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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.16 no.2 São João del-Rei jun. 2021

 

A miséria da Psicologia Brasileira: subordinação ao capital e colonização-dependência

 

The Misery of Brazilian Psychology: Capital Subordination and Colonization-Dependency

 

La miseria de la Psicología Brasileña: subordinación al capital y colonización-dependencia

 

 

Pedro Henrique Antunes da CostaI; Kíssila Teixeira MendesII

IProfessor do Departamento de Psicologia Clínica e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB). Pesquisador do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Outras Drogas (Crepeia-UFJF). E-mail: hantunes.costa@gmail.com
IIDoutoranda em Psicologia na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pesquisadora do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Outras Drogas (Crepeia) e do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais (IPDMS). E-mail: kissilamm@hotmail.com

 

 


RESUMO

No artigo, discorremos sobre a miséria da Psicologia Brasileira diante de sua consolidação e desenvolvimento, resgatando análises de Marx sobre o desenvolvimento do capitalismo; de Martín-Baró sobre o caráter colonizado-dependente da Psicologia Latino-Americana; e da tradição marxista na Psicologia. Destarte, expomos a miséria idealista da Psicologia, ciência burguesa subordinada ao capital e profissão. Posteriormente, debruçamo-nos sobre a miséria colonial-dependente da Psicologia Brasileira, como expressão da formação colonial-dependente do país, destacando contradições, limitações e possibilidades. A supressão da miséria de nossa Psicologia é a supressão de uma sociabilidade que a tem como miserável; que expressa sua miséria pela Psicologia, tornando-a miserável e se tornando (ainda mais) miserável. Contudo, como caminhos possíveis, apontamos a necessidade de a Psicologia ir além de si como ciência particular e profissão, extraindo contribuições de outros campos do saber-fazer e tomando como suas as necessidades das maiorias populares.

Palavras-chave: Psicologia. Brasil. Marxismo. Colonização. Dependência.


ABSTRACT

In the article we discuss Brazilian Psychology misery. In view of its consolidation and development, we recover Marx's analysis of capitalism development, Martín-Baró's analysis of the colonized-dependent character of Latin American Psychology and the Marxist tradition in Psychology. In this, we expose the idealistic misery of Psychology, bourgeois science subordinated to capital and profession. Later, we looked at the colonial-dependent misery of Brazilian Psychology, as an expression of the country's colonial-dependent formation, highlighting contradictions, limitations and possibilities. The suppression of our Psychology misery is the suppression of a sociability that makes it miserable; that expresses its misery by Psychology, making it miserable and becoming (even more) miserable. However, as possible paths, we point out the need for Psychology to go beyond itself as a particular science and profession, drawing contributions from other fields and, above all, taking the needs of the popular majorities as its own.

Keywords: Psychology. Brazil. Marxism. Colonization. Dependence.


RESUMEN

En el artículo, discutimos la miseria de la Psicología Brasileña. En vista de su consolidación y desarrollo, recuperamos análisis de Marx sobre el desarrollo del capitalismo, de Martín-Baró sobre el carácter colonizado-dependiente de la Psicología Latinoamericana y de la tradición marxista en Psicología. En esto, exponemos la miseria idealista de la Psicología, ciencia burguesa subordinada al capital y profesión. Posteriormente, analizamos la miseria colonial dependiente de la Psicología Brasileña, como expresión de la formación colonial dependiente del país, destacando contradicciones, limitaciones y posibilidades. La supresión de la miseria de nuestra Psicología es la supresión de una sociabilidad que la hace miserable; que expresa su miseria a través de la Psicología, haciéndola miserable y volviéndose (aún más) miserable. Sin embargo, como caminos posibles, señalamos la necesidad de que la Psicología vaya más allá de sí como ciencia particular y profesión, extrayendo aportes de otros campos y tomando como propias las necesidades de las mayorías populares.

Palabras clave: Psicología. Brasil. Marxismo. Colonización. Dependencia.


 

 

Introdução

No presente artigo, buscamos discorrer sobre a miséria da Psicologia Brasileira como complexo do saber-fazer, isto é, disciplina particular do conhecimento e profissão. Trata-se de um artigo teórico-analítico a partir do materialismo histórico-dialético, em que a análise concreta da Psicologia é submetida ao escrutínio da concretude histórica que a forja como campo do saber-fazer particular; uma forma de se analisar a psicologia (em movimento) circunscrita à própria realidade em movimento, produto da mesma, ao passo que a forja. Seus pressupostos e fundamentos dizem das próprias necessidades e contradições societárias que convergem para a existência da Psicologia; sua história não é uma mera história das ideias, abstrações que pairam no ar e nas mentes, ordenando-se linearmente sem tocar os chãos do real. Desconsiderar esses fatores é descaracterizar a Psicologia em sua concretude, como produção humana, de humanos que se fazem em uma concretude histórica e produzem a história, só que em condições fornecidas no próprio curso desta.

No percurso de desenvolvimento capitalista, a ciência passa a "ocupar um lugar de destaque na produção [...] a última, porém a mais importante após o trabalho, das propriedades sociais a se converter num auxiliar do Capital" (Yamamoto, 1987, p. 20). Assim, a Psicologia deve ser analisada a partir de sua base material - a totalidade de relações produtivas, que é para Marx (1859/2008, p. 47) a "estrutura econômica da sociedade" -, expressando tais condições e incidindo nelas, em determinações reflexivas. Referente às especificidades da Psicologia Brasileira, como um "complexo específico de ideias e práticas", estas devem ser escrutinadas "a partir de sua inserção em um complexo mais amplo: a sociedade capitalista brasileira" (Lacerda Jr., 2013, p. 218).

A partir do exposto, elaboramos uma trilha analítico-argumentativa que segue por dois caminhos que se conformam. Primeiramente, discorremos sobre a miséria da Psicologia como ciência e profissão burguesa, seu caráter idealista, subjetivista e sua subordinação ao capital. Para isso, resgatamos exercícios historiográficos sobre o desenvolvimento da Psicologia - e suas particularidades brasileiras -, dialogando com as análises de Marx sobre o desenvolvimento do capitalismo, de modo a explicitar que as bases ontológicas, epistemológicas, práticas e ético-políticas da Psicologia são as do capitalismo, mesmo que em determinados momentos e âmbitos da Psicologia estas sejam criticadas. Cabe ressaltar a referência, desde o título - uma analogia à Miséria da Filosofia (Marx, 1847/2017) -, à teoria social marxiana, que se põe não apenas como forma de interpretação da realidade, mas ferramenta para a sua transformação. Por miséria da Psicologia, entende-se, num primeiro momento, sua condição idealista, subjetivista atrelada ao modo de produção capitalista, ao ser produto deste em seu curso, e, mais especificamente, a sua subordinação ao capital.

