paro em desam/paro e prego em desem/prego.

Não reconhecer sus/piro e ex/isto lembra a experiência de estranhamento que Freud (1919/1996) nos conta numa nota de rodapé de seu texto "O estranho": ia ele viajando sozinho num compartimento de trem quando um solavanco mais violento fez girar a porta do banheiro ao lado, e um senhor de boné e roupão entrou. Freud supôs que aquele homem de aparência desagradável se enganava de compartimento e levantou-se com a intenção de corrigi-lo, quando percebeu que se tratava, na verdade, de seu próprio reflexo no espelho da porta aberta.

Talvez pela forma como as combinações são apresentadas em Colidouescapo, palavras conhecidas já de muito tempo tornam-se estranhas - à maneira da ideia central desse texto freudiano. Para o autor, a sensação de estranhamento está no que há de familiar nisso que nos estranha, ou no não reconhecimento disso que é meu, tal como minha própria imagem. O próprio termo Unheimliche é uma palavra estranhada, que Freud desmonta em un- (prefixo de negação) e heimlich, um adjetivo que desenvolve seu significado numa direção ambivalente já que tanto indica familiar e íntimo, como também estranheza e inquietação, coincidindo então com a palavra que era de se supor ser seu antônimo: unheimlich.

Em alguns momentos é como se tivéssemos esquecido as nor-mas de ortografia: escreve-se expiro ou espiro? Estinto ou extinto? De alguma forma, Colidouescapo nos "estrangeiriza". Como estrangeiros, nos vemos incertos da escrita de palavras simples do cotidiano. Ainda em "O estranho", Freud faz um breve, porém interessante apontamento sobre nossa relação com a língua que vai nesse mesmo senti-do. Ele vinha pesquisando em dicionários alemães o significado e a etimologia dessa tal palavra unheimlich. Ao estender sua busca para dicionários em outras línguas, os resultados não lhe parecem muito satisfatórios, pois encontra pouca coisa, ou sempre a mesma coisa que já havia encontrado e curiosamente ele conclui: "Mas os dicionários que consultamos nada de novo nos dizem, talvez porque nós próprios falamos uma língua que é estrangeira" (Freud, 1919/1996: 239).

Ao nos depararmos com Colidouescapo não é possível saber se somos nós que nos tornamos estrangeiros à nossa própria língua ou se é nossa língua que se torna outra. E então nessa experiência de estranhamento compartilhamos com o poeta seus versos: "Esta língua não é minha / qualquer um percebe" (Leminski, 2009: 21). Somos abalados em nossas certezas e seguranças, não nos reconhecemos em nossa língua materna. Dada essa relação de estrangeirismo talvez pudéssemos até renomear o texto freudiano como O ex/tranho.

 

EXIS/TINTO

A dimensão fortemente visual das palavras em Colidouescapo parece contribuir para o estranhamento que elas provocam. Se como qualquer outro livro esse também é feito de palavras, elas aí recebem um tratamento visual, como em toda poesia concreta, que nisso sofre a influência seminal de Stéphane Mallarmé com seu "Lance de dados", de 1897 (citado em Campos, Pignatari & Campos, 2010). Escrita em letras garrafais vermelho-sangue e posicionada no centro da página branca, a palavra ganha toda a cena, ela é destacada do lugar que ocupa rotineiramente e se torna outra, de modo muito similar ao que acontece com frequência nos sonhos.

Freud entende que no sonho conteúdo manifesto e conteúdo latente (ou pensamentos do sonho) são um mesmo material em lingua-gens diferentes. Uma dessas linguagens é visual, pictográfica, e nessa medida o sonho é um rébus, um jogo de enigmas imagético no qual as imagens devem ser substituídas por sílabas ou palavras. Mas por vezes no próprio conteúdo onírico esbarramos com palavras, e nesses casos elas parecem ganhar um tratamento diferenciado. Basta lembrar, por exemplo, da fórmula da trimetilamina no sonho modelo freudiano - o famoso "sonho da injeção de Irma". Nele, a fórmula química desta substância surge diante de Freud como ele mesmo descreve: "impressa em grossos caracteres" (Freud, 1900/1996: 141); destacada letra em negrito, numa borda tênue entre palavra e imagem. Aí a linguagem aparece nos limites do que é possível representar, e não é por menos que Lacan (1954-1955/1985), na sua releitura deste que seria o "sonho dos sonhos", considera este momento da aparição da fórmula como um dos seus ápices. Sobre a presença de palavras nos sonho Freud diz:

É verdade, em geral, que as palavras são frequentemente tratadas, nos sonhos, como se fossem coisas, e por essa razão tendem a se combinar exatamente do mesmo modo que as representações de coisas. Os sonhos desse tipo oferecem os mais divertidos e curiosos neologismos (Freud, 1900/1996:321).

