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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X
Mental v.4 n.7 Barbacena nov. 2006
ARTIGOS
Psicologia social no Brasil: considerações epistemológicas e políticas a respeito de um campo fragmentado
Social Psychology in Brazil: political and epistemological reflections on a fragmented domain
Raul Albino Pacheco Filho*
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - Brasil
RESUMO
Os campos de conhecimento que compõem o território daquilo que na modernidade ficou conhecido como "Ciência" desenvolveram-se, historicamente, associados à expansão do capitalismo. E, como não poderia deixar de ser, sempre abrigaram, em seu interior, as marcas das contradições inerentes a essa forma de estruturação das relações sociais. No caso particular da Psicologia Social - um campo fragmentado, no qual diferentes teorias e abordagens concorrem pelo direito e pelo prestígio de falar em nome da Ciência, avanços e retrocessos, conhecimento legítimo e ideologia compõem o quadro do enfrentamento entre os membros do campo.
Na presente exposição, pretende-se considerar as articulações entre o campo científico e o campo social, com o objetivo de refletir a respeito das relações entre as transformações da realidade brasileira e a produção de conhecimento em Psicologia Social. Parte-se do pressuposto de que as questões teóricas e metodológicas não se esgotam no âmbito interno de cada uma das abordagens e nem mesmo no plano mais geral da Epistemologia, exigindo, para seu esclarecimento, a análise de elementos de ordem ética, política e social. Analisam-se aspectos específicos relevantes da produção de conhecimento em Psicologia Social, como a fragmentação do campo, a questão da interdisciplinaridade, do dogmatismo, do holismo, do fracionamento do objeto de estudo, da autonomia ou dependência dos campos de conhecimento, das relações entre teoria e prática e dos compromissos entre as teorias e os diferentes grupos que compõem o campo da sociedade.
Palavras-chave: Psicologia Social, Ciência, Epistemologia, Sociologia da ciência, Realidade brasileira.
ABSTRACT
The fields of knowledge that constitute the territory of Science - as conceived in modernity - historically have had there development associated to the expansion of capitalism. As expected, these fields always contain the marks of contradictions inherent to the structure of this form of social relationships. Specifically in Social Psychology - a fragmented field where multiple theories and approaches compete for the right to speak in the name of Science - advances and retrogressions, legitimate knowledge, and ideology make up the stage for the confrontation of its members. This article discusses the articulations between the scientific and the social fields, considering the relationships between transformations of the Brazilian reality and the production of knowledge in Social Psychology. It is assumed that theoretical and methodological issues extrapolate both, the inner territory of individual approaches and the wider domain of Epistemology, requiring ethical, political, and social element analysis, if they are to be clarified. Specific relevant features of the production of knowledge in Social Psychology are analyzed, including field fragmentation and issues connected to interdisciplinarity, dogmatism, holism, fractioning of the object of study, autonomy or dependency of fields of knowledge, theory/practice relationships, and commitments among different theories and the different groups that constitute the field of society.
Keywords: Social psychology, Science, Epistemology, Sociology of science, Brazilian reality.
Psicologia Social no Brasil: considerações epistemológicas e políticas a respeito de um campo fragmentado
Ciência, sociedade e capitalismo
Já explicitei, em textos anteriores (PACHECO FILHO, 2000, p. 15-42), a íntima imbricação entre o avanço do capitalismo e a aceleração do desenvolvimento dessa forma de conhecimento que denominamos Ciência. Ainda que não se possa excluir a existência de um processo científico de conhecimento em períodos anteriores, parece fora de questão o notável incremento recebido por esse conhecimento a partir dos séculos XV, XVI e XVII na Europa. Incremento, esse, que torna justificado o emprego do termo "revolução científica" (ROSSI, 1992) que, historicamente, mostra-se associado à consolidação do poder da burguesia, à sua aliança com as grandes monarquias, à intensificação da vida urbana, ao declínio das estruturas feudais, à intervenção dos estados nas economias e ao desenvolvimento das grandes navegações e do comércio internacional.
O desenvolvimento científico gerou a tecnologia que impulsionou o desenvolvimento capitalista e, em contrapartida, angariou a aprovação e recebeu os subsídios que ajudaram a promovê-la. Não acredito que se possa tomar como coincidência o fato de que tenha surgido na Inglaterra, uma das nações onde o capitalismo mais rapidamente se desenvolveu, uma das primeiras menções explícitas à atividade científica como o produto do trabalho de uma comunidade que demandava grandes investimentos econômicos. Refiro-me a Francis Bacon (1561-1626), o apologista inglês da ciência moderna. E, como não poderia deixar de ocorrer, a evolução da Ciência vai revelar as marcas contraditórias dessa associação com o capitalismo, principalmente no que se relaciona ao percurso das Ciências Humanas.
O fato é que, sendo segmentos da sociedade, não seria mesmo razoável esperar que as comunidades científicas estivessem inteiramente imunes às influências derivadas do campo social em que se inserem. O mais provável é que, usualmente, elas se encontrem em algum ponto do contínuo definido por estes dois pólos: a isenção absoluta em relação às demandas de grupos sociais específicos e o completo engajamento em demandas, valores e princípios de setores específicos da sociedade. Isso deve nos lembrar que as teorias e abordagens científicas - com acento especial para as Ciências Humanas - sempre incluem valores, concepções éticas e compromissos filosóficos e metafísicos amalgamados ao que, idealmente, seria o conteúdo propriamente científico de suas proposições. Se acrescentarmos a essas considerações a constatação de que o conflito entre classes sociais é inerente à dinâmica do processo histórico de desenvolvimento do capitalismo, chegaremos necessariamente à conclusão de que as diferentes teorias e abordagens científicas podem incluir, no interior dos debates científicos, aspectos associados aos conflitos entre as classes sociais. Essa correlação não será provavelmente igual a um (1,0) nem a zero, mas sim a um valor intermediário qualquer.