Posteriormente, damos continuidade à análise nos moldes supracitados dialogando também - e sobretudo - com Ignacio Martín-Baró e sua Psicologia da Libertação. Nisso, debruçamo-nos sobre a particularidade da miséria colonial-dependente da Psicologia Brasileira, como expressão da particularidade da formação colonial-dependente do país. Num terceiro momento, considerando a realidade como movimento dialético e, portanto, contraditório, esboçaremos uma síntese, trazendo apontamentos sobre esforços que ensejaram romper com a utilidade da Psicologia Brasileira à ordem, no que se denominou de Psicologia Crítica, ao mesmo tempo em que sinalizamos limitações de tais críticas e possibilidades de superação desses movimentos.

A análise marxista à Psicologia é um resgate das reflexões marxianas sobre ciência, Filosofia e o capitalismo. O resgate feito diz da utilização do materialismo histórico-dialético na análise da Psicologia Brasileira, considerando as especificidades de sua constituição como Psicologia e brasileira. Por isso, dialogaremos com trabalhos historiográfico-analíticos da tradição marxista que se puseram a resgatar e analisar a concretude do processo de desenvolvimento e constituição da Psicologia e sua particularidade brasileira, como o próprio Martín-Baró.

 

A primeira faceta da miséria: subordinação da Psicologia ao capitalismo

Lacerda Jr. (2010, p. 367), analisando o desenvolvimento da Psicologia, constatou que a força-motriz do seu surgimento foi "a apologética da ordem instituída", mais especificamente a decadência ideológica burguesa, que, ao se tornar classe dominante, não mais se orienta para a compreensão da autoatividade humana, mas para estudar a ação humana, de modo a controlá-la, junto do ser. A Psicologia emana da compartimentalização dos saberes, decorrente da fragmentação abstrata do real; uma materialização no âmbito da ciência da especialização da divisão social do trabalho. Fatia-se a realidade, como se ela assim se produzisse, e o pedaço que cabe à Psicologia é o da subjetividade, da mente, consciência, comportamento, em suma, do indivíduo; não qualquer subjetividade, mente ou comportamento, mas do ser cindido do capitalismo, em que prepondera sua dita essência individualista. Assume-se a crença de que as dimensões subjetiva, mental ou comportamental existem per se, podendo ser apreendidas por uma disciplina particular do conhecimento, ao passo que dizem de um ser separado da sociedade, duas instâncias fragmentadas.

Segundo Dardot e Laval (2016, p. 325), a "economia política teve como fiadora uma Psicologia Científica que descrevia uma economia psíquica homogênea a ela". Os autores citam a Psicofisiologia do século XVIII, antes mesmo da autonomização da Psicologia.1 Existia uma engenharia psicológica e comportamental, passível de ser captada por leis causais, tal como a realidade em si, tomada como externa a esse ser. Assim, orientou-se a compreender o real a partir do estudo e controle desse indivíduo como ser serializado, parcelado - expressando o trabalhador individual no modo de produção capitalista -, com suas dimensões psíquicas e comportamentais também autônomas, passíveis de mensuração e, principalmente, de controle.

Conforme Antunes (2012, p. 51), a "ideologia burguesa tinha no indivíduo o fundamento de uma sociedade baseada na propriedade privada, impondo a necessidade de se compreender o homem nessa perspectiva". Sendo assim, a Psicologia emana como saber e prática, ciência e profissão, produzindo conhecimentos e atuando sobre esse indivíduo - ou melhor, essa concepção individualizada de indivíduo - e sua realidade a partir dos marcos supracitados, em um imperativo do controle. Se, conforme Marx (1844/2010a), ser radical é tomar as coisas pela raiz, e a raiz do ser humano é o próprio ser humano, cabe a nós escrutinarmos que indivíduo é esse do capitalismo - e da Psicologia.

Em Sobre questão judaica, Marx (1844/2010b, p. 40), apontará para a oposição engendrada entre o Estado político, não mais cristão, e a sociedade burguesa, na qual o ser humano se faz. Nisso, "[o]nde o Estado político atingiu sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida concreta; ele leva uma vida celestial e uma vida terrena". Temos a cisão entre o Estado e a sociedade burguesa manifestada na fragmentação do ser entre público (citoyen) e privado (bourgeois), membro da sociedade burguesa. O primeiro diz do representante genérico da comunidade, e o segundo do ser egoísta, separado dos outros seres e comunidade. Apesar da duplicação, tais partes se conjugam na subordinação da política à vida privada, com o citoyen servindo à realização desse indivíduo egoísta da sociedade burguesa. Com isso, temos o ser humano como indivíduo (no sentido individualizante): o ser humano da sociedade burguesa, uma mônada autorrealizável, autocentrada.

Ao analisar o caráter dos direitos humanos (igualdade, liberdade, direito à propriedade privada e segurança), Marx (1844/2010b, p. 50) conclui que eles "deixam transparecer a vida do gênero, a sociedade, antes como uma moldura exterior ao indivíduo", com o único laço a unir os indivíduos, sendo "a necessidade natural, a carência e o interesse privado, a conservação de sua propriedade e de sua pessoa egoísta". Temos um indivíduo apartado do "social", dos outros, cuja união se dá estritamente pelo interesse próprio, pelo egoísmo. Ademais, tais direitos seriam manifestações da emancipação política no plano meramente formal, isto é, que não são concretos e nem representam a emancipação humana, mas, sim, a revolução burguesa e, pois, a sociedade burguesa.

E tal sociabilidade se expressa ideologicamente - e se justifica - também por meio de teorias, campos do conhecimento etc. Yamamoto (1987, p. 28), por exemplo, argumenta que a Psicologia tem, "em sua gênese, a constituição da figura do cidadão, suportada pela ideologia liberal burguesa". Se o cidadão é subordinado ao indivíduo privado, movido por interesses próprios, no fim das contas, a concepção de ser humano da Psicologia nem chega a ser o cidadão (citoyen), mas o indivíduo privado, o egoísta (bourgeois).

