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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838
Tempo psicanal. vol.45 no.2 Rio de Janeiro dez. 2013
ARTIGOS
As noções de inconsciente derivadas da teoria da defesa: primeiras elaborações freudianas
The notions of unconscious derived from the defense theory: first freudian elaborations
Henrique FróesI; Terezinha de Camargo VianaII
IAluno da graduação em Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: henrique.froes@gmail.com
IIProfessora Associada do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB). E-mail: tcviana@unb.br
RESUMO
O artigo analisa as mudanças que a noção de inconsciente sofre nos primeiros trabalhos de Freud com a introdução do conceito de recalque. Tomando como base o modelo de divisão da consciência concebido na chamada primeira psiquiatria dinâmica, Freud introduz alterações significativas no entendimento sobre os mecanismos que provocam o surgimento da "segunda consciência" e sua ação patológica, além de determinar o caráter sexual do material que dá origem ao inconsciente. O artigo também mostra como as mudanças na técnica terapêutica e a formulação do conceito de resistência levou Freud a abandonar o modelo da divisão da consciência e a conceber o primeiro modelo psíquico da história da psicanálise.
Palavras-chave: inconsciente; Freud; história; histeria.
ABSTRACT
This article analyzes the changes that the notion of the unconscious went through in Freud's first works due to the introduction of the concept of repression. Based on the model of the division of the consciousness taken from the first dynamic psychiatry, Freud introduces significant changes on the understanding of the mechanisms that create the "second consciousness" and their pathologic action. He also determinates the sexual character of the material that originates the unconscious. This article also shows how the change in the therapeutic techniques and the formulation of the concept of resistance lead Freud to abandon the model of the division of the consciousness and to conceive the first psychological model of psychoanalytic history.
Keywords: unconscious; Freud; hysteria; history.
INTRODUÇÃO
A teoria da defesa foi a primeira contribuição ao mesmo tempo original e relevante de Freud para o campo da medicina e da psicologia. Tornada pública em meados da década de 1890, ela se constituiria na "pedra angular sobre a qual repousa toda a estrutura da psicanálise" (Freud, 1914/2006: 25). Também chamada indistintamente de teoria do recalque ou da repressão, é por meio dela que a noção de inconsciente ganha sua especificidade no âmbito do pensamento freudiano, sendo progressivamente desenvolvida e elaborada até transformar-se em um conceito metapsicológico fundamental.
Mas, antes mesmo de trazer à luz do dia sua teoria da defesa, Freud já utilizava em seus textos pré-psicanalíticos noções sobre o inconsciente. Em trabalho anterior1, procurou-se mostrar quais eram essas noções e como elas se relacionavam com outros discursos, anteriores ou contemporâneos a Freud, a respeito do inconsciente. Nesses textos pré-psicanalíticos, Freud dialoga com diferentes tradições que se detiveram sobre esse objeto privilegiado que marcou presença nos campos da filosofia, da medicina, da psicologia e das artes durante todo o século XIX. Ao contrário do que apregoam certas narrativas sobre a história da psicanálise, não foi Freud o primeiro a falar de inconsciente.
Parte de um estudo sobre as apropriações e rupturas que o pensamento freudiano promove com outros discursos sobre o inconsciente, esse trabalho busca, por meio da leitura pormenorizada dos textos freudianos e com o auxílio de alguns de seus comentadores, depreender as noções de inconsciente que surgem com a introdução da teoria do recalque, relacionando-as, quando possível, com as concepções de outros autores e tradições. Esta análise tomará como base o artigo "As neuropsicoses de defesa" (Freud, 1894/2006) e partes do livro "Estudos sobre a histeria" (Breuer & Freud, 1895/2006), considerados os textos mais importantes no estabelecimento da teoria da defesa em seus momentos iniciais. Assim, este artigo busca contribuir para o campo da epistemologia psicanalítica por meio de uma pesquisa de cunho histórico que possibilite uma maior compreensão do contexto intelectual que serviu de base para a apropriação, por Freud, da ideia de inconsciente. Este trabalho busca também demarcar as contribuições específicas de Freud nesse campo, que o levaram a elaborar o conceito de inconsciente propriamente psicanalítico, permitindo, assim, determinar a especificidade desse conceito metapsicológico fundamental.