É verdade que essa associação entre as posições no campo científico e social não se mostra a mesma nas diversas disciplinas científicas, em cada momento histórico particular. Foi-se o tempo, por exemplo, em que as diferentes teorias da Física opunham os seus adeptos também no campo social. As controvérsias entre os físicos ou entre os astrônomos já não correm o risco de terminar nos tribunais, calabouços ou fogueiras da Inquisição, como nos tempos de Galileu Galilei, Tommaso Campanella e Giordano Bruno. Mas, há bem pouco tempo, no período das ditaduras militares no continente sul-americano, pesquisadores e professores de orientação marxista sofreram dura perseguição política.
As Ciências Naturais atuais, em nada atrapalham, usualmente, a dinâmica das relações sociais capitalistas. Pelo contrário, seu conhecimento gera a tecnologia que possibilita o próprio progresso do capitalismo: foi assim desde o início. Eliminados da cena histórica os defensores da ordem feudal, as disciplinas das Ciências da Natureza perderam seus adversários mais fortes no campo social. O mesmo não pode ser dito, por outro lado, dos adversários de genuínas ciências humanas. Interessados no véu ideológico que cobre alguns aspectos fundamentais das relações sociais capitalistas - a exploração e o conflito entre as classes, a alienação dos trabalhadores, a reificação do ser humano, a apropriação da mais-valia, o fetichismo da mercadoria, a falsa predominância da Razão, da intencionalidade e da consciência na escolha e direção das ações dos sujeitos e dos grupos sociais, para citar apenas os mais importantes - os beneficiários e defensores do capitalismo nada têm a lucrar com o desenvolvimento das legítimas ciências humanas. Sancionam apenas as construções ideológicas que os auxiliem a veicular os valores e a cosmovisão que lhes interessa.
Não é sem motivo, portanto, que a concepção positivista de desenvolvimento científico atenda melhor aos seus interesses. Nessa visão ideológica de um desenvolvimento linearmente progressivo do conhecimento científico, que atribui as dificuldades das Ciências Humanas exclusivamente à complexidade do seu objeto1, permanece oculta a participação de entraves sociais ao desenvolvimento dessas disciplinas científicas. Entraves, estes, que se originam do desinteresse "interessado" do capitalismo pela elucidação da sua lógica, pelo esclarecimento dos processos a ele subjacentes e pela compreensão do sujeito que ele constitui e fomenta. Pensar na possibilidade de desenvolvimento das disciplinas das Ciências Humanas e, entre elas, da Psicologia e da Psicanálise, é algo que deve ser feito a partir da consideração desses obstáculos, sem o que toda reflexão torna-se incauta e corre o risco de pecar pelo excesso de otimismo.
Premidas pelos obstáculos que são interpostos em seu caminho e invadidas maciçamente por valores e concepções exógenos, que constituem a marca do arbitrário social que se insere no interior das suas fronteiras, as disciplinas das Ciências Humanas mostram que se ressentem do abalo sofrido e põem à mostra a fragmentação de seus domínios. Nelas, ainda não aconteceu a superação daquilo que Thomas Kuhn, em "A estrutura das revoluções científicas" (KUHN, 1962), denomina "período pré-paradigmático". A interação e o confronto entre os grupos que disputam no campo com suas distintas teorias ainda se limita a grandes e genéricas discussões de temas epistemológicos amplos, defendendo a precedência global da abordagem escolhida. Debates mais pormenorizados entre as diferentes teorias a respeito de proposições teóricas focadas sobre aspectos específicos do objeto de investigação não se viabilizam, devido àquilo que Kuhn chamou de "incomensurabilidade entre os paradigmas".
As diferenças nos próprios postulados e pressupostos fundamentais relativos ao objeto de estudo e aos métodos de produção e avaliação do conhecimento são tão radicais que tornam impossível o diálogo sobre divergências existentes. Cada cientista em Ciências Humanas vê-se forçado, conseqüentemente, "[...] a dedicar uma parcela dos seus esforços à discussão dos fundamentos do seu campo de estudo, revisando, a cada momento, os princípios filosóficos, metodológicos e epistemológicos subjacentes à sua posição teórica" (PACHECO FILHO, 2000, p. 244). Note-se, aliás, que é exatamente isso que estamos fazendo aqui! Ainda que imprescindível no momento histórico da nossa disciplina, é preciso constatar que esse intenso debate sobre os fundamentos desvia boa parcela de nossa energia que, de outra forma, seria dedicada à pesquisa mais precisa, esotérica e extenuante do objeto de estudo, orientada pelas diretrizes do nosso referencial teórico: aquilo que é essencial para o progresso e o desenvolvimento da área.