Já nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx (1844/2010c, p. 79) atesta que "[a] economia nacional parte do fato dado e acabado da propriedade privada". Esboçando sua crítica da economia política, Marx constata como a economia política transforma o trabalho como ação humana, autoatividade, práxis, responsável pela humanização do ser como ser social, num mero componente e etapa do ciclo capitalista de produção. O que dizer da Psicologia ao ter como ser humano o ser da propriedade privada (o indivíduo privado) que, inclusive, a tem refletida como fundamento, seja possuindo-a ou tendo que vender sua força de trabalho ao não detê-la?

Esse ser individualizado, se torna um ente isolado, cujo sentido se manifesta e efetiva nesse processo produtivo, no seio das determinações econômicas. Nisso, o indivíduo que trabalha, vendendo sua força de trabalho a quem detém os meios de produção - a propriedade privada - acaba por se objetivar na mercadoria que produz, sendo mercantilizado: a efetivação do trabalho é a desefetivação do trabalhador. O ser não se efetiva em si; seu trabalho não se orienta para si, afinal o produto do trabalho é a mercadoria que se volta à autovalorização do capital e à acumulação capitalista. A exteriorização do ser na mercadoria é uma existência externa no objeto que se torna independente, estranho (Marx, 1844/2010c).

O trabalhador, despossuído dos meios de produção, passa a ser despossuído também do fruto do seu trabalho. Temos, então, não só a alienação, como separação, mas um consequente estranhamento com relação ao produto oriundo da atividade humana, da própria atividade, dos outros seres e de sua humanidade (Marx, 1844/2010c). Portanto, temos um ser cindido não apenas entre o indivíduo e o privado, mas alienado e estranhado do que produz, da sua ação, dos outros e de si como ser humano.

Se a Psicologia contrapõe os indivíduos um a um, como apontou Yamamoto (1987), é porque o mundo humano no capitalismo é "um mundo de indivíduos atomizados, que se hostilizam mutuamente" (Marx, 1844/2010b, p. 59). Não por acaso a Psicologia cria ramificações, como as Psicologias Social e Política, para que o óbvio seja dito: o ser humano é social e político; logo, toda Psicologia é social e política. Mesmo isso é insuficiente, havendo a necessidade de, no seio das próprias, surgirem correntes críticas (Lacerda Jr., 2013) denunciando que tal movimento foi retórico ou que o social e o político ainda eram extensões desse indivíduo capitalista, numa dicotomia indivíduo-sociedade. Por exemplo, ao historicizar o desenvolvimento da Psicologia Social, Martín-Baró (1983/2017) destaca as duas principais perguntas que a nortearam: O que mantém as pessoas unidas na ordem social estabelecida? O que integra as pessoas na ordem social? Tais indagações demonstram que o ser social para a Psicologia Social é o indivíduo da sociedade burguesa, com a sociedade exteriorizada a ele e, pior, já dada, cabendo a esse ser se unir nela ou se integrar a ela, tendo a Psicologia como demiurgo; o social como anexo, apêndice e/ou reduzido às interações entre esses indivíduos.

Voltando a Marx (1844/2010c), quanto mais o mundo das coisas se valoriza, mais se desvaloriza o mundo dos seres humanos. Tal processo fetichizado, em que o objeto da ação humana se torna estranho e acaba por se apoderar do seu criador, invertendo a relação sujeito-objeto, é acompanhado por um fetichismo subjetivista, em que subjetividade, mente, psiquê, em tese, passam a controlar o ser. O mesmo vale para as formas como elas são compreendidas, por abstrações idealizadas e práticas decorrentes, num subjetivismo e fetichismo da Psicologia.

Nessa direção, na crítica de Marx a Proudhon podemos extrair mais elementos para a crítica da miséria da Psicologia. Segundo Marx (1847/2017), para Proudhon, são as abstrações, os conceitos, que fazem a história, não o ser humano; o ideal produz o real. Sendo as categorias expressões ideais apartadas desses seres e desse chão do real concreto, uma razão pura, sinônimo de realidade estática, inalterável, os seres são apossados por elas em destinos determinados. E tais destinos correspondem à ordem burguesa naturalizada, pois as categorias que expressam suas relações foram elevadas ao status de universais, assim como o foi o próprio indivíduo privado, não sendo mais produções correspondentes a uma forma social específica. Com a universalização do particular, a saber, esse indivíduo privado, temos a universalização do seu "funcionamento" igualmente privativo, individualizante, cartesiano.

Logo, conforme Marx (1847/2017), para Proudhon, a vida burguesa é a verdade eterna. O ser humano burguês, da ordem burguesa, é eternizado e destituído de sua historicidade. Sendo ele a única base possível de toda a sociedade, não é possível construir outro ser, muito menos outra sociabilidade. Assim, a nosso ver, a crítica marxiana a Proudhon serve à Psicologia, suas categorias (como as de mente, psiquê etc.) e idealismo. Ademais, o ser da Psicologia é o do/no capitalismo, da sociedade burguesa, universalizado à condição de humano; uma dita natureza humana que é, na verdade, a "absolutização de uma situação histórica particular" (Lacerda Jr., 2016). O nascimento do indivíduo no capitalismo (Paiva, Oliveira, & Valença, 2018), gera o indivíduo da Psicologia.

A mudança social se dá, pois, no plano das ideias, das categorias, sem a necessidade de se transformar as condições materiais da vida. Para a transformação do mundo, basta que se mude a forma como este é percebido. Mudando uma categoria, a realidade que é dela espelho ou produto se modifica. Ou mudam-se aspectos dessa realidade, sem alterá-la significativamente, seguindo a máxima gattopardista2 de que se muda quase tudo, menos o essencial.