A palavra coisificada, fora de seu uso habitual, deixa de ser apenas veículo de transmissão e ganha estatuto de objeto. Tanto no sonho como em Colidouescapo o que percebemos é que a palavra é matéria, é coisa, é concreta.

É por essa outra dimensão da linguagem que clama o manifesto de Augusto de Campos: "Poesia concreta (manifesto)" que pode ser encontrado no livro Teoria da poesia concreta (Campos, Pignatari & Campos, 1965/2006), livro que reúne textos e manifestos dos três poetas que foram publicados entre 1950 e 1960.

Ao visar o núcleo da palavra, a poesia concreta busca romper com a organização sintática rotineira e tradicional: "O poeta concreto vê a palavra em si mesma - campo magnético de possibilidades - como um objeto dinâmico, uma célula viva, um organismo completo, com propriedades psico-físico-químicas, tato antenas circulação: viva (Campos et al., 1965/2006: 71).

A palavra é o objeto da poesia concreta e, como esquematiza Haroldo de Campos em seu manifesto "Olho por olho a olho nu" (Campos et al., 1965/2006), falidos os meios tradicionais de ataque ao objeto (e por tais meios ele entende a língua de uso cotidiano ou de convenção literária), faz-se necessária uma nova forma de atacar. A poesia concreta vai direto à medula, ela é uma atualização "verbivocovisual" da palavra, é a palavra explorada ao máximo em suas possibilidades. Radical em sua maneira de lidar com a linguagem, a poesia concreta força os limites desta em suas experimentações de novas poéticas. Usando Colidouescapo, podemos dizer que a poesia concreta é a palavra exis/tinto, existência que acontece agora, palavra viva, tinto alimento, tinto sangue que pulsa e nutre as artérias da nova linguagem.

 

DE(S)/PERTO

Ao tornar a palavra objeto concreto, a poesia acaba por (des) velar outro lado da palavra, e assim rompe com os fins comunicacionais da linguagem. Na poesia concreta a palavra é sem fim, nos dois sentidos, o de finitude e o de finalidade.

Em geral, digamos, no dia-a-dia, a palavra assume um fim comunicacional, a linguagem precisa funcionar dentro de aspectos práticos e convenções que ordenem o caos do mundo para que as pessoas possam minimamente se entender. Mas nem sempre (ou nunca) essa comunicação é plena, a todo tempo nos complicamos com os equívocos da língua. Hamburger (2007) afirma que idealmente a linguagem no intercâmbio social deveria ser como uma vidraça de janela: não deveríamos perceber que ela está entre nós e o sentido por trás dela. Mas quando recentemente químicos desenvolveram um revestimento que a tornava completamente invisível, os resultados foram problemáticos, pois as pessoas se machucavam ao se chocarem contra ela. Segundo Buckhardt, quanto mais transparente, mais perigoso, pois, "se houvesse uma linguagem pura o bastante para transmitir toda a experiência humana sem distorção, não haveria nenhuma necessidade de poesia" (Buckhardt, 1956, citado por Hamburger, 2007: 53). Uma linguagem assim não só não existe como também não pode existir.

Não poderia existir porque a palavra não é a coisa, tampouco é a experiência. Entre experiência e linguagem há sempre uma hiância. A respeito do descolamento entre coisa e palavra, Pignatari afirma:

com a revolução industrial, a palavra começou a descolar-se do objeto a que se referia, alienou-se, tornou-se objeto qualitativamente diferente, quis ser a palavra flor, sem a flor e desintegrou-se ela mesma, atomizou-se (Joyce, Cummings). A poesia concreta realiza a síntese crítica, isomórfica (Pignatari, citado por Campos et al., 1965/2006: 68).