O último ponto que gostaria de abordar neste tópico sobre as relações entre Ciência e sociedade diz respeito à existência de uma opinião desfavorável a respeito das possibilidades de desenvolvimento das Ciências Humanas em relação às Ciências Naturais. Refiro-me a uma concepção disseminada com maior ou menor grau de explicitação, por diferentes autores, sobre a inutilidade de se esperar uma direção unívoca de progresso nas disciplinas da primeira: uma direção pautada na criação de pólos teóricos capazes de congregar o trabalho coletivo da comunidade científica e de gerar uma convergência em sua produção. Segundo essa posição, a fragmentação das Ciências Humanas não seria um estado histórico particular do seu desenvolvimento, mas um aspecto intrínseco à sua própria essência. E o debate epistemológico que buscaria alternativas de solução para essa condição fragmentária alimentar-se-ia de um vão inconformismo em relação a uma realidade intransponível.
Deveríamos, ainda de acordo com essa análise, conformarmo-nos com essa profusão de teorias diferentes e contraditórias em Ciências Humanas, pois esses distintos pontos de vista alternativos sobre cada assunto seriam a única contribuição que delas se poderia esperar. Não poderíamos almejar nada parecido ao desenvolvimento das Ciências Naturais, capaz de apontar em direções unívocas e não contraditórias a respeito dos fenômenos. Seriam apenas essas que poderiam oferecer visões teóricas integradas e unificadas dos seus objetos, em cada corte histórico transversal, ainda que nunca inteiramente terminadas e sempre potencialmente abertas à possibilidade de mudanças revolucionárias em suas concepções.
Discordo dessa posição, pois, ao atribuir a fragmentação das Ciências Humanas a uma condição intrínseca e a-histórica, ela desestimula o debate sobre os obstáculos que o capitalismo opõe a elas. Como será visto pelas análises que se seguem, discordo dessa defesa de guetos intransponíveis e dessa crença sobre a inutilidade do debate e da disputa teórica em Ciências Humanas.
Os paradigmas e a concorrência no campo da Ciência
Uma das mais debatidas conceituações a respeito do desenvolvimento das disciplinas científicas foi oferecida por Thomas Kuhn no livro já mencionado anteriormente. Adversário figadal de uma concepção continuísta de progresso científico - um "estrepitoso 'zambombazo'" na tradição epistemológica do Positivismo, para empregar os termos de Muguerza (1975) - Kuhn oferece uma versão histórica e epistemológica bastante distinta dos acontecimentos nos domínios da Ciência.
A concepção de Kuhn dos acontecimentos nos domínios da Ciência supõe uma sucessão do que ele denomina períodos de "ciência normal", entrecortados por períodos de crise e pesquisa extraordinária; esses propiciariam a emergência de novos paradigmas, que ocasionariam as revoluções científicas. As revoluções científicas consistiriam nesses episódios extraordinários, em que investigadores extraordinários conduziriam a comunidade da disciplina a um novo conjunto de compromissos de investigação que subverteriam a tradição de pesquisa da área ditada pelo paradigma anteriormente vigente.
[...] No estágio inicial das disciplinas científicas, chamado por Kuhn de período pré-paradigmático, diferentes escolas e/ou abordagens competiriam umas com as outras pela precedência na investigação do universo em estudo. Cada uma delas estaria intimamente associada a uma concepção desse universo e do que constituiria uma prática científica legítima para a sua investigação, as quais tentaria impor como dominantes na área.
O triunfo de uma das escolas pré-paradigmáticas sobre as demais demarcaria um momento importante de uma disciplina, na medida em que liberaria os cientistas do campo desses conflitos com as demais abordagens. [...] Seria a partir daí, portanto, e até a ocasião da próxima revolução, que se observaria com maior nitidez e consistência o tipo de atividade que mais propriamente caracterizaria a pesquisa da ciência normal. (PACHECO FILHO, 2000, p. 244).
Não pretendo fixar-me no ponto de vista kuhniano de uma alternância, até certo ponto radical, entre períodos de "ciência normal" e períodos de "crise e revolução científica", pois não me é necessário adotar essa perspectiva para apoiar as considerações que apresentarei a seguir. Alguns autores como Pierre Bourdieu acreditam que, em sua crítica ao modelo positivista, Kuhn univerzalize um estado particular do campo científico, correspondente à revolução inaugural que instaura o método científico e a sua censura no campo de uma ciência.
Enquanto o método científico e a censura e/ou a assistência que ele impõe ou propõe não estejam objetivados em mecanismos e em disposições, as rupturas científicas tomam necessariamente a forma de revoluções contra a instituição, e as revoluções contra a ordem científica estabelecida permanecem inseparáveis das revoluções contra a ordem estabelecida. Quando, ao contrário, graças a essas revoluções originárias, se encontra excluído qualquer recurso a armas ou poderes, ainda que puramente simbólicos, diferentes dos que são comuns ao campo, o próprio funcionamento deste passa a definir cada vez mais completamente não apenas a ordem ordinária da ciência normal, mas também as rupturas extraordinárias, essas revoluções ordenadas, como diz Bachelard, que estão inscritas na lógica da história da ciência, isto é, da polêmica científica (BOURDIEU, 1976, p. 142).
Na perspectiva de Bourdieu, uma vez instituído o método científico no campo, no caso de uma disciplina cientificamente madura, esse tornar-se-ia "o lugar de uma revolução permanente, mas cada vez mais desprovida de efeitos políticos" (Ibid, p. 143). As revoluções contra a ciência instituída seriam realizadas a partir de "armas" cada vez mais legitimadas pelas condições internas instituídas no próprio campo científico.