Nesse sentido, Marx (1847/2017) criticará o dualismo proudhoniano entre a vida prática e as ideias, o espírito e o corpo, em vez de analisá-los como partes de uma totalidade múltipla e contraditória em seu movimento. No caso da Psicologia, especificamente, aliado ao idealismo e dualismo supracitados, tem-se uma dicotomia entre indivíduo e sociedade que é consequência da própria cisão entre o Estado político e sociedade civil (burguesa): por um lado, um ser egoísta (auto)produzido por suas ideias; por outro, um mero produto da sociedade reduzida a meio, estático, numa relação estímulo-resposta. Não por acaso, segundo Parker (2014, p. 43), a Psicologia como ideologia, que expressa, justifica e naturaliza o indivíduo e individualismo capitalistas:

[a] Psicologia, enquanto um conjunto de teorias sobre os seres humanos e as relações sociais [...] captura e reflete as ideias dominantes da sociedade capitalista [...] ela é ideologia cristalizada e, se a examinarmos em profundidade, poderemos aprender mais sobre as pressuposições equivocadas que elaboramos sobre quem somos nós na vida cotidiana.

Por isso, segundo Raquel Guzzo (2015, p. 409), a Psicologia "voltou seus interesses para a 'alma atingida' sem levar em conta o 'corpo sofredor'", as condições objetivas. Tanto que acreditou ser possível mudar o indivíduo abrindo sua cabeça - metafórica e concretamente; que mudando essa mente, seus pensamentos e afins, modifica-se automaticamente a realidade daquele ser; ou que fosse "possível explicar os problemas enfrentados pela humanidade, olhando para o que se passa na cabeça dos indivíduos" (Lacerda Jr., 2010, p. 370). A Psicologia como ciência gestada na/pela ordem burguesa, uma "ciência burguesa" (Yamamoto, 1987), subordinada ao capital, tem essa ordem como sua e, portanto, como verdade, eterna ou natural. O ser evocado por essa sociedade é o ser sob o qual se erige a Psicologia: o indivíduo da ordem burguesa. Qualquer perigo ao funcionamento do ser e da ordem deve ser controlado, ajustado etc.

Nisso, a Psicologia Brasileira como profissão será criticada por sua contribuição à manutenção da ordem, ideário individualista, elitismo e falta de compromisso social. Yamamoto (1987, p. 39), analisando as três áreas germinais da profissão no país (industrial/organizacional, educacional e clínica) constatou que, apesar das especificidades, "os profissionais das três áreas desempenham a mesma função reguladora e adaptativa [...] a diferença reside na esfera na qual exercem tais atividades". Numa panorâmica latino-americana, Martín-Baró (1990/2013) chega a uma constatação semelhante - e ambos destacam algumas contradições que surgem nesse processo, que abordaremos à frente. Todas essas características da profissão são sintomas da miséria da Psicologia como ciência burguesa, mantendo-se, mesmo que dirimidos e modificados diante dos avanços e mudanças em sua trajetória (Lacerda Jr., 2016; Boechat, 2017; Costa & Lordello, 2019). Carecem, então, de críticas, mas que dizem da sociedade que a forja e é conformada por ela. A seguir veremos a outra faceta de miséria, referente à particularidade da formação social brasileira colonizada e dependente.

 

A segunda faceta da miséria: caráter colonizado-dependente da Psicologia Brasileira

Conforme Yamamoto (1987, p. 16/17), "[é] nas sociedades capitalistas europeias do final do século passado que devemos buscar as origens dessa forma de conceber o real [a Psicologia] através do estudo e controle do comportamento individual - e do profissional encarregado dessa tarefa". Se o nascimento da Psicologia, isto é, a sua libertação da Filosofia e autonomização como ciência se deu na segunda metade do século XIX, no contexto particular europeu, o modo de funcionamento e concepções hegemônicas dessa particularidade histórica são universalizados, conformando a Psicologia e se manifestando na forma da Psicologia.

Sendo essa realidade particular distinta da particularidade capitalista brasileira, cuja formação social se dá pela gestação colonial-escravocrata, devemos analisar criticamente não apenas a miséria da Psicologia Brasileira/Latino-Americana como ciência e profissão subordinada ao capitalismo, mas também a sua miséria colonial-dependente. Como afirmou Martín-Baró (1986/2011, p. 184): "a miséria da Psicologia Latino-Americana tem suas raízes em uma história de dependência colonial que não coincide com a história da colônia ibero-americana, mas com a do colonialismo do 'garrote e da cenoura'3 que foi imposto a nós há um século".

Temos, assim, uma dupla faceta de miséria referente à amálgama das misérias capitalista e colonial-dependente, considerando que o desenvolvimento do capitalismo pela acumulação originária na Europa Ocidental - onde nasce a Psicologia - se deu pela invasão e rapinagem colonial no dito novo mundo (Marx, 1867/2013). Por exemplo, Antunes (2012) discorre sobre como as ideias e saberes psicológicos hegemônicos no período colonial e século XIX brasileiros reproduziram ideais eurocêntricos e racistas, contribuindo para a dominação dos povos originários e africanos escravizados, justificando e legitimando a colonização.

Entretanto, para Martín-Baró (1986/2011), tal miséria psicológica diz de um neocolonialismo pelo imperialismo capitalista, a continuidade colonial por outros meios, num marco formal de independência e desenvolvimento capitalista dos países latino-americanos. A perpetuação ideológica dessa neocolonização e sua lógica dita modernizante, cujo desenvolvimento é o desenvolvimento capitalista hegemonizado nos/pelos países "centrais" (pelo subdesenvolvimento da "periferia"), tem na Psicologia um de seus instrumentos. Isso condiz com a participação da Psicologia Brasileira nas suas formas embrionárias nos períodos do Império e, sobretudo, da República, em que, devido ao tardio e denso processo de industrialização e modernização conservadora do país, justificará e substanciará lógicas higienistas, eugênicas, de marginalização e segregação das maiorias populares - em especial não brancos(as) (Antunes, 2012).

A Psicologia, nesse contexto, serve à "dominação e exploração capitalista" (Guzzo, 2015, p. 409) em seu estágio imperialista. Martín-Baró usa os termos dependência colonial, indicando a continuidade da subordinação nas formações capitalistas tardias latino-americanas. Não à toa, ele se fundamentará na Teoria Marxista da Dependência, entendendo tal dependência no sentido de integração subserviente para fora e desintegração barbárica para dentro (Lacerda Jr., 2013); o subdesenvolvimento latino-americano no/pelo desenvolvimento dos países centrais do capitalismo, cuja dialética se expressa na própria Psicologia Latino-Americana e sua relação subordinada com a desses países (sobretudo os EUA). Como causas, Martín-Baró (1986/2011) aponta três processos: mimetismo cientificista, ausência de uma epistemologia adequada e dogmatismo provinciano.