O RECALQUE E A DIVISÃO DA CONSCIÊNCIA
Apesar de a noção de recalque já ter sido esboçada em textos anteriores, como "Um caso de cura pelo hipnotismo" (Freud, 1893/2006) e "Comunicação preliminar: sobre o mecanismo psíquico dos fenômenos histéricos" (Breuer & Freud, 1893/2006), Mezan (2008) ressalta que isso não pode ser equiparado ao desenvolvimento de um conceito. Esse passo somente seria dado nos textos dos anos 1894-1895, primeiramente no artigo "As neuropsicoses de defesa" (Freud, 1894/2006). Esse texto destaca-se dentro da produção freudiana do período por ser o primeiro em que Freud não se detém exclusivamente no campo da histeria, estendendo suas considerações a outros tipos de neuroses (fobias e obsessões) e também à psicose, graças à chave proporcionada pela teoria da defesa na explicação das diversas patologias.
A noção de recalque já estava presente nas referências anteriores às lembranças recalcadas e às ideias antitéticas reprimidas (Freud, 1893/2006), mas é em "As neuropsicoses de defesa" (1894/2006) que ela seria explorada em detalhes e tornar-se-ia central. Freud (1894/2006) descreve o mecanismo de defesa como o resultado do confronto do ego com uma experiência, representação ou sentimento aflitivo. Frente a essa situação, o sujeito decide, então, esquecer o motivo de tal sofrimento. Algo, no entanto, falha na busca por esse objetivo, o que dará origem a diversos estados patológicos.
O entendimento da ação do mecanismo de defesa sofre uma importante modificação. Na "Comunicação preliminar" (Breuer & Freud, 1893/2006), o recalque agia sobre a lembrança e o afeto a ela ligado, "expulsando-os" da consciência. Seu poder patológico expressava-se no momento em que a seconde conscience originada desse processo passava a controlar o sujeito. Agora, a ação da defesa e suas consequências passam a ser múltiplas. Numa das formas de histeria (a de defesa), ela provoca a dissociação entre a representação e o afeto, enfraquecendo assim a primeira e convertendo essa soma de excitação retirada em algo somático. A mesma cisão ocorre nas obsessões e fobias, com a diferença de que o afeto resultante seria transposto para outra representação. Já na psicose, tanto a representação quanto a soma de excitação são rejeitadas pelo ego. Em todas essas patologias ocorre, segundo Freud (1894/2006), o fenômeno da divisão da consciência.
Se na "Comunicação preliminar" (Breuer & Freud, 1893/2006) a tendência à dissociação da consciência era considerada o fenômeno básico da histeria, agora ela está presente em outros tipos de neurose (e até na psicose), ao mesmo tempo que se ausenta de alguns tipos de histeria. No texto, Freud (1894/2006) distingue entre a histeria de defesa, a hipnoide e a de retenção. O segundo tipo é atribuído a Breuer, que propõe uma tendência nos histéricos a sofrerem estados de consciência peculiares de restrita capacidade de associação. Uma representação surgida nesse estado fica excluída da consciência, provocando, assim, o surgimento da seconde conscience, que, nas palavras de Freud (1894/2006), é secundária e adquirida. Já na histeria de retenção, a divisão da consciência não desempenha papel relevante, pois a doença surge devido à mera falta de reação aos estímulos traumáticos. O que passa a caracterizar a histeria, então, não é mais o splitting off e sim a capacidade de conversão.
É possível traçar antecedentes da noção de repressão desde, pelo menos, a psicologia herbartiana. Dentro do seu esquema dinâmico, o recalque é um dos destinos possíveis do conflito entre representações de natureza idênticas, transformando-se, então, em tendências (Assoun, 1983). No entanto, como ressalta Ederlyi (2006), a repressão para Herbart é um mecanismo que não possui o caráter defensivo que lhe atribui Freud posteriormente. Levin (1980) ressalta que a noção de que as ideias seriam inibidas ou reprimidas está presente em boa parte do pensamento psicológico do final do século XIX e destaca que, para Freud, a repressão tem um caráter patológico de características únicas, diferenciando-se, assim, da noção de repressão como mecanismo usual do psiquismo.