O aspecto da concepção kuhniana que me interessa adotar - e que, acredito, boa parte dos seus críticos não positivistas não hesitaria em confirmar - refere-se à importância do que ele chama "paradigma", na organização e direcionamento das atividades dos membros do campo de uma disciplina científica. Um paradigma incluiria lei, teoria, métodos e técnicas de pesquisa e a definição das entidades fundamentais que compõem o universo de estudo da disciplina, além das questões sobre essas entidades, que podem constituir problemas adequados à investigação científica. Kuhn questiona um empirismo radical que propõe que a atividade de coleta e a sistematização de dados empíricos sobre os fenômenos pudessem prescindir de um paradigma, sendo capaz de organizar, por si só, a atividade científica do campo.
Partir desse pressuposto da função diretriz que o paradigma exerce sobre a atividade científica implica o reconhecimento de que os adeptos das várias abordagens teóricas situam-se como concorrentes no campo de uma disciplina científica. As diferenças derivadas das orientações de seus paradigmas respondem por uma parcela importante das divergências entre eles. Porém, levando-se a sério a caracterização da competição em Ciência apresentada por Pierre Bourdieu, em "O campo científico" (1976), teríamos que considerar como ingênua a suposição de que as atividades científicas se orientariam exclusivamente pelo interesse genuíno na investigação científica do seu objeto.
Inseparavelmente ligada aos interesses intrinsecamente científicos, voltados ao progresso do conhecimento do seu campo, sempre encontraríamos, também, a busca de captação de autoridade científica, indissociavelmente apoiada em duas bases distintas: a capacidade técnica e científica, de um lado, e o poder social, de outro. Mesmo sem apontarmos na direção pessimista da impossibilidade de uma atividade científica legitimamente voltada para a evolução do conhecimento, deveríamos mantermo-nos alertas para o fato de que a trajetória da Ciência é consideravelmente complexa e contraditória. E envolve curiosidade autêntica pelo objeto, mas também compromissos de outra ordem.
É absolutamente falsa a imagem do cientista inteiro e exclusivamente imerso no campo científico, indiferente às demandas e valores da sociedade mais ampla. O prestígio e a autoridade científica são uma das "moedas" que circulam no campo da sociedade capitalista e, como regra, o cientista não se mostra insensível a ela. Conseqüentemente, os conflitos epistemológicos em Ciência seriam também "sempre, inseparavelmente, conflitos políticos" (Ibid, p. 124) e, por que não dizê-lo, também conflitos de ordem política e econômica.
Uma análise que tentasse isolar uma dimensão puramente "política" nos conflitos pela dominação do campo científico seria tão falsa quanto o parti pris inverso, mais freqüente, de somente considerar as determinações "puras" e puramente intelectuais dos conflitos científicos (Id).
É por esse motivo que considerações fundadas somente no âmbito da Epistemologia ou da História da Ciência ofereceriam uma concepção apenas parcial da atividade científica. Uma Sociologia da Ciência e uma Ciência Política da Ciência devem ser sempre convocadas a oferecer suas contribuições. E, agora, queria advogar a favor da idéia de que também uma Psicologia da Ciência e uma Psicanálise da Ciência constituam instrumentos imprescindíveis para se construir um quadro mais completo. Refiro-me ao fato de que em campo fragmentados em subgrupos, como é o caso das disciplinas das Ciências Humanas, as condições psíquicas que respondem pelos processos de formação de grupos e de competição e rivalidade entre eles não podem ser, de modo algum, negligenciadas. Entre os temas relevantes, deveriam ser incluídos: valores e representações grupais, influências cognitivas e emocionais no interior dos grupos; leis, normas, pressão e conformidade social; formação de atitudes; estereótipo e preconceitos; processos identificatórios de inclusão e exclusão e formação de vínculos sociais.
Evidentemente, seria a abordagem teórica de cada um de nós que definiria o modo particular pelo qual conceptualizaríamos os aspectos psíquicos subjacentes às atividades do cientista. Mas não resisto ao impulso de levar algumas questões que a Psicanálise colocaria em relevo. E a primeira delas seria o pressuposto de que falar em determinações subjetivas não implicaria uma oposição radical entre indivíduo e sociedade, uma vez que a constituição do sujeito, do ponto de vista psicanalítico, não se faria independentemente da construção do vínculo social. É exatamente pelo acesso ao símbolo e pela articulação à cultura e à sociedade que se inaugura o que podemos designar subjetividade humana. Porta-vozes dos símbolos da cultura e das práticas e leis da sociedade, os pais - aqueles que na sociedade capitalista usualmente encarregam-se de introduzir a criança no mundo social - operam as interdições e cobram os sacrifícios que estabelecem os primeiros vínculos sociais. Vínculos esses que se complexificarão e se multiplicarão ao longo da vida do sujeito, construindo a intrincada trama de sua ligação ao tecido social.
Na maior parte das vezes irracionais e inconscientes, as identificações constituem os elementos fundamentais dos laços sociais, segundo o conhecido modelo apresentado por Freud em "Psicologia e a análise do eu" (FREUD, 1920). Elas atam os diferentes membros dos grupos a ideais e valores, como modo de estabelecimento das ligações entre os sujeitos. Por mais que elementos conscientes possam também estar presentes na consolidação dessas ligações, aspectos irracionais e inconscientes nunca estão completamente afastados. Como disse em outro lugar:
Os indivíduos pertencentes ao corpo social identificam-se uns aos outros como iguais ou irmãos e, ao mesmo tempo, diferenciam-se dos que não pertencem ao grupo. Esses últimos são estranhos ou estrangeiros e, conseqüentemente, tratados de acordo com essa condição. Podem inspirar temor, reverência, hostilidade, ou curiosidade. Em todos os casos, contudo, recebem a marca da diferença: a palavra que se lhes atribui é o eles, diferentemente do nós que atribuímos àqueles com quem nos identificamos (PACHECO FILHO, p. 258-259).