O mimetismo cientificista diz do desenvolvimento tardio e dependência da Psicologia Latino-Americana, pautada no individualismo metodológico da Psicologia Estadunidense, oriundo de métodos e conceitos das ciências naturais. Ocorre uma importação a-histórica de teorias, modelos e suas concepções de mundo e ser humano, aceitando-as e as aplicando acriticamente, em vez de se operar por um realismo crítico que parta da realidade concreta latino-americana, das necessidades de seu povo, das maiorias populares (Martín-Baró, 1986/2011).

Aliado a isso, produz-se uma epistemologia inadequada, que Martín-Baró (1986/2011) resume em cinco princípios: positivismo, individualismo, hedonismo, homeostase e a-historicismo, que juntos geram uma compreensão mistificadora, cujos padrões vêm "de fora", naturalizando nossa realidade desigual e justificando as estruturas de exploração, opressão, dependência e dominação dos povos latino-americanos - usualmente pela inferiorização e culpabilização destes.

Por fim, a condição colonizada-dependente da Psicologia Latino-Americana se manifesta por um dogmatismo provinciano a partir de falsos dilemas, como: Psicologia Científica versus "com alma" (não científica); Psicologia Humanista versus Materialista (desumanizada); e Psicologia Progressista versus Reacionária. Com isso, Martín-Baró (1986/2011) critica o epistemologismo que não toca os chãos do real, obnubilando o debate sobre a realidade latino-americana e suas necessidades, a serem abarcadas teórica e praticamente. Nesse interregno, é relevante o lembrete de Lacerda Jr. (2016, p. 265), que, ao explicitar as contribuições do marxismo à Psicologia, destaca a necessidade da crítica ontológica ao epistemologismo psi: "[a]ntes de passar ao debate sobre os princípios epistemológicos, é preciso analisar ontologicamente o objeto que foi abordado pela ciência psicológica e as condições histórico-sociais que possibilitaram a emergência dessa ciência".

Temos, assim, uma dependência referente ao desenvolvimento capitalista desigual e combinado (desenvolvimento do "centro", subdesenvolvimento da "periferia") expressa na própria dependência da Psicologia Latino-Americana, ao passo que esta contribui para perpetuar essa condição dependente do país e continente: a dialética da dependência na e da Psicologia Latino-Americana. Disso, Martín-Baró (1986/2011) extrai a Psicologia da Libertação como projeto ético-político vinculado a um projeto societário emancipatório, construído em três pilares: novo horizonte, nova epistemologia e nova práxis. Em suma, não mais ser uma cópia da Psicologia Estadunidense (ou europeia) e, em vez de indagar o que une e integra as pessoas à/na ordem, ocupar-se com o que liberta as pessoas da desordem estabelecida (Martín-Baró, 1983/2017).

Ademais, o autor apregoa três principais tarefas à Psicologia da Libertação. A recuperação da memória histórica, superando um presentismo fatalista, consequência da própria compreensão a-histórica do capitalismo. Resgata-se o histórico de luta e potencialidades dos explorados e oprimidos para que a história nutra a libertação. Em segundo lugar, a desideologização da experiência cotidiana, sendo o sujeito histórico de tal desideologização aquele que necessita que a realidade seja desideologizada: novamente, as maiorias populares. Há a premência de construção de um novo senso comum, que não seja mistificador, nautralizador de condições de exploração e opressão, implicando na conscientização como horizonte do que fazer psicológico (Martín-Baró, 1996). E, terceiro, o fortalecimento das virtudes populares, que historicamente possibilitaram a sobrevivência das maiorias latino-americanas, a despeito da venalidade a que foram e são submetidas, constituindo substâncias para sua libertação (Martín-Baró, 1986/2011).

Em outro texto, Martín-Baró (1996) ressalta três pontos que se vinculam aos anteriores: (i) a mudança da identidade do psicólogo, fugindo do modus operandi tradicional que nada ou pouco diz das necessidades dos povos latino-americanos; (ii) assumir a perspectiva das maiorias populares, contrapondo seu histórico de se balizar pelas classes dominantes; e (iii) acompanhar tais maiorias no seu processo de se forjar em uma nova realidade. Nisso, coloca-se a práxis "a serviço da construção de uma sociedade em que o bem estar dos menos não se faça sobre o mal estar dos mais, em que a realização de alguns não requeira a negação dos outros, em que o interesse de poucos não exija a desumanização de todos" (Martín-Baró, 1996, p. 23).

Tudo isso nos rememora do óbvio (que precisa ser dito): apesar de o Brasil - e El Salvador - ser tão capitalista quanto os Estados Unidos, a França, a Alemanha, o capitalismo brasileiro - e o salvadorenho - é bastante distinto do estadunidense, do alemão e do francês (inclusive, porque o desenvolvimento dos últimos se deu às custas do brasileiro e da "periferia" do sistema). Isso vale à Psicologia. Não à toa, a Psicologia Brasileira se constituiu num quefazer colonizado-dependente (Antunes, 2012) ao se desenvolver num país gestado na colonização-escravocrata, e cujo desenvolvimento, em que pesem as constantes lutas e modificações na história, não romperam com sua violência e subordinação.

Não bastando a concepção liberal do indivíduo capitalista (o indivíduo privado), o ser hegemônico de teorias e práticas da Psicologia, é a universalização do particular, que também corresponde ao nosso fazimento colonizado e condição de dependência e os antagonismos de classe, raça, etnia e gênero (Antunes, 2012; Guzzo, 2015; Costa & Lordello, 2019). Dessa forma, a Psicologia, em sua hegemonia, manifesta e corrobora nossas estruturas classistas, racistas e patriarcais e condição dependente. Mesmo no compromisso com as classes dominantes, ainda assim a Psicologia defende o "seu condicionamento, sua colonização" (Oliveira & Paiva, 2016, p. 227). De acordo com Costa e Lordello (2019, p. 41),

Não adianta o olhar para o(a) brasileiro(a) se em minhas abstrações ontológicas e epistemológicas tomo o europeu ou o estadunidense dos séculos XIX, XX e XXI como ideal. Assim, nunca o(a) enxergarei como ser em si; no máximo como um não europeu, não estadunidense, imputando a este inferiorizações e culpabilizações [...] que [...] corroboram e justificam o que a colonização imputou a nós na dinâmica social global e o modo de produção e reprodução capitalista tratou de assentar.