Em linhas gerais, o inconsciente que se desenha a partir do conceito de recalque estava calcado no modelo da divisão da consciência. Tal modelo perpassou uma parte considerável do pensamento clínico do século XIX, desde os primeiros magnetizadores, passando por Azam e Charcot e culminando com os discípulos deste, notadamente Binet e Janet. A ideia de uma divisão da consciência está intimamente ligada com os fenômenos da dupla e da múltipla personalidade e também da hipnose, que acabaram servindo de modelo para pensar principalmente a histeria e, agora com Freud, até mesmo outras neuroses e a própria psicose.
O modelo da dupla consciência permitia explicar a amnésia que caracterizava os transes hipnóticos. Pessoas submetidas à hipnose normalmente não se recordavam do que lhes ocorria durante esse estado, mas, durante novo transe, a memória desses fatos reemergia. O mesmo ocorria nos casos de dupla personalidade, em que uma delas não se lembrava do que ocorria durante a predominância da outra. A suposta existência de uma seconde conscience também possibilitava a compreensão do fato de que o sujeito que executava uma sugestão pós-hipnótica - uma ordem dada durante o transe - não conseguia posteriormente explicar a verdadeira razão de seu comportamento (Levin, 1980).
A dissociação da consciência era considerada um fenômeno patológico e a predominância (ou a ação) da seconde conscience sobre a consciência "normal" explicava a causa de ataques e sintomas histéricos. Essas duas noções estão presentes na "Comunicação preliminar" (Breuer & Freud, 1893/2006). Já em "As neuropsicoses de defesa" (Freud, 1894/2006), permanece a ideia de que a divisão da consciência é patológica, mas com uma diferença fundamental em relação aos pensadores contemporâneos. Para Freud (1894/2006), agora, a divisão da consciência é o resultado de um conflito em que houve uma vontade expressa do sujeito de livrar-se da lembrança ou da representação aflitiva. Na concepção de Breuer (Breuer & Freud, 1895/2006) dos estados hipnoides, por exemplo, esse processo ocorreria por uma tendência inata nos histéricos à dissociação da consciência. Para Janet (Pereira, 2008), por outro lado, é o estreitamento do campo da consciência graças à diminuição da capacidade de síntese característico dos histéricos que provoca o surgimento da seconde conscience. Na nova abordagem de Freud (1894/2006), se a divisão da consciência é um processo patológico, por outro lado ele não ocorre independentemente do sujeito.
O papel da seconde conscience também se modifica face ao desenvolvimento do conceito de defesa. Se antes ela provocava os sintomas e ataques histéricos ao intrometer-se na consciência normal ou mesmo sobrepujando-a, no novo modelo proposto por Freud (1894/2006) ela será destituída de seu poder "possessivo", como se pode notar na descrição do processo psicofísico da conversão da histeria. Segundo o texto, após a cisão que dá origem ao núcleo dessa outra consciência ("momento traumático"), toda vez que uma nova impressão da mesma espécie da recalcada consegue transpor a barreira da vontade ("momentos auxiliares"), a representação enfraquecida é renovada com afeto e restabelece o elo associativo entre a consciência e a seconde conscience, até que uma nova conversão ocorra e estabeleça uma defesa. É possível também que a excitação obrigada à conversão somática reencontre o caminho de volta para a representação da qual se destacou. Nesse caso, cabe ao sujeito elaborar a representação de forma associativa (dando origem a um sintoma) ou livrar-se dela mais uma vez por meio de um ataque histérico. Nas outras patologias provocadas pelo mecanismo de defesa (obsessões e fobias, psicose), a seconde conscience permanece sem o poder de controlar as ações do sujeito.
