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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.63 no.spe Rio de Janeiro  2011

 

ARTIGOS

 

Precariedade do trabalho e da vida de catadores de recicláveis em Fortaleza, CE

 

Precariousness work and life conditions of recyclable materials street pickers of Fortaleza, CE

 

 

Regina Heloisa MacielI; Tereza Glaúcia Rocha MatosII; Izabel Cristina Ferreira BorsoiIII; Ana Beatriz Correia MendesIV; Priscila Teles SiebraV; Cildevânia Araújo MotaVI

IDocente. Universidade de Fortaleza e da Universidade Estadual do Ceará. Fortaleza. Ceará. Brasil. reginaheloisamaciel@gmail.com
IIDocente. Universidade de Fortaleza. Fortaleza. Ceará. Brasil. tgrm24@gmail.com
IIIDocente. Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória. Espírito Santo. Brasil. cristinaborsoi@uol.com.br
IVGraduanda em psicologia pela Universidade de Fortaleza. Fortaleza. Ceará. Brasil. anabeatriz.correia@hotmail.com
VGraduanda em psicologia pela Universidade de Fortaleza. Fortaleza. Ceará. Brasil. ptsiebra@gmail.com
VIGraduanda em psicologia pela Universidade de Fortaleza. Fortaleza. Ceará. Brasil. cildevaniamota@gmail.com

 

 


RESUMO

O artigo discute condições de vida e trabalho de jovens, adultos na meia-idade e idosos que trabalham como catadores de recicláveis nas ruas de Fortaleza, CE. Foram oito entrevistados com idades entre 20 a 85 anos, homens e mulheres. As entrevistas indicam que: todos têm baixa escolaridade; tiveram infância e adolescência marcadas por carências material e afetiva e inserção precoce em trabalhos precários; o trabalho atual dá continuidade a vivências anteriores de precariedade de vida e surge da dificuldade de inserção no mercado formal; os jovens revelam desalento, fracasso e falta de perspectivas; os trabalhadores de meia-idade e os idosos construíram uma rede de proteção através de associações de catadores; todos sentem preconceito no olhar "dos outros", que veem um catador como "lixeiro", "mendigo, urubu", ou um possível "ladrão". Enfim, consideram que a cata de recicláveis é fundamental para a própria sobrevivência e a da família e é, sobretudo, um trabalho "direito".

Palavras-chaves: Catadores de materiais recicláveis, Trabalho precário, Informalidade, Histórias de vida.


ABSTRACT

The article discusses life and work conditions of young, middle-aged and elderly street pickers, focusing on experiences of childhood, adolescence and actual job. Eight workers, between 20 and 85 years of age, men and women, were interviewed. The data indicates that: all had a childhood and adolescence marked by lack of resources and emotional support, early insertion in precarious work and low education; the current work maintains the previous experiences of precarious living and working conditions and lack of prospects of inclusion in the formal work market; young workers express feelings of hopelessness and failure; middle-aged and older workers managed to build a safety net through associations of recyclable collectors; all participants reported they have to deal with bigotry revealed in the eyes "of others" for whom a collector is "garbage", "beggar, vulture", a possible "thief". Finally, all believe the work is critical to their and their families' survival and is a "right" job.

Keywords: Recyclable materials collectors, Precarious employment, Informal work, Life histories.


 

 

Introdução

A solução do problema do lixo e de como dispor dele varia dependendo das condições socioeconômicas da região, do país e da cidade. Nos países desenvolvidos, as populações têm sido educadas no sentido de diminuir a produção de restos dos diversos itens que consomem, mas, principalmente, no sentido de realizarem coleta seletiva de forma a facilitar o reaproveitamento do que é possível reciclar (Al-Khatib, 2007). Nos países em desenvolvimento, as soluções para o descarte do lixo têm sido mais precárias. Em geral, não há separação dos resíduos e a coleta do lixo residencial é ineficiente ou feita com uma frequência abaixo do necessário (menos de três vezes por semana) (Al-Khatib, 2007; Doan, 1998; Colon; Fawcett, 2006; Zia & Devadas, 2008), o que leva ao seu acúmulo nas ruas e avenidas.