Temos, então, na miséria da Psicologia Brasileira, uma amálgama das misérias capitalista e colonial-dependente; a subordinação ao capital e dependência que remete à nossa constituição colonizada e explicita o desenvolvimento desigual e combinado de nossa sociabilidade. Parafraseando Marx (1844/2010a), a Psicologia como expressão da miséria real e protesto contra ela, sinalizando um ser cindido, alienado e estranhado que busca se fazer humano por meio da Psicologia e não por si próprio: um fetichismo psicológico, indicando sua desumanização.

 

Psicologia, crítica e emancipação: como romper com a miséria da Psicologia Brasileira?

A partir do exposto, a crítica da Psicologia Brasileira deve ser a crítica da Psicologia na sua particularidade enquanto brasileira, que encontra seu gérmen na crítica da sociedade brasileira como formação social particular da sociedade capitalista e sua consolidação no/pelo colonialismo. É, pois, a crítica da crítica. A supressão da miséria de nossa Psicologia é a supressão de uma sociabilidade que a tem como miserável; que expressa sua miséria pela Psicologia, tornando-a miserável e se tornando (ainda mais) miserável.

Dialeticamente, o desenvolvimento dessa sociabilidade desenvolve internamente suas próprias crises e contradições, sinalizando possibilidades de ruptura. Sendo a Psicologia parte desse movimento - o real como síntese de múltiplas determinações -, também terá contradições e fissuras, que desvelam transformações possíveis. Por exemplo, no período colonial, no século XIX e início do XX, emanaram oposições às ideias psicológicas e práxis hegemônicas (Antunes, 2012). A chamada Psicologia Social Crítica no país, a partir da década 1970, num bojo de efervescência política e lutas sociais, sinaliza isso, numa tentativa, em sua pluralidade, de crítica à Psicologia e à sociedade (Lacerda Jr., 2013). Não se trata, pois, de uma Psicologia monolítica e uma história homogênea, mas contraditória, com lutas - como o real em movimento.

Entretanto, tal como a emancipação política constitui para Marx (1844/2010a) a forma definitiva dessa emancipação dentro da ordem, o máximo de emancipação pela Psicologia será o da emancipação dentro da Psicologia; em suma, esta continuará a ser Psicologia, mesmo que uma melhor Psicologia - o que, de forma alguma, é irrelevante. Isso vale para o limite de "emancipação subjetiva" ou "emancipação do indivíduo", enquanto subjetividades e indivíduos que se produzem nessa ordem. Mesmo que mais conscientes, o que é desejável, ainda serão subjetividades alienadas, estranhadas, pois de seres alienados, estranhados, ainda não emancipados humanamente.

É bastante ilustrativo desse caráter limitado inerente à Psicologia que projetos críticos, como os que versaram sobre o compromisso social da Psicologia, a despeito da relevância e inúmeras contribuições "sobre o caráter ideológico e elitista da Psicologia Brasileira, não necessariamente deix[aram] de cumprir [...] determinado papel ideológico" na dominação de classes (Boechat, 2017, p. 59). Alia-se a isso a própria dificuldade que tais movimentos tiveram e têm de se tornarem hegemônicos na Psicologia - o que revela uma tendência de conservação da tradicionalidade psi que é também de uma sociabilidade que a requer de tal forma como conservação de si. Eis um dos sinais do gattopardismo apontado por Yamamoto (2000).

Lacerda Jr. (2013), na análise da Psicologia Crítica no país, destaca três contradições que surgiram no seu próprio seio: (i) redução do compromisso social ao trabalho nas políticas sociais como sinônimo de deselitização da profissão e transformação social; (ii) institucionalização da Psicologia, abrandando a radicalidade da crítica e limitando seu horizonte ao possibilismo; e (iii) o subjetivismo. No caso do compromisso com as políticas sociais, a despeito de serem conquistas e, portanto, avanços no plano da emancipação política, são também mediações do Estado na sua forma capitalista. Logo, apesar da relevância, são limitadas e contraditórias; se o compromisso é com elas ou se reduz a ela, é, no fim das contas, compromisso com a ordem burguesa em seu limite de emancipação política. Segundo Boechat (2017), mesmo os movimentos e ações que emanaram do diálogo com os estratos mais subalternizados da classe trabalhadora, inclusive, reivindicando o marxismo, acabaram funcionais à dominação de classe, de acordo com o estágio de desenvolvimento de nosso capitalismo dependente. Dessa forma, declarado ou não, criticamente ou não, o compromisso social da Psicologia tem sido com essa ordem, seja ela com mais ou menos desigualdade e alienação (e, novamente, isso não é pouca coisa), seja ela mais ou menos crítica - até mesmo pela própria natureza da Psicologia ou por uma questão de autopreservação e sobrevivência.

A Psicologia ciência e profissão, independentemente das vertentes, perspectivas teóricas, produto no/do desenvolvimento capitalista, não apenas trata da subjetividade, do comportamento, do indivíduo no/do capitalismo, mas responde por este ser nos moldes burgueses de produção e reprodução da vida, alçado à condição de universal. O seu limite é o limite da ordem, da emancipação política. Logo, a Psicologia constitui o seu próprio limite emancipatório. Isso não quer dizer que toda Psicologia seja igual, que ela não possa contribuir para a melhora das pessoas, minorar o sofrimento etc. e, inclusive, almejar atentar contra a ordem, como fizeram e fazem importantes psicólogos(as) de nossa tradição crítica. Ela não só pode como deve - e isso é um avanço necessário, tanto quanto a emancipação política. Contudo, a Psicologia esbarra nos próprios limites da ordem e de si própria, mesmo que seja crítica ou contra-hegemônica.