Justamente porque a palavra se descola do objeto que representa, porque a palavra flor é sem flor, no dia-a-dia da comunicação capturamos o sentido só depois, dependemos sempre do contexto. E esta é simplesmente outra maneira de falar da supremacia do significante, tão bem destacada por Lacan (1966/1998) quando ele inverte o signo saussuriano, propondo que acima da barra está o significante e abaixo, o significado. A imagem sonora, o significante, não está submetida à imagem mental, o significado, mas desliza por uma cadeia infinita, num deslizamento que, como mostram o sonho e os sintomas neuróticos, é a própria estrutura do inconsciente - e, como tão bem explicita a poesia concreta, a base de toda literatura.

A linguagem binária, aquela de computadores, não falha, pois é unívoca - um representante significa sempre algo fixo. Em contraponto a linguagem humana, pela sua multivocidade significante, é falha e equívoca. A poesia inclui a falha e faz da precariedade da linguagem humana o seu cerne.

Dessa possibilidade que a palavra tem de significar várias coisas, de não possuir um sentido único, se trata também, fundamentalmente, no sonho, segundo Freud:

Não há por que nos surpreendermos com o papel desempenhado pelas palavras na formação dos sonhos. As palavras, por serem o ponto nodal de numerosas representações, podem ser consideradas como predestinadas à multivocidade2; e as neuroses, não menos do que os sonhos, servem-se à vontade das vantagens assim oferecidas pelas palavras para fins de condensação e disfarce (Freud, 1900/1996,: 372).

É destino da palavra ter mais de um significado, ela fracassa na univocidade desde a origem, esta é a sua marca de nascença. E essa falha da linguagem aparece em Freud ligada a um conceito fundamental de sua teoria dos sonhos: a condensação.

Na primeira vez que a ideia de condensação surge no livro dos sonhos ela é descrita como um "impulso irresistível a combinar dados" (Freud, 1900/1996: 209). Desde o começo é o adensamento de variados elementos em um único que chama a atenção de Freud. Tal trabalho de compressão realiza não apenas um enxugamento do conteúdo manifesto (que é sempre muito mais reduzido que os pensamentos do sonho) como também promove uma ruptura na linearidade representacional.

O psicanalista chama a atenção para a capacidade da condensação de promover sobredeterminação. Um elemento sobredeterminado no sonho constitui o que Freud chama de "ponto nodal", ponto aglomerante para o qual convergem várias vias associativas no processo de interpretação. Estes nódulos oníricos apresentam em sua sobredeterminação uma estranha característica: fixam em uma única imagem, completamente heterogênea, diversos componentes dos elementos que os determinam. Isso dissolve qualquer possibilidade de linearidade entre representante e representado e constrói redes de significação difusas e de interpretação infinita. Um exemplo disso é a famosa figura de Irma, remetida pelas associações de Freud a várias outras mulheres: a paciente por quem ele desejava substituir Irma (aquela que "abriria a boca" e falaria o que Irma não disse), sua filha mais velha, outra paciente que sucumbiu a um envenenamento, sua própria esposa.

Por ser multívoca, a palavra pode se constituir em ponto nodal de múltiplas representações, facilitando a sobredeterminação e o adensamento de variados significados. E se na rotina da interação social buscamos a transparência da vidraça, a poesia e o sonho, através da condensação, tornam a vidraça espessa, acentuando sua opacidade. Ambos exploram e escavam a falha da linguagem de modo a nela convocar um ponto externo, no ápice da indeterminação e da profusa criação significante: o sujeito.

Mais do que acentuar a existência da vidraça, Colidouescapo nos chacoalha de nossa zona de conforto, nos põe em movimento (junto com a linguagem). E assim de(s)/perto(s) nos damos conta de que no lugar da vidraça há espelhos. E o sentido não depende apenas do lado de lá da janela, ele é efeito de um sofisticado jogo especular - não aquele que espelha em reconhecimento apaziguador, mas aquele que estranha. Espelho múltiplo que em vez de conformar o eu em sua ilusória centralidade divide e dá notícias do sujeito do inconsciente.

 

AS PALAVRAS SÃO DE PLÁSTICO...