No Brasil, a situação não é diferente, principalmente nas regiões mais pobres do país. Entretanto, mesmo que haja o recolhimento sistemático dos resíduos do consumo residencial, em grande parte das vezes esses ficam acondicionados nas calçadas dos edifícios e das casas enquanto aguardam a passagem dos caminhões coletores de lixo. É esse material descartado no cotidiano dos moradores das cidades que se torna o alvo do trabalho e a fonte de renda dos catadores de rua de materiais recicláveis. Trata-se de um trabalho que se caracteriza como precário e, ao mesmo tempo, precarizado.

Para Borsoi (2011), a precariedade do trabalho pode ser considerada uma condição inerente ao capitalismo e, portanto, é uma de suas características ontológicas. A noção de precarização, por seu turno, está relacionada ao processo de reestruturação produtiva, que trouxe em seu seio formas de flexibilização dos vínculos empregatícios, das relações de trabalho, das jornadas e das condições de trabalho. Assim, refere-se às expressões contemporâneas do trabalho precário.

Essa consideração leva-nos a afirmar que o trabalho na catação se qualifica como precário por princípio, dadas as condições objetivas para sua realização e seu impacto na vida e na saúde dos trabalhadores nele envolvidos. Por outro lado, pode ser também inserido na categoria de precarizado tendo em vista que se trata de uma atividade que surge como resultado da nova conformação do mundo do trabalho.

No Brasil, a prática de catar resíduos sólidos configura-se em um trabalho caracterizado como uma ocupação regulamentada, embora informal. uma atividade incluída desde 2001 no Catálogo Brasileiro de Ocupações (CBO, 2010) e prevista na atual "Lei do lixo (2010), que proíbe a existência de "lixões. Nessa classificação, os catadores de lixo são registrados pelo número 5192-05 e sua ocupação descrita como catador de material reciclável. Segundo a descrição sumária de suas atividades na CBO, os catadores "catam, selecionam e vendem materiais recicláveis como papel, papelão e vidro, bem como materiais ferrosos e não ferrosos e outros materiais reaproveitáveis. Neste contexto, esses trabalhadores se inserem numa forma de ocupação reconhecida, mas que já nasce sem garantias sociais e trabalhistas mínimas, ou seja, surge dentro de uma condição precarizada.

Embora a catação, como descrita no CBO, possa ocorrer de diversas maneiras, este artigo tem como objetivo discutir as condições de vida e de trabalho de catadores de material reciclável que trabalham nas ruas de Fortaleza, considerando as vivências da infância, da adolescência e da situação atual, relatadas por jovens, adultos na meia idade e idosos.

Segundo a Pesquisa Nacional de Saneamento Básico do IBGE, em 2000 (Machado et al., 2006), o Brasil produzia, por dia, 228.413 toneladas de lixo, das quais 36% tinham como destino final aterros sanitários, 37% iam para aterros controlados, 21% para lixões a céu aberto, 3% para estações/usinas de compostagem e 1% para estações/usinas de triagem e reciclagem. Os materiais mais utilizados na reciclagem, no Brasil, são, por ordem: o alumínio, com cerca de 85% do total que é descartado como resíduo; o papelão com 72%; o vidro com 42%; e o plástico tipo PET (polietileno-tereftalato), usado comumente para garrafas de refrigerantes, com 26% (Bosi, 2008).

Estima-se que o número de catadores de materiais recicláveis, no Brasil, seja de aproximadamente 500.000 (quinhentos mil), estando 2/3 deles no estado de São Paulo (Bortoli, 2009). Esse número, é claro, refere-se não apenas aos catadores de rua estudados aqui, mas também a trabalhadores que exercem outras atividades relacionadas ao tratamento dos resíduos sólidos tais como a cata em lixões, separadores de materiais, entre outros.