Como se pode constatar, Freud manteve o modelo da divisão da consciência em sua abordagem sobre o inconsciente, promovendo, entretanto, significativas alterações e acréscimos. Outro modelo, no entanto, surge em um trecho isolado durante a abordagem do mecanismo de defesa nos casos de obsessão e fobia. Nele, o autor busca explicar o que ocorre no período compreendido entre o recalque da representação sexual inaceitável, obtida pelo esforço do sujeito, e o surgimento posterior da representação obsessiva:
A separação da representação sexual de seu afeto e a ligação deste com outra representação - adequada, mas não incompatível - são processos que ocorrem fora da consciência. Pode-se apenas presumir sua existência, mas não prová-la através de qualquer análise clínico-psicológica. Talvez fosse mais correto dizer que tais processos não são absolutamente de natureza psíquica, e sim processos físicos cujas consequências psíquicas se apresentam como se de fato tivesse ocorrido o que se expressa pelos termos "separação entre a representação e seu afeto" e "falsa ligação" deste último (Freud, 1894/2006: 60).
Aqui, Freud (1894/2006) alinha-se à tradição que Gödde (2009) denomina de inconsciente cognitivo. A noção de pequenas percepções de Leibniz é considerada um marco dessa linha de pensamento, que terá como um de seus principais representantes Herbart e sua visão dinâmica do psiquismo em que representações estariam em constante luta para adentrarem a consciência. Fechner e Helmholtz procuraram desenvolver as ideias de Herbart por meio de abordagens experimentais. Freud compartilha com esses autores a noção de que existe um aquém da consciência, em que percepções e representações encontram guarida quando não se fazem presentes na consciência, tendo, no entanto, o poder de influenciar o psiquismo. No trecho acima, esse inconsciente é concebido como puramente cerebral. Tal concepção parece ser mantida no pensamento de Freud até, pelo menos, o "Projeto para uma psicologia científica" (Freud, 1895/2006), sendo, a partir de então, preterida pela concepção puramente psicológica do inconsciente.
O CONTEÚDO DO RECALQUE: A SEXUALIDADE
Não é apenas o conceito de defesa que vem ao primeiro plano em "As neuropsicoses de defesa" (Freud, 1894/2006). Nesse texto seminal do pensamento freudiano, outra importante questão surge à tona, pela primeira vez, de forma central nos escritos de Freud: o papel da sexualidade na etiologia das neuroses. Nele, apesar de ainda não afirmar com todas as letras, Freud aponta constantemente para o fato de que os alvos do recalque são, de maneira geral, as representações ligadas à vida sexual.
As referências anteriores nos trabalhos de Freud sobre o papel da sexualidade são constantes, apesar de acessórias. No artigo para a enciclopédia de Villaret sobre a Histeria (Freud, 1888/2006: 87), por exemplo, ele admite que "as condições funcionalmente relacionadas à vida sexual desempenham importante papel na etiologia da histeria (assim como na de todas as neuroses), e isto se dá em virtude da elevada significação psíquica dessa função, especialmente no sexo feminino". A afirmação não é acompanhada de novos comentários, a não ser um em que ele observa que um casamento feliz pode interromper a doença, que retornaria, no entanto, quando as relações conjugais se esfriassem. Aqui, Freud (1888/2006) mostra estar imbuído do senso comum de sua época, pois, como aponta Ellenberger (1970), era opinião corrente entre neurologistas, ginecologistas e o público em geral que a histeria era derivada de desejos sexuais frustrados.
A questão da etiologia sexual vai ganhando predominância no pensamento de Freud nos primeiros anos da década de 1890, como pode ser observado nas cartas a Fliess. Primeiramente, ela surge no âmbito das considerações sobre a neurastenia e a neurose de angústia, duas entidades clínicas que Freud (1887-1904/1986) procura diferenciar das neuropsicoses (histeria, obsessão e psicose) devido à ausência de um mecanismo psíquico. Em ambas não se daria o fenômeno da defesa, sendo causadas diretamente por práticas sexuais insatisfatórias (como o coito interrompido) ou extenuantes (por exemplo, a masturbação). Posteriormente, a partir de "As neuropsicoses de defesa" (Freud, 1894/2006), o fator sexual passa a abarcar também o segundo grupo de patologias.