E não se pense que é a magnitude das diferenças entre os grupos que responde pelo grau de agressividade entre eles. Ao analisar o que chamou de "narcisismo das pequenas diferenças", Freud (1930) salientou como é exatamente o oposto - a semelhança e a proximidade - que pode ser responsável pelas maiores hostilidades. Transportada para o âmbito das divergências e dos conflitos teóricos, podemos imaginar implicações curiosas para essa proposição.
Aí estão, ainda que de modo simplificado e rudimentar, algumas considerações para o terceiro fator a ser incluído na compreensão da atividade científica: o correspondente a uma Psicanálise da Ciência e a uma Psicologia da Ciência. Além do fator mais óbvio, o interesse na compreensão do objeto (1º fator), Bourdieu já propusera que não há escolha científica que também não envolva estratégia política de investimento objetivamente orientada para a obtenção de status e prestígio científico (2º fator). Ao pensar, agora, nas proposições e nos ditames do referencial do cientista como elementos incluídos no conjunto de seus ideais, investidos pela energia pulsional, alçados à condição de insígnias fálicas e articulados aos demais aspectos de sua subjetividade (conforme a proposição defendida anteriormente de que as teorias científicas sempre incluem valores, concepções éticas e compromissos filosóficos e metafísicos), temos um 3º fator de relevo para sua compreensão.
Ainda pensando dessa maneira, poderíamos, agora, antecipar três fontes de origem dos obstáculos que os cientistas oporiam às idéias conflitantes com sua abordagem teórica: a) reflexões racionais e científicas fundadas na lógica instituída pelo referencial teórico; b) recusa em abrir mão do lucro material e simbólico proporcionado pela reputação do referencial no campo da Ciência e da sociedade; c) resistências emocionais inconscientes, originadas das identificações relacionadas ao "ideal do eu".
Estabelecidas essas proposições sobre o campo científico, pretendo agora extrair algumas ilações para o caso particular da Psicologia Social no Brasil.
A necessidade de aprofundamento e desenvolvimento teórico na Psicologia Social
Inicialmente, queria lembrar que um elemento essencial para o desenvolvimento da Psicologia Social no Brasil, após a década de 60, foi a crítica ao modelo norte-americano de produção de conhecimento, que aconteceu a partir de uma situação social particular. Externamente, houve os movimentos estudantis de 68 e toda a repercussão de crítica política a eles associada. Internamente, tivemos o recrudescimento da repressão militar instaurada a partir de março de 64 que, em contrapartida, refletiu-se em uma certa unificação das críticas ao regime militar.
O apoio do governo norte-americano às ditaduras latino-americanas e seu tradicional conservadorismo político não poderia produzir, nos ambientes acadêmicos mais críticos, posição favorável a um alinhamento com a produção psicológica mais conservadora desse país. Vários autores brasileiros que participaram desse movimento crítico da Psicologia Social brasileira registraram suas impressões do processo:
Na América Latina, Terceiro Mundo, dependente econômica e culturalmente, a Psicologia Social oscila entre o pragmatismo norte-americano e a visão abrangente de um homem que só era compreendido filosófica ou sociologicamente - ou seja, um homem abstrato. Os congressos interamericanos de Psicologia são excelentes termômetros dessa oscilação e culminam, em 1976 (Miami), com críticas mais sistematizadas e novas propostas, principalmente pelo grupo da Venezuela, que se organiza numa Associação Venezuelana de Psicologia social (AVEPSO) coexistindo com a Associação Latino-Americana de Psicologia Social (ALAPSO). Nessa ocasião, psicólogos brasileiros também faziam suas críticas, procurando novos rumos para uma Psicologia Social que atendesse à nossa realidade. Esses movimentos culminam, em 1979 (SIP - Lima, Peru), com propostas concretas de uma Psicologia Social em bases materialistas-históricas e voltadas para trabalhos comunitários, agora com a participação de psicólogos peruanos, mexicanos e outros (LANE, 1984, p. 11).
Em conseqüência desse movimento de crítica, novas concepções teóricas foram sendo procuradas:
Depois de uma fase bastante confusa na década de 70, identificada como um momento de "crise da psicologia social", na qual havia uma grande indefinição na área e, conseqüentemente, nos programas oferecidos nas escolas de psicologia, parece que alguns caminhos alternativos começam a se delinear. Um maior intercâmbio entre o Brasil e outros países, particularmente da América Latina. Uma maior conscientização dos problemas sociais enfrentados pelos países latino-americanos. Um incremento da produção científica crítica buscando encontrar soluções para problemas específicos do continente latino-americano. Uma fundamentação teórica com base em postulados e concepções de homem e de realidade social alternativa à concepção positivista (OZELLA, 1996, p. 140-141).