Em algumas cidades, uma parte dos catadores de rua se reuniu em associações e convive com outros catadores que trabalham para depósitos, realizando o mesmo tipo de serviço em um sistema competitivo. Eles se ocupam da cata de materiais em condomínios e residências e em outros estabelecimentos, colocando o material que pode ser vendido como reciclável em um carrinho que vão puxando pelas ruas da cidade. Ao final da jornada, retornam ao local de onde retiraram (emprestaram) o carrinho para vender os materiais recolhidos ao longo do dia. No local, o próprio catador separa os materiais para a pesagem e recebimento do pagamento. Esses catadores de rua diferem dos catadores de lixões, na medida em que estes últimos não saem às ruas, mas permanecem no local onde o lixo é despejado, os chamados lixões: grandes extensões de terra onde o lixo coletado pelos caminhões mantidos pela prefeitura é amontoado. Neste estudo, focalizamos apenas os catadores de material reciclável que saem às ruas recolhendo resíduos sólidos que podem ser vendidos às usinas de reciclagem, separados em dois grupos: os que trabalham para "deposeiros"1 e os que trabalham em associações.

Em Fortaleza, há aproximadamente 16 associações de catadores de material reciclável que funcionam como cooperativas, embora não sejam formalizadas como tal, dadas a complexidade burocrática e o custo operacional envolvido. No entanto, a prefeitura e o governo estadual reconhecem sua existência e buscam fornecer algum tipo de assistência na forma de doação de espaços e meios para o transporte dos materiais, incluindo os carrinhos utilizados na atividade de catação e o caminhão para o transporte do material catado e separado para as indústrias. Algumas associações recebem ajuda também de ONGs2 internacionais e nacionais e de setores da Igreja Católica. Nessas associações, há uma divisão de trabalho de acordo com as necessidades e o material existente: a maior parte dos catadores vai à cata nas ruas enquanto outros permanecem separando e pesando materiais doados pela população ou por outras instituições à associação e pode haver rodízio entre essas atividades. Os ganhos são iguais e correspondem à divisão do que é percebido pela associação em um período fixo, geralmente mensal ou quinzenal. Isto significa que mesmo os ausentes por adoecimento ou que "cataram" uma menor quantidade de materiais recebem "o mesmo salário". Em geral, há um coordenador que responde pela associação diante da rede de catadores do município de Fortaleza. O coordenador participa de reuniões mensais para discussão sobre novos projetos, governamentais ou privados, envolvendo a reciclagem, além de ser o responsável por mediar a transação do material catado para a usina de reciclagem. Já nos depósitos, embora o trabalho seja basicamente o mesmo, há diferenças na sua estruturação.

Os depósitos são pequenas organizações geridas por um empresário de sucata e material reciclável que faz a "travessia" do material para as usinas. Eles variam de tamanho em relação ao espaço físico, e seu poder econômico é medido em termos da quantidade de carrinhos disponibilizados para os trabalhadores: há depósitos com apenas três ou quatro carrinhos e outros com até 100 desses equipamentos. Os catadores são vinculados ao depósito por meio do empréstimo diário do carrinho, mas não possuem vinculo empregatício formal e nenhum suporte ou garantia de proteção aos riscos que o trabalho oferece. A vantagem do depósito é a forma "liberal" de atuação, o que é visto por alguns catadores como positiva: "não tem hora para trabalhar, não tem 'patrão', trabalho quando quero". Os ganhos, no caso dos depósitos, são imediatos: o trabalhador chega ao depósito com o material reciclado; o material é separado e pesado pelo próprio trabalhador e este recebe pelo que catou. Mas o percebido é menor, pois ao preço do material pesado já está excluída a porcentagem do "deposeiro".

O trabalho com o lixo expõe o trabalhador a vários riscos à sua saúde. Os mais comuns têm a ver com a exposição a cargas pesadas, bioaerosóis, componentes voláteis e materiais cortantes ou até infectados, levando a possíveis problemas musculoesqueléticos, na pele, respiratórios e gastrointestinais (An et al., 1999). Porto et al. (2004), em uma pesquisa com catadores de um lixão do Rio de Janeiro, listam essas mesmas doenças como referidas pelos trabalhadores. Além disso, os trabalhadores relatam acometimentos por pneumonia, problemas de coluna, alergia, dores de cabeça e de estômago, desidratação, hanseníase, hepatite, leptospirose, pressão alta e "problemas de nervo". Na atividade estudada aqui, o esforço físico é extenuante: não é raro ver-se um catador puxando ou empurrando um carrinho "abarrotado" pelas ruas, o que pode ocasionar, principalmente, comprometimentos musculoesqueléticos diversos e traumas, pois ficam expostos a riscos de acidentes por trafegarem entre os carros nas grandes avenidas e ruas da cidade. Outros problemas relatados são os acidentes com perfuro-cortantes e infecções diversas (Maciel et al., 2010).