Ao descrever o mecanismo da defesa, Freud (1894/2006: 55) destaca no texto que, nas mulheres, o tipo de representação incompatível "assoma principalmente no campo da experiência e das sensações sexuais". Ao abordar as obsessões, ele ressalta que, em todos os casos por ele tratados, o afeto aflitivo era originado da vida sexual do sujeito. Mesmo admitindo que esse afeto poderia advir de outras fontes, Freud (1894/2006: 59) enfatiza que "é fácil verificar que é precisamente a vida sexual que traz em si as mais numerosas oportunidades para o surgimento de representações incompatíveis".
A teoria das neuroses de Freud passaria, então, a basear-se em duas premissas: 1) a de que a doença teria origem no recalque de uma representação desagradável e; 2) essa representação advém da esfera sexual. Em outras palavras, o inconsciente freudiano da época é compreendido como o fruto do recalque de uma ideia ou lembrança ligada à sexualidade que forma o núcleo do que será denominado a seconde conscience. Tal inconsciente passa a ter um conteúdo específico, diferentemente do que Freud e Breuer propunham na "Comunicação preliminar" (Breuer & Freud, 1893/2006), em que qualquer representação que não fosse adequadamente ab-reagida, mesmo as mais insignificantes, poderiam ser dissociadas da consciência e formar o núcleo desse inconsciente.
A sexualidade desempenharia um papel fundamental no interior da teoria psicanalítica. Celes (2010) observa que ela seria elevada ao conceito fundamental na forma de sexualidade infantil. Mas já nesse período de conceituação da teoria da defesa, Freud aponta para
o caráter sexual - ainda não especificado - dos conteúdos inconscientes, que será posteriormente desenvolvido e problematizado por meio de conceitos como pulsão, fantasia, recalque originário, etc.
A RESISTÊNCIA E O INCONSCIENTE
A teoria da defesa desenvolve-se concomitantemente às modificações na técnica terapêutica experimentadas por Freud. A utilização do método catártico "descoberto" por Breuer no tratamento de Anna O., em que o paciente era hipnotizado com o objetivo de acessar as lembranças traumáticas e ab-reagi-las adequadamente, foi sofrendo modificações na clínica de Freud. Primeiramente, devido à dificuldade em submeter todos os pacientes ao transe hipnótico. Posteriormente, graças à elaboração da noção de resistência, que faz sua primeira aparição em "Estudos sobre a histeria" (Breuer & Freud, 1895/2006).
O livro publicado em conjunto por Breuer e Freud em 1895 é um retrato precioso das modificações pelas quais passou o pensamento do criador da psicanálise em um curto intervalo de tempo. Verdadeiro work in progress, os "Estudos sobre a histeria" (Breuer & Freud, 1895/2006) deixam transparecer as exigências que a teoria da defesa impôs ao admirador de Charcot, visíveis no percurso que começa com a "Comunicação preliminar" (Breuer & Freud, 1893/2006), publicada originalmente em 1893 e reeditada como primeiro capítulo do livro, que passa pelas modificações técnicas na apresentação dos casos clínicos e culmina nas especulações teóricas do capítulo sobre a psicoterapia da histeria. Esse percurso se encerra com a tentativa de um novo entendimento sobre a noção de inconsciente influenciado pelo fenômeno clínico da resistência.
O método catártico de Breuer, desenvolvido durante o tratamento de Anna O., teorizado na "Comunicação preliminar" (Breuer & Freud, 1893/2006) e posto em prática por Freud no caso Emmy von N., agia especificamente sobre os sintomas histéricos, provocados por lembranças dissociadas da consciência. A terapia consistia no uso da hipnose como forma de acesso à seconde conscience com o objetivo de rememorar a representação afastada e, por meio da fala, permitir a liberação do afeto estrangulado. Outra possibilidade era o uso da sugestão por parte do médico para eliminar a lembrança traumática. Removiam-se, assim, com sucesso, os sintomas. Mas o método mostrava-se impotente para combater a predisposição histérica de surgimento dos estados hipnoides e da posterior divisão da consciência.