E esse esforço de procura de autonomia em relação à produção científica norte-americana, associado à busca de uma prática social crítica e transformadora, tem servido como elo de ligação para uma parcela significativa da comunidade de psicólogos sociais brasileiros. Também em outros países da América Latina, psicólogos sociais com visão política transformadora têm buscado construir o seu paradigma:
Sobre esta rama de la psicología no me extenderé aquí, justamente por ser una con la cual estoy comprometida y sobre la cual y dentro de la cual he escrito en otros lugares y ocasiones. Baste decir que surge en la América Latina a mediados de la década del 70, simultaneamte en varios países del continente y con postulados que la diferencian claramente de la que se comenzara a hacer diez años antes en el subcontinente estadounidense. Su orientación se dirige fundamentalmente a lograr que el centro del control y del poder se ubique en las comunidades muchas veces desposeidas y carentes de vías para expresar sus necesidades y desarrolar sus recursos. Propone la unión de teoría y praxis; la inclusión del estudio de la ideología; la participación, autogestión y organización popular; a la vez que un rol de agente o catalizador del cambio social para los psicólogos; la construcción social, e incorpora las formas bpopulares del conocimiento como elementos para la construcción de nuevas expresiones del saber (MONTERO, 1996, p. 115-116).
O que gostaria de colocar em destaque é o que entendo como a necessidade de consolidação de teorias ou paradigmas monolíticos, unos e congruentes, no cenário da Psicologia Social no Brasil, que dêem conta da organização do trabalho da comunidade de psicólogos sociais brasileiros em direções de investigação consistentes e bem definidas. Parece-me que as alianças definidas por práticas sociais semelhantes e por posicionamentos comuns no campo político constituíram um primeiro momento favorável para a crítica e a demolição de sistemas teóricos insatisfatórios. Porém, não me parece viável imaginar que se possa sustentar indefinidamente a produção de um campo científico apenas com base nesses elementos. A busca de aprofundamento e de identidade teórica e o delineamento mais preciso dos arcabouços estruturais das abordagens e teorias parecem-me necessidades urgentes no campo.
Na ausência desses desenvolvimentos, a produção da área corre o risco de se perder na justaposição da diversidade de microteorias sem identidade clara, versando a respeito de uma multiplicidade de aspectos diminutos e não integrados do objeto. Isso inviabiliza um progresso científico consistente. A impossibilidade de confrontação entre as formulações distintas pode paralisar a evolução no campo, na medida em que não fique claro o modo pelo qual cada uma delas se articula a um paradigma consistente. Mesmo se recusássemos, junto com Kuhn, a proposição popperiana de que a atividade de refutação e falsificação de teorias constituiria o modo salutar de desenvolvimento da Ciência, ainda assim teríamos que nos defrontar com a exigência da direção de paradigmas consistentes. O mesmo pode ser dito a partir das proposições de Bourdieu, seja na escolha do cientista de "estratégias de conservação e sucessão", que visam assegurar a consolidação de teorias já existentes, seja na opção mais arriscada e ambiciosa de "estratégias de subversão", que visam lucros mais altos derivados da substituição dos paradigmas vigentes.
É aqui que se torna importante a questão das diferenças entre dogmatismo, sincretismo e ecletismo. Encontra-se difundido, com certa freqüência, o ponto de vista de que um posicionamento teórico muito claro e consistente seria indicativo de uma posição rígida, dogmática e de negativa receptividade a novas idéias. Segundo essa visão, a flexibilidade teórica e o trânsito fluido entre diversos referenciais e abordagens constituiriam uma base mais favorável para a evolução de investigações menos "fechadas" e restritas a concepções pré-estabelecidas.
Discordo dessa avaliação, por acreditar que, no limite, ela se encontra com o mais raso empirismo, em sua desvalorização dos corpos teóricos. Na ausência de uma teoria consistente como guia para a pesquisa, a produção cientifica só pode acumular-se em coleções aleatórias e não sistematizadas de proposições que mal deixam o nível de descrição dos dados coletados: verdadeiras "colchas de retalhos", para empregar uma metáfora pouco inspirada, mas, ainda assim, apropriada.
Sincretismo é o termo que julgaria apropriado para essa indistinção teórica, a partir de diferentes sentidos que o dicionário de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira aponta para o termo: a) de "reunião artificial de idéias ou de teses de origens disparatadas"; b) de "visão de conjunto, confusa, de uma totalidade complexa"; c) de "amálgama de doutrinas ou concepções heterogêneas"; ou d) de "fusão de elementos culturais diferentes, ou até mesmo antagônicos, em um só elemento, continuando perceptíveis alguns sinais originários" (FERREIRA, 1975, p. 304). Sincretismo é o termo que reservaria para a adoção e uso de uma mistura de conhecimentos de abordagens teóricas distintas, mas que, ao mesmo tempo, permanecem em compartimentos de reflexão separados e sem articulação, inviabilizando-se qualquer consciência de possíveis contradições e divergências.
Já o termo ecletismo aparece no mesmo dicionário com alternativas de qualidade e valor diferentes. Filosoficamente, seria "um método que consiste em reunir teses de sistemas diversos, ora simplesmente justapondo-as, ora chegando a reuni-las em uma unidade superior, nova e criadora" (Ibid, p. 497). Como se vê, há uma alternativa de sentido, algo pejorativo, de simplesmente justapor-se teses de sistemas distintos. Mas há também uma alternativa de significado positivo, de síntese inovadora e de criação superior, que poderíamos ressaltar. É essa a posição que poderia ser positiva no campo da Ciência. Porém, note-se que, aqui, talvez já estejamos no âmbito daquilo que Kuhn chama de "pesquisa extraordinária" e de "revolução científica", ou do que Bourdieu associa com as "estratégias de subversão" no campo científico.
O sincretismo em Psicologia parte do ponto de vista, em minha opinião, equivocado, de que cada abordagem teórica limita-se a enfocar um aspecto distinto do fenômeno humano, como se se tratasse de dividir um bolo em fatias e atribuir a cada uma delas o seu pedaço: aos behavioristas, o comportamento; aos sócio-históricos, a atividade e a consciência; aos psicanalistas, o inconsciente; aos cognitivistas, o pensamento racional e os processos de resolução de problemas, e assim por diante, cada um recebendo seu justo quinhão.