Servir-se das incongruências da linguagem é o que faz não só a poesia e o sonho, mas também os sintomas, os atos falhos e as piadas. Todos manipulam a língua de maneira a transformá-la. Em seu livro sobre os chistes, Freud (1905/1996: 41) afirma que "as palavras são um material plástico que se presta a todo tipo de coisas".

A palavra é "material plástico" porque ela perde, recupera e transforma seu sentido a depender das conexões que realiza. Freud faz essa observação após analisar piadas que exploram a ambiguidade das palavras. Como exemplo, podemos tomar a piada do cego, relatada em seu livro: "Como é que você anda?" pergunta o cego ao manco. "Como você vê" responde o manco ao cego (Freud, 1905/1996: 41). Se a princípio anda tem o mesmo sentido de "como vai você?", rapidamente a palavra se esvazia desse sentido para dar lugar a outro, o do andar literal, com as próprias pernas, nesse caso vacilantes. A mesma oscilação semântica acontece logo em seguida com o verbo ver, que acaba ganhando uma conotação agressiva já que se trata de alguém impossibilitado de enxergar.

A palavra é plástica porque se liga a outras palavras, e a partir daí pode perder, mas também recuperar sentido. Freud observa que a palavra, ao ser tratada como coisa, resulta em curiosas composições, como mostra o exemplo presente em outro sonho do próprio Freud do qual ele desperta com a palavra, sem sentido, Autodidasker muito vívida em sua mente (Freud, 1900/1996: 324). Em suas associações, ele logo a decompõe em autor (autor), autodidakt (autodidata) e Lasker (um nome próprio).

O mesmo jogo de combinações de palavra também é destacado das técnicas de construção do chiste. Basta citar o chiste mais famoso da obra freudiana: o pobre agente de loteria se vangloria de que o grande barão, que era seu primo distante, o tenha tratado bem como a um seu igual - bastante "familionariamente" (Freud, 1905/1996: 20), ou seja, familiarmente + milionariamente, da maneira própria a um milionário.

Augusto de Campos toma a palavra como plástica em um sentido mais amplo, como vemos em "poesia concreta":

eis que os poemas concretos caracterizar-se-iam por uma estruturação ótico-sonora irreversível e funcional e, por assim dizer, geradora da ideia, criando uma entidade todo-dinâmica, "verbivocovisual" - é o termo de Joyce - de palavras dúcteis, moldáveis, amalgamáveis, à disposição do poema (Campos et al., 1965/2006: 56).

A palavra por ser plástica se presta a ser moldável, é como massa de modelar capaz de tomar a forma que quisermos, como num jogo de recorta e cola em que deses/pero e sus/piro facilmente se embaralham e formam deses/piro ou sus/pero. Lendo Freud com os concretistas, pode-se sublinhar que a plasticidade das palavras é, em boa medida, consequência de seu caráter amalgamável, fusionante. Com o conceito de condensação, central para a caracterização do trabalho do sonho, o psicanalista, de fato, não indica outra coisa.

 

... E O INCONSCIENTE É DE CONCRETO

Lado a lado com a condensação e o deslocamento, fundamentos do trabalho do sonho, Freud fala de um terceiro fator cuja participação é determinante no processo de transformação do conteúdo latente em manifesto: a consideração pela figurabilidade, ou seja, a transposição de pensamentos em imagens. Ele diz que dentre os vários pensamentos ligados aos pensamentos oníricos a preferência é dada àqueles que admitem representação visual. Para atingir essa representação imagética, o trabalho do sonho muitas vezes remodela a forma verbal do pensamento de maneira que essa nova expressão possibilite uma figuração imagética.

A partir da observação atenta de sonhos, Freud percebe que geralmente acontece que uma expressão insípida e abstrata seja substituída por uma expressão imagética e concreta. Tal substituição parece facilitar pontos de contato com o resto do material onírico. É como se quanto mais concreto (ou quanto mais passível de ser transposto em imagem) o pensamento, mais fartas se tornam as possibilidades de associações com outros pensamentos; e quanto mais abstrato e específico, menores as chances de ligação. Em todas as línguas, segundo Freud, os termos concretos, em decorrência da história do seu desenvolvimento, são mais ricos em associações do que os abstratos. A "concretude" parece, portanto, viabilizar a condensação.