Todavia, o que fazer quando o acesso à seconde conscience e às lembranças patogênicas era barrado pela impossibilidade de submeter o paciente à hipnose? Diante dessa severa limitação, Freud conta nos "Estudos sobre a histeria" (Breuer & Freud, 1895/2006) que passou a tentar ampliar a memória dos pacientes por outros meios. Por meio da insistência e de pedidos de concentração, Freud (Breuer & Freud, 1895/2006) consegue então obter as recordações relacionadas ao surgimento do sintoma em questão. Sem o recurso da hipnose, ele se torna capaz de observar um fenômeno que surge toda vez que ele se aproximava dos conteúdos dissociados da consciência:
Experiências como essas fizeram-me pensar que seria de fato possível trazer à luz, por mera insistência, os grupos patogênicos de representações que, afinal de contas, por certo estavam presentes. E visto que essa insistência exigia esforços de minha parte, e assim sugeria a ideia de que eu tinha de superar uma resistência, a situação conduziu-me de imediato à teoria de que, por meio de meu trabalho psíquico, eu tinha de superar uma força psíquica nos pacientes que se opunha a que as representações patogênicas se tornassem conscientes (fossem lembradas). Uma nova compreensão pareceu abrir-se ante meus olhos quando me ocorreu que esta sem dúvida deveria ser a mesma força psíquica que desempenhara um papel na geração do sintoma histérico e que, na época, impedira que a representação patogênica se tornasse consciente (Breuer & Freud, 1895/2006: 283).
Na narrativa freudiana, foi o fenômeno da resistência, aliado ao conhecimento sobre as características aflitivas e indesejáveis dos conteúdos expulsos da consciência, que o conduziu à elaboração da teoria da defesa, apesar de esta ter vindo a público primeiramente, como visto, em "As neuropsicoses de defesa" (Freud, 1894/2006). A introdução da ideia de resistência complica o entendimento sobre o processo terapêutico, já que agora vislumbra-se uma força atuando no sentido contrário ao acesso e à ab-reação das lembranças patogênicas. Surge agora um obstáculo nesse caminho, e é para ele que se voltam as atenções do terapeuta. Seu objetivo, agora, torna-se superar a resistência à associação por meio do trabalho psíquico (Breuer & Freud, 1895/2006).
No modelo da divisão da consciência, a lembrança patogênica é um "corpo estranho", expressão utilizada várias vezes por Freud e Breuer, tal como um vírus que adentra o corpo do doente. Dele o paciente nada sabe ou recorda, sofrendo seus efeitos passivamente, não estando implicado no processo. Com a teoria da defesa e a ideia de resistência, tal concepção sobre o adoecimento neurótico não mais se sustenta e passa a ser alvo das críticas de Freud no capítulo final dos "Estudos sobre a histeria" (Breuer & Freud, 1895/2006).
Freud (Breuer & Freud, 1895/2006) descreve no texto como começou a utilizar o artifício técnico de colocar a mão na testa do paciente e sugestionar ao paciente que, quando ela fosse retirada, a ideia ou lembrança procurada surgiria. Ao comentar a eficiência de tal prática, Freud ressalta que o resultado raramente é a rememoração da lembrança recalcada em si. O que surge é uma representação intermediária, um elo da cadeia de associações ou o ponto de partida de uma nova série que levará à lembrança patogênica. É comum também que o paciente se recorde de algo que lhe é familiar, mas que ele não relacionava com o tema da investigação. Tudo isso, diz Freud (Breuer & Freud, 1895/2006: 286), parece dar a "impressão ilusória de haver uma inteligência superior fora da consciência do paciente, que mantém um grande volume de material psíquico organizado para fins específicos e fixou uma ordem planejada para seu retorno à consciência".
Cazeto (2001) ressalta a importância da crítica de Freud à suposta existência de uma inteligência inconsciente ou de uma segunda personalidade. "[ela] marca uma diferença essencial em relação à 'Comunicação preliminar', bem como a Charcot, Bernheim e Breuer: a exclusão da consciência de representações patógenas não devia fazer supor uma espécie de segundo eu" (Cazeto, 2001: 335). A relação entre o ego e o material dissociado (recalcado) será descrita de uma nova forma, não mais como uma relação de alteridade entre a consciência e um "corpo estranho", mas sim a de partes constituintes de um todo.