A verdade é que cada abordagem teórica tem as suas próprias concepções de ser humano, de universo psíquico, de realidade, de sociedade, de cultura, de vínculo social e dos demais aspectos fundamentais com os quais é construída a estrutura fundamental do seu paradigma para a abordagem do seu objeto de estudo: o ser humano.
Isso não significa que a investigação de todos os aspectos esteja igualmente desenvolvida nas diferentes teorias. Podemos pensar que cada teoria possa, inclusive, beneficiar-se de algum nível de interação com as demais, no sentido de ter sua atenção voltada para problemas e questões já anteriormente desenvolvidos em campos de outros paradigmas. Porém, esse benefício nunca se limitará a uma simples importação, sem alterações, de proposições e descobertas desses outros campos. Sempre será necessário um processo de "metabolização" desses conhecimentos oriundos de campos diferentes - uma articulação com os demais componentes do paradigma - antes que eles possam ser úteis e se tornem disponíveis para uso no novo campo para onde foram transpostos.
Um ponto que ainda gostaria de analisar nesta defesa da necessidade de aprofundamento e desenvolvimento das teorias em Psicologia Social, relaciona-se com a questão das trocas internacionais entre centros produtores de conhecimento. Acredito na importância de se refletir seriamente a respeito das implicações das diferentes alternativas de relacionamento entre a Psicologia Social desenvolvida no Brasil e a desenvolvida em outros centros, notadamente as dos países de maior desenvolvimento científico.
Como disse anteriormente, uma certa tomada de distância em relação à Psicologia Social norte-americana parece ter se mostrado benéfica para o desenvolvimento de um processo reflexivo crítico no interior da comunidade dos psicólogos sociais brasileiros e latino-americanos. Contudo, o cenário político neste início de século XXI encontra-se profundamente modificado. Em primeiro lugar, não mais existem as ditaduras militares, que possibilitavam a existência de laços de identificação e cooperação contra um adversário comum em décadas passadas. As disposições atuais são bem mais matizadas e diferenciadas ao longo do espectro político.
É verdade que novos focos de ação política podem e devem constituir novas bases para uma práxis conjunta. Porém, no contexto do vertiginoso crescimento exponencial do intercâmbio econômico, social e de informação entre as nações, observado nas últimas décadas, parece-me impossível um isolacionismo que não implique atraso. A questão central a ser pensada é como manter uma postura crítica independente, que não pressuponha o isolamento como requisito de autonomia reflexiva.
Quais as condições necessárias, na Psicologia brasileira em geral, e mais particularmente no caso da Psicologia Social, para que o intercâmbio científico não seja simples processo de assimilação de "mão única de direção"? O que pode favorecer a consolidação de núcleos de pesquisa em Psicologia que desenvolvam uma produção cujo centro de gravidade não se afaste dos problemas e necessidades brasileiros e que se mantenha social e politicamente crítica, sem, no entanto, perder nível de qualidade e complexidade em relação ao conhecimento desenvolvido nos demais centros de produção de conhecimento internacionais? Aí estão algumas das perguntas fundamentais que é preciso responder.
Os perigos da busca de paradigma: confrontos legítimos e ilegítimos no campo da Ciência
Depois de fazer a defesa da necessidade de aprofundamento teórico e de trabalho científico desenvolvido a partir das diretrizes de paradigmas sólidos e estruturalmente bem constituídos em Psicologia Social, gostaria, nesta última seção, de fazer algumas breves considerações sobre o risco, sempre existente, de que a concorrência entre as diferentes teorias assuma formas que denominaria de perversas.
A Ciência é um trabalho coletivo e os paradigmas são o produto desse trabalho, ainda que nem sempre construídos a partir de pequenas contribuições (pequenos 'tijolinhos') como pensa o Positivismo. Os referenciais teóricos organizam o pensamento e o esforço de investigação dos cientistas do campo, concentrando os recursos econômicos e materiais e a atenção social, possibilitando os investimentos pulsionais e a formação de elos identificatórios entre os cientistas. O risco dessa constatação é incorrer-se no equívoco de se pensar que o totalitarismo econômico e político no campo da Ciência possa constituir a condição ideal para a instalação de um paradigma teórico unívoco e para o desenvolvimento integrado de uma disciplina.
Nesse caso, a arrogância de pretensão à verdade absoluta justificaria o esmagamento dos paradigmas divergentes por meio de estratégias de emprego de poder econômico e social buscadas fora do campo científico. Esse totalitarismo seria empregado como arma principal na disputa científica, em substituição ao carisma da engenhosidade teórica, da habilidade metodológica e epistemológica das investigações e da genialidade das idéias: os meios que promovem as mais desejadas e genuínas evoluções no campo da Ciência. Não sobraria nenhum espaço de abertura para uma dialética de confronto entre a própria posição e posição teóricas diferentes, capaz de sustentar uma atitude de respeito e tolerância para com os adversários concorrentes.