O custo envolvido nesse trabalho não se restringe apenas às questões relacionadas à saúde física, mas também à questão da inclusão/exclusão social e ao estigma por realizar um trabalho com o lixo. Os trabalhadores, em geral, encontram-se abaixo da linha de pobreza, excluídos do mercado de trabalho formal e vistos como desocupados e sujos: homens e mulheres da rua, peças descartáveis da engrenagem social (Adamates, 2004).

 

Método

A técnica utilizada foi a historia de vida, que, para Queiroz (1988), encerra um conjunto de depoimentos e, embora seja o pesquisador a escolher o tema, a formular as questões ou a esboçar um roteiro temático, é o narrador que decide o que narrar. Essa é uma ferramenta valiosa, pois possibilita o cruzamento entre a vida individual e o contexto social dos trabalhadores.

A pesquisa foi realizada a partir de um levantamento prévio e visitas a associações e a depósitos de material reciclável da cidade de Fortaleza. Os participantes foram então convidados para uma entrevista individual, com hora e local agendados.

No total, entrevistamos oito catadores: quatro com idades entre 20 e 25 anos, sendo três homens e uma mulher; dois com idades de 42 e 45 anos, mulheres; uma mulher com 62 anos e um homem com 85. As mulheres entrevistadas pertenciam a duas associações diferentes de catadores, enquanto os homens, com exceção do idoso, trabalhavam de modo autônomo e vendiam o material recolhido para diferentes depósitos. A escolha desses trabalhadores se deu, em primeiro lugar, em função das visitas às associações e depósitos e pela concordância em participar da pesquisa. Trata-se, portanto, de um grupo escolhido por conveniência, mas procurou-se garantir, também, uma representação igualitária de catadores de associações e depósitos; de homens e mulheres; jovens e idosos.

Durante as entrevistas, solicitamos que esses trabalhadores relatassem suas vivências desde a infância até a situação atual em que se encontravam. No caso dos homens jovens, a equipe encontrou dificuldades na abordagem, uma vez que eles temiam que os entrevistadores tivessem algum contato com a polícia. Um receio justificado pelo fato de, entre eles, haver pelo menos um caso de envolvimento com drogas, furtos e prisão.

As entrevistas duraram, em média, duas horas, uma vez que os catadores têm poucas oportunidades de conversar sobre as suas condições de vida e trabalho e se sentiram à vontade para relatar aos pesquisadores suas vivências passadas e atuais.

Com o intuito de não identificar os entrevistados, na análise a seguir, os catadores são designados pela primeira letra de seus nomes. O Quadro 1 mostra algumas características do grupo de entrevistados.

As entrevistas foram analisadas com base na técnica de análise de conteúdo, o que permitiu construir categorias empíricas que refletissem aspectos significativos para o conjunto dos entrevistados, considerando tanto os elementos comuns à maioria do grupo, como também as suas idiossincrasias. Desse modo, foi possível constatar tanto semelhanças, como diferenças nas experiências de vida da infância e da adolescência dos participantes, nas representações que constroem de si e do trabalho de catadores na vida atual, no modo como percebem o olhar do outro sobre o que fazem e, por fim, nas expectativas de futuro.

 

Carências e precariedade de vida

Os catadores de materiais recicláveis entrevistados, independentemente da idade que têm, compartilham a infância e a adolescência marcadas por carências materiais e muitas vezes afetivas, além da baixa escolaridade formal - alguns não sabem ler e escrever - e da inserção muito precoce no trabalho.