As lembranças e ideias traumáticas formam o núcleo em torno do qual uma grande quantidade de material mnêmico se organiza. Freud (Breuer & Freud, 1895/2006) imagina três diferentes formas de arranjo dessa estrutura. A primeira delas é cronológica, descrita como um arquivo que respeita fielmente a ordem de aparecimento das lembranças, da mais antiga à mais recente. A segunda é temática, em que temas que apresentam algum grau de semelhança ou ligação com o núcleo patogênico se estratificam concentricamente. Em cada camada, há um grau de resistência que aumenta proporcionalmente à sua proximidade com o núcleo. Nesse trajeto, passa-se das lembranças facilmente recordáveis àquelas de difícil reconhecimento, chegando mesmo às que são renegadas pelo paciente. O terceiro tipo de arranjo, o da cadeia lógica, é distinguido por Freud como dinâmico em relação aos dois primeiros (morfológicos). Ele se dá de acordo com o conteúdo do pensamento e não segue uma linearidade. A ligação entre esses conteúdos segue um curso irregular, em zigue-zague, das camadas externas em direção ao núcleo. Nesse trajeto tortuoso, ainda se encontram pontos nodais e ligações laterais.
Mezan (2008) destaca duas consequências que a concepção da rigorosa arquitetura do material patogênico trará para o pensamento freudiano. A primeira é uma justificativa para a adoção da técnica da associação livre, já que o falar aparentemente aleatório do paciente estaria condicionado por esses arranjos do material psíquico, sendo interrompido ao deparar-se com uma resistência. A segunda é a de proporcionar a prova cabal de que a histeria não traz em si nada de anormal ou degenerado, como afirmavam Charcot e Janet, por exemplo. Ao contrário, "podemos fazer a um paciente histérico as mesmas exigências de ligação lógica e motivação suficiente na cadeia de ideias, mesmo que se estenda até o inconsciente, que faríamos a um individuo normal" (Breuer & Freud, 1895/2006: 305).
No trajeto que vai do consciente ao recalcado, nada há de gratuito ou de irracional. Se um sintoma histérico parece desprovido de sentido ou motivação, isso se deve ao apagamento dos fios da articulação lógica que ele mantém com as lembranças e ideias recalcadas. Confundem-se, assim, as fronteiras entre o normal e o patológico, pois ambos parecem regidos pela mesma racionalidade. Desse modo, "processos inconscientes passam a ser pensáveis como algo presente, em maior ou menor grau, no eu do mais comum dos homens. O que significa postular a mesma carta de leis para o psiquismo normal e para a constituição do patológico" (Cazeto, 2001: 338).
O que Freud faz, nessas páginas de "Estudos sobre a histeria" (Breuer & Freud, 1895/2006), é construir o primeiro modelo psicológico na história da psicanálise (Giovacchini, 1984). Nele, as partes inconscientes (formadas pelo material recalcado) amalgamam-se com o restante da consciência, como Freud salienta nesse trecho:
Um corpo estranho não entra em qualquer relação com as camadas de tecido que o circundam, embora as modifique e exija delas uma inflamação reativa. Nosso grupo psíquico patogênico, por outro lado, não admite ser radicalmente extirpado do ego. Suas camadas externas passam em todas as direções para partes do ego normal; e, na realidade, pertencem tanto a este quanto à organização patogênica. Na análise, a fronteira entre os dois é fixada de maneira puramente convencional, ora num ponto, ora em outro, sendo que em alguns lugares não pode em absoluto ser estabelecida. As camadas internas da organização patogênica são cada vez mais estranhas ao ego, porém mais uma vez sem que haja nenhuma fronteira visível em que se inicie o material patogênico. De fato, a organização patogênica não se comporta como um corpo estranho, porém muito mais como um infiltrado (Breuer & Freud, 1895/2006: 302).