Ao que tudo indica, um caminho mais curto para a troca de expressão verbal envolve o uso de palavras equívocas, que justamente por promoverem imprecisão acabam facilitando a expressão de outros pensamentos. Como Freud ressalta, uma palavra ambígua no lugar de duas inequívocas tem sempre um efeito enganador, assim como a substituição de uma expressão sóbria e abstrata por outra imagética. Tais trocas são desnorteadoras da interpretação porque o sonho nunca avisa de antemão em que sentido deve ser interpretado, se no sentido literal ou figurado, se negativa ou positivamente.

Essas considerações deixam claro que é a multivocidade da palavra que une as diferentes representações para compor a representação onírica, ela funciona como cola para os pensamentos do sonho. Se para Freud o tratamento de Irma foi prejudicado porque ela não falava tudo que devia, em seu sonho isso ganha expressão concreta: a personagem literalmente abre a boca, mesmo que com alguma resistência. A mesma equivocidade encontramos na palavra solução - Lo-sung, em alemão - que, assim como em português, é tanto a solução que se injeta como a solução de um conflito.

Em uma série de conferências proferidas em Harvard, Borges relaciona essa concretude da palavra com a poesia: "Seguindo um argumento histórico descobrimos que as palavras não começaram abstratas, mas concretas - e acredito que, nesse caso, 'concretas' signifique quase o mesmo que 'poéticas'" (Borges, 2007: 84). Ele lembra que a língua não é invenção de acadêmicos ou filólogos, pois foi desenvolvida através do tempo por camponeses, pescadores, cavaleiros. A palavra não vem da biblioteca e sim da vida. Por isso a palavra começaria mágica, talvez um dia a palavra luz tenha parecido lampejar e a palavra noite tenha sido escura, representando ao mesmo tempo a noite tanto em suas ameaças quanto as suas estrelas cintilantes. O significado só se teria tornado estanque com o passar do tempo, depois de muitos anos de utilização da palavra noite no sentido abstrato desse período de horas entre o pôr do sol e o amanhecer. A poesia estaria em retirar a palavra do amortecimento histórico cotidiano e fazê-la retornar às suas fontes concretas - como bem fazem nossos poetas concretos.

 

RESPOSTA: COLIDOUESCAPO OU DA BOCA AO UMBIGO

Se com Augusto vimos que a palavra é organismo completo, célula viva, com propriedades psico-físico-químicas, com Haroldo descobrimos que ela é tridimensional, pois, como ele destaca em seu manifesto "olho por olho a olho nu", ela possui 3 dimensões 3 - a semântica, a visual e a acústica:

a poesia concreta assedia o OBJETO mentado em suas plurifacetas: previstas ou imprevistas: veladas ou reveladas: num jogo de espelhos ad infinitum em que essas 3 dimensões 3 se mútuo-estimulam num circuito reversível libertas dos amortecedores do idioma de comunicação habitual ou de convênio livresco (Campos et al., 1965/2006: 74).

Haroldo parece aí referir-se a um caleidoscópio de palavras. Colidouescapo não é exatamente o tal artefato óptico cilíndrico com três espelhos internos que por jogos de reflexão forma imagens múltiplas e coloridas, mas ele não deixa de provocar a mesma sucessão cambiante e a mesma sensação vertiginosa.

As formações do inconsciente, assim como a poesia, tratam as palavras como coisa sonora e visual. Qualquer semelhança de autodidasker e familionar com o método "colidouescápico", ou ainda com a maneira como as crianças brincam com as palavras e os ditos loucos compõem neologismos, não deve ser mera coincidência. E o fio de ligação de tudo isso está na capacidade da palavra de realizar fusões.

Podemos chamar de potência colidouescápica a possibilidade que a palavra tem de se constituir como ponto condensante, amalgamável e moldável. Aí, não se trata apenas de um acréscimo de sentidos variados. Nessas combinações vocabulares há uma tensão, semanticamente a palavra oscila entre não possuir significação alguma e remeter a significações diversas, quase infinitas, assim como aquele ponto do sonho que Freud nomeia umbigo.