É bem verdade que as diferentes teorias em Ciências Humanas podem implicar divergências profundas também no campo político e social, como foi salientado anteriormente. Mas isso não pode ser confundido com a apologia do atrelamento rígido e estreito de uma disciplina científica a um partidarismo político no campo social. Idéias políticas fortes e uma prática consistente só têm a beneficiarem-se do apoio em um corpo de conhecimento construído sobre bases sólidas de pensamento autônomo e evidência factual independente, como bem o demonstrou o Marxismo em seus melhores momentos. Aliás, também nele, em seus mais lamentáveis momentos, como no apogeu da repressão stalinista, podem ser buscados os contra-exemplos de como a disputa científica pode descambar para uma espécie de "guerra suja": um confronto em que o que importa é fazer valer seu ponto de vista teórico a qualquer preço.
Bourdieu mostrou como as disputas científicas não podem ser esclarecidas se o campo da Ciência for conceptualizado de modo ingênuo, como a arena da competição puramente intelectual, na qual o debate de idéias completamente "desinteressado" se mantivesse inteiramente protegido da contaminação por interesses extrínsecos à atividade propriamente científica. Levar adiante essas proposições requer lembrarmos que o capitalismo contrapõe os agentes como concorrentes na disputa por mercados, mas todos igualmente interessados na manutenção do establishement.
No campo científico, isso tende a colocar as diferentes teorias como concorrentes pelo monopólio do prestígio científico, mas todas uniformemente interessadas em não mudar a lógica que rege a ciência promotora do próprio capitalismo. Desta forma, o cientista inclina-se na direção de tornar-se um simples profissional técnico, alheio ao que ocorre no âmbito político, ajudando a promover o capitalismo pela venda da sua mão-de-obra a agentes capitalistas interessados em usufruir da técnica gerada pelo seu conhecimento.
No Brasil, essa tendência vem se acentuando de modo inequívoco nos últimos governos. Como seria possível pensar-se na criação de uma lógica diferente no campo da Ciência? Quais as condições que poderiam desencadear uma busca comum de conhecimento científico significativo sobre o ser humano, que desmonte a unilateralidade dos interesses capitalistas ao invés de promovê-los? Seria possível se pensar em objetivos comuns e em alianças entre membros do campo científico comprometidos com uma lógica diferente, ainda que adversários teóricos no plano das idéias?
Acredito que não se deve tomar esse empreendimento como necessariamente fadado, de saída, ao insucesso. Lembrar que a lógica da concorrência capitalista adentra o campo da Ciência deve ser tomado como alerta e não como instrumento para a sua legitimação e para a defesa da ausência de quaisquer princípios éticos na disputa científica. Nesse sentido, cabe buscar, por meio de reflexão ponderada e cuidadosa, uma diferenciação entre "armas" legítimas e ilegítimas - entre combates leais e desleais - no campo científico.
Essa reflexão ainda está por se fazer, mas adianto que, em um campo fragmentado por diferentes paradigmas, não deve ser considerada ética e legítima a utilização de instrumentos e posições de poder como forma de desqualificar e de reduzir ao silêncio os adversários teóricos. Isso tem implicações éticas para membros de conselhos editoriais, pareceristas de revistas e instituições científicas, para membros de bancas de concursos acadêmicos e de contratação de professores e pesquisadores, para avaliadores de cursos, de programas de pós-graduação e de núcleos de pesquisa, para administradores de verbas de pesquisa governamentais e privadas, para dirigentes e representantes de conselhos e entidades de classe e de associações profissionais e científicas e para todo e qualquer representante e membro de instituição que assegure a produção, a difusão e a reprodução dos bens científicos.
Minhas análises finais destinam-se a fazer breves comentários sobre alguns aspectos grupais postos em evidência pela teoria psicanalítica. Acredito que essas considerações talvez possam ter alguma utilidade na reflexão sobre a dinâmica existente no interior das comunidades científicas.
Em "Psicologia das massas e a análise do eu", Freud retoma Le Bon e Mc Dougall para lembrar que, embora a ética possa tanto elevar-se quanto reduzir-se no interior das massas, a capacidade intelectual parece sempre sofrer restrições. E o nível emocional parece seguir sempre na direção da exacerbação. Os laços grupais protegem os seres humanos da solidão e do desamparo, garantindo-nos provisão narcísica e oferecendo-nos sentido para a existência. No capitalismo, a Ciência veio a ocupar, pelo menos parcialmente, o lugar em que, anteriormente, estava instalada a religião como fornecedora de garantias simbólicas de mediação entre os sujeitos e um Real misterioso e aterrorizante. Não é de todo inesperado, conseqüentemente, que a vinculação a abordagens teóricas possa, com alguma freqüência e facilidade, lançar os indivíduos na condição psíquica que se observa nos fenômenos de massa. Nesses casos, a pertinência ao grupo teórico aproxima-se da adesão a seitas religiosas radicais, em que os adversários teóricos são tomados como o foco exclusivo da agressão. É nessas circunstâncias que a irracionalidade e os aspectos inconscientes das identificações e dos laços sociais assumem sua condição mais negativa, em que os fins justificam os meios na eliminação das oposições. Escaparmos dessa condição sem abrirmos mão das nossas convicções teóricas e políticas parece ser o principal desafio nos campos das ciências fragmentadas, como é o caso da Psicologia Social.
Referências
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Endereço para correspondência
PUC - SP - Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social.
Rua Ministro Godoi, 969, sala 4B-03 - 4º andar - Perdizes - 05015-901
São Paulo, SP - Brasil - Fone: (11) 3670-8520
E-mail: raulpachecofilho@uol.com.br
Artigo recebido em: 2/10/2006
Aprovado para publicação em: 5/10/2006
*Psicólogo, psicanalista e doutor pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, coordenador do Núcleo de Pesquisa, Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social e professor titular da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
1Veja-se Comte (1844).