De "corpo estranho" o inconsciente ganha o status de "infiltrado". Ao invés de ser encarado como algo dissociado da consciência, uma organização à parte, o núcleo da representação patogênica se entrelaça de forma tal com o restante do material psíquico que se torna virtualmente impossível diferenciá-lo. Esboça-se aqui uma concepção do psiquismo em que, após a constituição do inconsciente por meio do recalque, ele mantém-se em interação constante com o ego, produzindo efeitos cujos motivos inconscientes são ignorados pelo sujeito. É um passo fundamental em direção ao aparelho psíquico marcado pela dinâmica entre os sistemas pré-consciente/consciência e inconsciente, que será postulado em "A interpretação dos sonhos" (Freud, 1900/2006).
CONCLUSÃO
A conceptualização do recalque efetuada em "As neuropsicoses de defesa" (Freud, 1894/2006) é acompanhada de uma ampliação do modelo da divisão da consciência, que passa a ser um fenômeno observado não só na histeria, como também na psicose e nas obsessões e fobias. Esse modelo, que tem suas raízes na prática dos magnetizadores e no pensamento clínico francês de boa parte do século XIX - em uma tradição que inclui Binet, Charcot e Janet, entre outros -, sofre alterações significativas com a introdução da teoria da defesa. Freud (1894/2006) não só abandona a ideia de uma "possessão" por parte da seconde conscience do sujeito como também o implica no processo patológico da divisão da consciência, postulando que o recalque seria fruto de uma vontade expressa do doente de livrar-se de ideias ou lembranças aflitivas. Assim, Freud (1894/2006) passa a dar um sentido psíquico ao fenômeno da divisão da consciência (conflito moral), afastando-se das teses de degenerescência ou de uma tendência inata ao splitting off (estados hipnoides).
Outra inovação que a teoria da defesa trouxe para o pensamento freudiano foi a especificação do conteúdo do recalque: as representações reprimidas são aquelas ligadas à esfera sexual. Nesse ponto, Freud marca a sua diferença, mais uma vez, com as ideias defendidas na "Comunicação preliminar" (Breuer & Freud, 1893/2006), em que qualquer lembrança, independentemente de sua característica, poderia ser dissociada da consciência. Janet, por exemplo, é outro autor que não estabelece uma natureza para as "ideias fixas inconscientes" que formariam a seconde conscience. Pode-se considerar esse um primeiro passo para a posterior elaboração do inconsciente psicanalítico indelevelmente marcado pelas experiências e fantasias da sexualidade infantil.
Ao descrever o fenômeno da resistência e as implicações terapêuticas que ele trazia, Freud (Breuer & Freud, 1895/2006) novamente reafirma sua discordância com a concepção de uma inteligência inconsciente, um segundo eu que estaria por trás dos fenômenos patológicos. Com a descrição dos diferentes arranjos do material recalcado e suas relações com outros conteúdos psíquicos, Freud (Breuer & Freud, 1895/2006) aponta para a existência de uma lógica subjacente aos fenômenos patológicos que não só justifica a adoção da técnica da associação livre como indica que as mesmas leis que regem o psiquismo normal também valem para o inconsciente. No capítulo final dos "Estudos sobre a histeria" (Breuer & Freud, 1895/2006), surge um modelo psíquico baseado na interação entre consciente e inconsciente que será uma característica fundamental da primeira tópica.
Tendo em vista o exposto neste trabalho, é possível constatar que, com a introdução da teoria da defesa, Freud começa a efetuar contribuições originais à noção de inconsciente que o distinguem de seus contemporâneos. Antes mesmo de debruçar-se sobre os sonhos e de atentar para o caráter fantasioso do discurso histérico, Freud já havia começado a elaborar um discurso sobre o inconsciente que trazia as marcas do que viriam a ser aspectos fundamentais da teoria psicanalítica, tais como o papel da sexualidade, o recalque e a relação sistemática entre as dimensões inconsciente e consciente do psiquismo.
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NOTA
1 Fróes, H. & Viana, T. C. (manuscrito). A noção de inconsciente nos primeiros textos de Freud: do cognitivo ao reino das sombras.
Recebido em 28 de agosto de 2013
Aceito para publicação em 19 de outubro de 2013