Os relatos de todos sobre suas vidas desde quando eram crianças até o presente são permeados de situações de intenso sofrimento, às vezes sentimentos de desamparo, busca incessante pela sobrevivência imediata, poucos momentos de alegria e muito trabalho.

Todos começaram a trabalhar muito cedo, ainda na infância ou na adolescência. Com exceção de J. - que relata ter trabalhado por pouco tempo em uma granja - e de F. - que trabalhou em agropecuária, na produção de carvão, na construção civil, como zelador -, os homens se restringem a falar, durante as entrevistas, do trabalho na catação de materiais recicláveis. No grupo das mulheres, somente G. não trabalhou como empregada doméstica, as demais se empregaram em "casas de família", mas nem sempre como primeira experiência de trabalho. Assim, C. teve como primeiro trabalho a cata de material reciclável e M. chegou a trabalhar, com apenas cinco anos, carregando água e quebrando pedras em uma pedreira:

"Nessa época não tinha fábrica de triturar pedra, né? Então eu amanhecia o dia, assim mais ou menos quatro e meia e cinco horas da manhã com uma marreta bem grande. Então, eu amanhecia o dia já quebrando pedra. Muitas vezes, as pedras batia, saía aqueles filetinhos e batia em mim, saía sangue. E assim foi uma vida muito ruim... não foi uma vida muito boa não! Uma vida mais pra lá."

Assim, os relatos, quase sempre, fazem referências a situações de trabalhos pesados, à humilhação e aos maus-tratos, particularmente quando se trata das mulheres, exatamente pela natureza do trabalho doméstico "na casa dos outros", que quase todas elas, em algum momento, experimentaram. Esse tipo de atividade era procurado ou porque suas famílias não tinham condições materiais para alimentar e proteger minimamente todos os seus integrantes, ou para fugir dos maus-tratos vividos já no seio familiar.

Para as mulheres adolescentes, trabalhar em "casa de família" surgia como alternativa de sobrevivência face à condição precária de vida e também como possibilidade de iniciarem ou continuarem os estudos, o que, na prática, não se efetivava. O relato de M. sobre sua experiência como empregada doméstica mostra que não só esse trabalho costuma ser excessivamente pesado, principalmente levando-se em conta a idade da trabalhadora - no caso dela, mais ou menos 11 anos -, como, também, que a vida pode ser marcada por humilhações e maus-tratos:

"[...] eu não terminei [o ensino fundamental] porque eu fiquei trabalhando na casa dos outros. Me acordava de madrugada, ia dormir de madrugada, era muito cansativo. Quando eu saía do colégio, eu ainda tinha uma pilha de coisa pra lavar na pia, quando eu chegava mais de 10 horas. E eu ficava até tarde da noite terminando de lavar essas coisas. Quando eu saía pra ir pra aula eu tinha que deixar a mesa toda posta, as coisas tudo lavada e quando eu chegava era no mesmo ritmo e assim a gente cansa... a gente vai se cansando... [...] Nessa casa, agora, da mulher do Sítio P.P.A., essa mulher me maltratava tanto, me puxava, me beliscava toda, pegava o ferro e 'pufo' [faz o gesto com a mão indicando que encostava o ferro quente em sua pele]."

Ao ser indagada sobre por que suas patroas a maltratavam, ela fornece uma explicação exemplar, baseada na própria experiência e na representação que construiu do comportamento agressivo de suas empregadoras a partir do que viu e ouviu em programas de TV:

"Porque você não tem ninguém pra punir por você. Quando você não tem ninguém pra punir por você... você é igual a um animal... num tem dono, você pode fazer o que você quiser. Se você tiver o espírito ruim, você até mata aquela pessoa. Aparecem muitos casos assim na televisão... que chega criança... Eu vi uma vez uma reportagem que passou no Globo Repórter e passou também no Jornal Nacional: uma mulher bem de vida, o que é que ela fazia com a criança? Colocava a criança pra lamber o mijo do cachorro, o cocô do cachorro e até acorrentou a menina. Pois é, aquilo ali existe mesmo... pessoas que... e o homem ainda não acreditou na denúncia, porque era num bairro bom, classe boa, não acreditou. Daí foi quando ele foi até lá e viu a situação da criança toda acorrentada, como ele contou a história. Quer dizer... ela [criança] veio do interior e fizeram tudo isso com ela... Isso aí existe muito... Existe muitas pessoas que traz gente do interior pra fazer maldade... muita mesmo. Por isso, eu nunca quis que uma filha minha trabalhasse em casa de família... não, nunca, nunca. Essa que chegou a trabalhar em casa de família, mas já adulta e por conta própria, mas não que eu botasse. Porque eu sei como é que é casa de família!"