Em sua análise do sonho de Irma, ponto nodal de condensação do sonho, mais especificamente quando ele menciona sua boca escancarada, Freud subitamente interrompe suas associações e indica, nas margens do texto, numa nota de rodapé: "existe pelo menos um ponto em todo sonho ao qual ele é insondável - um umbigo, por assim dizer, que é seu ponto de contato com o desconhecido" (Freud, 1900/1996: 145). É pela boca de Irma, como se vê, que Freud chega ao umbigo do sonho.

Por mais minuciosamente interpretado que seja um sonho, sempre haverá um ponto onde o emaranhado de pensamentos oníricos, que não se deixa desenredar, mergulha na obscuridade. Quando Irma abre a boca, Freud encontra à direita uma grande mancha branca e do outro lado, sobre estranhas estruturas encaracoladas que imitam os cornetos nasais, enxerga crostas cinza-esbranquiçadas. As manchas brancas o fazem lembrar a difterite da amiga de Irma e também da grave doença de sua filha mais velha, que quase a levou à morte. Já as crostas cinza-esbranquiçadas o remetem a preocupações com a sua própria saúde, já que na época fazia uso da cocaína para controlar incômodos nasais e poucos dias antes havia recebido a notícia de que uma paciente que fazia o mesmo uso da droga desenvolvera uma extensa necrose na mucosa nasal. Isso também o fez lembrar um amigo para quem ele havia prescrito a cocaína e que morrera alguns anos antes por abuso da substância. Pela boca de Irma Freud chega ao real da morte, nisso que não se pode mesmo representar. E é diante do umbigo do sonho que surge então a fórmula da trimetilamina, as letras impressas em grossos caracteres, entre imagem e palavra, aí onde o sonho toca os limites da linguagem.

Tanto na boca de Irma quanto na fórmula da trimetilamina é de um enovelamento que se trata, eles são ápices paradoxais já que ao mesmo tempo que se constituem como pontos de proliferação significante também são pontos que a linguagem parece não alcançar, uma vez que não cedem à interpretação. As redes significantes se entrelaçam em nós cegos, insolúveis. A esse respeito Freud diz:

Os pensamentos oníricos a que somos levados pela interpretação não podem, pela natureza das coisas, ter um fim definido; estão fadados a ramificar-se em todas as direções dentro da intricada rede de nosso mundo do pensamento. É de algum ponto em que essa trama é particularmente fechada que brota o desejo do sonho, tal como um cogumelo de seu micélio (Freud, 1900/1996: 557).

Os pensamentos oníricos ficam sem conclusão e se ramificam em todas as direções, numa espécie de contaminação do nosso mundo de pensamentos de vigília. E curiosamente é justo desse ponto inconclusivo de cerrado emaranhamento que brota o sonho, enquanto realização de desejo. É do umbigo que o sonho nasce e é nele que as associações morrem.

O termo condensação em alemão (Verdichtung) tem o mesmo radical da palavra poeta, artista (Dichter), como ressalta o psicanalista americano Howard Shevrin, em texto de 1972. De fato, sonho e poesia, através da condensação, lidam com a linguagem enquanto densa matéria, espessa vidraça, em seu direcionamento ao insondável, aos limites do significável.

A palavra possui, sempre, uma potência de condensação. Talvez toda palavra seja um tanto fusionada e também fusionante, caleidoscópio girando em suas 3 dimensões 3, ressaltando a multivocidade da linguagem. Como núcleo de proliferação significante, essas combinações ou colisões vocabulares paradoxalmente parecem estar à beira do abismo da significação, mas também se abrem para caminhos múltiplos de sentidos. Em tal disseminada potência de significação ela quase perde a possibilidade de significar algo - ela talvez escape, talvez fique sem lugar, estranha, estrangeira, em um limite muito tênue entre o tanto e o nada. Violenta profusão significante que assim como suga a palavra para dentro do campo semântico também a arremessa para fora e faz dela palavra la(n)çada.

 

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NOTAS

1 Disponível em <http://amautaeditorial.wordpress.com/catalogo/poesia/colidouescapo/>. Recuperado em 13/08/2011.

2 Tradução por nós modificada; itálicos nossos. No original alemão, o termo utilizado por Freud é Vieldeutigkeit.

 

 

Recebido em 30 de janeiro de 2012
Aceito para publicação em 29 de abril de 2012