Como disciplina privilegiada de uma dimensão privilegiada do indivíduo no capitalismo, a Psicologia contribui para a universalização do indivíduo burguês. Acontece que tal efetivação não é a realização concreta propriamente dita, pois, nesse caso, a aparência não representa a essência (o ser como ser social; a universalidade humana), mas, ao contrário, a mistificação dessa essência na sua aparência fenomênica. Isso não quer dizer que o ser não sofra as consequências concretas desse movimento, afinal sua produção objetivo-subjetiva se dá no seio de relações produtivas que necessitam de tal alienação e estranhamento na forma de uma genérica humanidade desumanizada. Ademais, como vimos em sua segunda faceta de miséria, o humano universal da/na Psicologia não é apenas o indivíduo da sociedade burguesa, mas o europeu/estadunidense, branco, da classe dominante etc., remetendo à dinâmica capitalista e, em nossa particularidade, a um capitalismo dependente de gênese colonial escravocrata, estruturado no/pelo antagonismo de classes, racismo e patriarcado.

A emancipação humana implica em emancipação subjetiva e individual, que só é possível com emancipação objetiva e de todos(as); ela é esse todo. Sendo produto e produtora de um ser humano emancipado, faz-se necessária a produção de formas inteiramente novas de compreensão desse ser objetiva-subjetivamente. Nesse sentido, a emancipação humana significa a emancipação do humano da Psicologia como ciência e profissão burguesa, oriunda da transformação substancial da ordem que a tem como manifestação (e que é conformada por ela). Ciência e profissão burguesa não apenas por nascer no seio do capitalismo, mas porque diz do ser humano reificado do capitalismo e sua subjetividade reificada, corroborando uma mistificação sobre o que somos, nossa realidade e, portanto, a sociabilidade mistificada e mistificadora.

Com isso, não é nossa intenção coadunar com posturas irracionalistas e anticientíficas. Marx mesmo evidencia a importância da ciência, na medida em que aparência e essência não é a mesma coisa. Todavia, para ele, a ciência é a ciência da totalidade e, como produção humana, deve se voltar às necessidades humanas, das maiorias populares - como Martín-Baró. Assim, uma primeira sinalização à Psicologia é ir além das suas fronteiras e das compartimentalizações das ciências - até porque a realidade não se produz fragmentadamente -, dialogando com outros campos do saber-fazer, em prol de uma análise - e práxis - totalizante (totalizante, aliás, por apreender singularidades dos indivíduos mediadas pelas particularidades históricas que cimentam a vida social no todo).

O materialismo histórico-dialético, como método de apreensão do movimento do real e suas múltiplas determinações, não se contenta "apenas" em produzir conhecimento sobre a realidade, mas quer a sua transformação. A ciência nos moldes burgueses propicia inúmeros avanços, cujo acúmulo deve ser incorporado na transformação social. Esse movimento, de suprassunção (Aufheben), está presente no próprio processo de emancipação humana, que parte do progresso da emancipação política, incorporando-o, e ao mesmo tempo negando-o, para superá-lo.

Nessa direção, psicólogos(as) inspirados(as) pelo marxismo ensejaram realizar com a Psicologia o que Marx fez com a crítica da economia política (Lacerda Jr., 2010). O próprio Martín-Baró (1973) se questionou se era possível efetuar uma inversão análoga à realizada por Marx. Contudo, o que Marx produziu foi a crítica da economia política. Era a negação da economia política clássica, liberal, ao mesmo tempo em que partia dela e mantinha alguns de seus elementos, mas modificados num novo método e teoria. Sendo assim, desenvolver uma crítica à Psicologia, nos moldes marxianos, implicaria também em suprassumi-la, forjar algo novo, mesmo que a superação se dê pela incorporação de elementos da Psicologia tal como a conhecemos.

Dessa forma, "[a] questão central para uma crítica à sociedade vigente não reside no desenvolvimento de uma 'Psicologia Crítica', mas sim no resgate da crítica da economia política, tal como ela foi proposta por Marx" (Lacerda Jr., 2010, p. 366). Pensar o contrário é incorrer numa romantização da capacidade da Psicologia como disciplina particular do conhecimento. Tal idealização é recorrente na prática, em messianismos sobre o trabalho psi, supostamente capaz de transformar a realidade, que, por sua vez, se defronta com uma prática de potencial limitado, acarretando super-responsabilizações, por um lado, e imobilismos, por outro. Uma Psicologia crítica deve se fundar numa análise radical e crítica do capitalismo, cuja miséria se expressa na/pela Psicologia, constituindo-se no seu próprio limite de transformação. Por conseguinte, conclui-se sobre a "impossibilidade de 'salvar' a Psicologia" (Yamamoto, 1987, p. 76).

Do mesmo modo, procurar construir uma Psicologia Marxista é desconsiderar o que é a Psicologia e o que é o marxismo. Se o marxismo é ciência da totalidade e crítica radical da sociabilidade capitalista, ele é crítico da Psicologia, como ciência particular e burguesa (além de profissão). Em consonância com Paiva, Oliveira e Valença (2018), o marxismo não é adjetivo e não cabe nos limites da práxis psicológica.

Nesse interregno, pode surgir uma (falsa) querela entre a reforma da Psicologia ou a sua negação, afinal, como demonstrado, sua revolução é por nós almejada. Yamamoto (1987, p. 80) indaga por que não "dar o passo derradeiro no sentido não de refazer, mas de, enquanto questão política, negar a Psicologia?". Entretanto, pensar no fim da Psicologia e a finitude de sua miséria, como expressões da própria supressão da sociabilidade que lhe conforma e é conformada por ela, é pensar no como, sem que isso signifique uma desconsideração a priori da Psicologia, incorrendo em imobilismos ou uma espera eterna pela sua autotransformação. O debate, portanto, se torna tático (meio) porquanto se preserva a estratégia (fim). A supressão da Psicologia como horizonte não exclui a necessidade de sua reforma; pelo contrário, sua melhoria (reforma) é um avanço e uma necessidade de mediação, tal como a emancipação política serve à emancipação humana. Nisso, corroboramos as sinalizações de Martín-Baró (1986/2011) sobre a premência de novos horizontes, epistemologias (assentadas numa crítica ontológica) e práxis, e as três tarefas urgentes para uma transformação da Psicologia por dentro da ordem e por dentro da própria Psicologia que, se não é capaz de transformar radicalmente a ordem nem a Psicologia, é importante para que isso ocorra.

Constatar a impossibilidade de uma Psicologia Marxista, não significa negar contribuições do marxismo à Psicologia. E o diálogo com o marxismo aqui defendido também não significa defender a supressão da pluralidade da Psicologia. Concordando com Yamamoto (2012), defendemos a construção de um projeto ético-político na Psicologia a disputar a hegemonia psi com outros projetos. Nisso, inclusive, podem existir similitudes, aproximações táticas e estratégicas que produzam uma síntese dialética, a despeito das divergências analíticas e propositivas. Em suma, reforçamos a necessidade de um projeto ético-político nos moldes baronianos de sua Psicologia da Libertação, que, se não capaz de suplantar a miséria psi, tenha consciência de sua existência e tensione ao máximo suas contradições internas. Um projeto ético-político

crítico e progressista, que possa, de uma parte, dar suporte às decisões ético-profissionais de ordem individual do psicólogo, considerados os marcos já aludidos, e, para além da sua (indispensável) ação política como cidadão, ser coparticipante de um projeto ético-político que se articule com projetos societários mais amplos. E, nesse caso, evidentemente, estamos nos referindo a projetos societários que apontem a transformação estrutural da sociedade capitalista - e não a sua manutenção. (Yamamoto, 2012, p. 15).

Baseados no realismo crítico baroniano, como movimento da e para a realidade, indicamos a premência de nos orientarmos às necessidades das maiorias populares, tomando-as como ponto de partida e a sua mudança como ponto de chegada, gerando novas necessidades que fundamentarão a trilha da Psicologia; isto é, as necessidades das maiorias populares como necessidades da Psicologia. A produção, pois, de uma Psicologia Brasileira não apenas por se fazer no Brasil, mas que se debruce nas particularidades de sua formação social e singularidades de suas gentes; que tome as maiorias populares não como meros objetos, mas como sujeitos (de si, da própria realidade e da Psicologia), debruçando-se e aprendendo com sua história. Uma Psicologia desde abajo, do Brasil e, resguardadas as particularidades dos países, desde Nuestra América. Uma Psicologia menos Psicologia (tal como se constituiu) que, enquanto campo de saber-fazer, se fez instrumento de conformação de nosso capitalismo dependente e (ainda mais) miserável.

Cabe ao sujeito histórico preso aos grilhões objetivos-subjetivos - a classe trabalhadora - forjar a sua própria libertação, por meio de sua práxis revolucionária. O(a) psicólogo(a) como classe trabalhadora pode contribuir para essa empreitada, desde que se reconheça como classe trabalhadora. Desenvolvendo uma consciência de classe para si (Marx, 1847/2017), pode contribuir por meio de uma práxis que se norteie pela/para conscientização dessas maiorias populares. Contudo, deve reconhecer suas limitações e contradições, entendendo que tal transformação não virá pela Psicologia, nem da sua atuação individual como trabalhador explorado, alienado e estranhado. Do mesmo modo, coloca-se a necessidade de o(a) psicólogo(a), tendo a emancipação humana e a supressão da miséria da Psicologia no seu horizonte, desenvolver uma militância anticapitalista em outros âmbitos de sua vida e forjar lutas coletivas (Lacerda Jr., 2013).

Conforme Martín-Baró (1990/2013, p. 568), "[a] Psicologia não jogará qualquer papel decisivo na resolução dos grandes problemas que atingem os povos latino-americanos [...] os dilemas latino-americanos são, fundamentalmente, de natureza econômica e política e dependem de forças objetivas que ficam muito além do alcance do psicólogo". Contudo, mesmo que pequena, diante do desafio societário posto, a contribuição da Psicologia Brasileira não é insignificante - pode ser parca no que se refere à totalidade social, mas referente à Psicologia Brasileira como totalidade diz do que ela é (e tem sido), do que não é (e não tem sido) e, nisso, do que pode (e deve) ser.

Por fim, para que ela possa contribuir para esse processo de transformação substantiva, sinônimo de emancipação humana e libertação, a Psicologia deve libertar-se de si mesma (Martín-Baró, 1986/2011). Portanto, a superação da miséria colonial-dependente e capitalista da Psicologia Brasileira é a superação da Psicologia, mas desta como expressão miserável de uma sociabilidade que a produz e dela carece para ser ainda mais miserável.

 

Considerações finais

Analisamos a miséria da Psicologia Brasileira a partir do materialismo histórico-dialético, destacando sua dupla faceta capitalista e colonial-dependente. A consolidação e o desenvolvimento da Psicologia se deram pela sua subordinação ao capital e ordem capitalista. Para a Psicologia Brasileira, imersa à formação social colonizada e dependente, plasmou-se a isso o compromisso com aportes descontextualizados, reproduzindo realidades e necessidades que não são nossas.

Como caminhos possíveis, apontamos a necessidade de a Psicologia ir além de si mesma como ciência particular e profissão, extraindo contribuições de outros campos do saber-fazer e, sobretudo, tomando como suas as necessidades das maiorias populares no seu processo de se (re)produzirem. A libertação desse conjunto dos(as) explorados(as) e oprimidos(as) da miséria da Psicologia diz da capacidade de romperem com suas condições exploratórias-opressivas. A isso, uma Psicologia da Libertação, como logrou Martín-Baró, deve se orientar.

 

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Recebido em: 29/11/2020
Aceito em: 4/5/2021

 

 

1 Tradicionalmente, o "nascimento" da Psicologia é datado de 1879, com a inauguração do laboratório de Psicologia Experimental, em Leipzig por Wilhelm Wundt. Em nossa análise, interessa o contexto histórico de sua autonomização, a saber, a passagem do capitalismo concorrencial para o monopolista na Europa Ocidental, cujo desenvolvimento se assentou, inclusive, na colonização das Américas, África e Ásia.
2 Referência a Il Gattopardo, de Giuseppe di Lampedusa. Durante o processo de unificação italiana, em meados do século XIX, o príncipe Don Fabrizio, da Sicília, ameaçado pela ascensão burguesa e decadência da aristocracia, conclui que algo deve mudar para que nada mude. Yamamoto (2000, p. 227), na análise do "processo de mudança" da Psicologia Brasileira durante a segunda metade do século XX, constatará sobre seu gattopardismo: "a Psicologia muda em aspectos secundários, mantendo intacto o núcleo central".
3 Garrote y la zanahoria, uma expressão utilizada para ilustrar o imperialismo estadunidense, que se apresenta como ajuda humanitária (cenoura), mas com o intuito de dominação (garrote).

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