É emblemática a fala de M.: "você é igual a um animal... num tem dono". Ela mostra, com isso, que naquela condição, longe de sua família, ficava à mercê de quem tinha sua tutela. No entanto, era uma tutela que não a protegia, ao contrário, possibilitava que fosse agredida, maltratada, subjugada.

Le Guillant (2006), ao analisar o dramático assassinato de duas mulheres, cometido por suas duas empregadas domésticas (as irmãs Papin), ocorrido na França, em 1933, caracterizava a condição das empregadas domésticas como aquela que

"[...] constitui, na nossa época [década de 1940], a mais significativa persistência das relações senhor-escravo. O tempo e uma profunda transformação material dessa condição não alteraram nada em seu "estado" que continua sendo vivenciado a partir do mesmo registro afetivo, de preferência, exasperado. [Além disso,] mais do que os membros de qualquer outro grupo socioprofissional, as criadas permanecem impotentes, isoladas, incapazes de investir seu ressentimento em uma ação organizada. (Os sindicatos do "pessoal doméstico" são praticamente virtuais)" (p. 327).

Guardando a devida distância temporal e geográfica entre os escritos de Le Guillant acerca das empregadas domésticas e as experiências relatadas por M. - e que são compartilhadas por outras entrevistadas - pode-se notar que a constatação daquele autor permanece extremamente atual, razão porque a entrevistada enfatiza: "nunca quis que uma filha minha trabalhasse em casa de família... não, nunca, nunca. [...] Porque eu sei como é que é casa de família!". Borsoi (2005), ao entrevistar trabalhadoras de fábricas no município de Horizonte, CE, também constata que, geralmente, as primeiras experiências de trabalho das mulheres eram como empregadas domésticas, quando ainda adolescentes. Também nesse caso, eram unânimes as referências às humilhações e aos maus-tratos por parte das patroas.

Todos os entrevistados falam de uma infância e de uma adolescência caracterizadas como muito sofridas e tristes, marcadas por carências de toda ordem: moradia e alimentação inadequadas, poucas condições de estudo e de suporte afetivo da família, falta do pai ou da mãe, ou de ambos. Alguns exemplos são ilustrativos:

W., que viveu com a mãe - separada do marido quando ele ainda era pequeno -, relata, de modo aparentemente natural, as mortes por afogamento de seus dois irmãos menores e o seu envolvimento com drogas (maconha e crack) e roubos, quando ainda era garoto. Fala do período em que esteve viciado: "Aí virei 'noia', comecei a roubar, e aí começou. Um 'noia' é uma pessoa que não segura o vício, tudo que ele vê, ele quer roubar para sustentar o vício". Foi preso várias vezes e diz que a prisão "não tem coisa mais ruim, não". T. conta que, aos treze anos, a vida com sua madrasta "era muito ruim e eu sofri muito e aí desabei para cá [Fortaleza], sem destino". V. sintetiza, entre lágrimas, o sentimento da maioria dos entrevistados: "Essa vida eu sofri, viu? Por mim, eu não queria viver nunca essa vida que vivi".

No lugar das carências, a presença marcante de trabalhos muito precários, tanto no que diz respeito às condições para sua realização como também à compensação financeira. Marcados por essas vivências, esses trabalhadores entraram na vida adulta, alguns ainda são jovens, outros estão na meia-idade e alguns já alcançaram a terceira idade, sem grandes transformações nas suas condições.

 

Entre o "lixeiro" e o catador de materiais recicláveis

Uma característica marcante de todos os entrevistados está no fato de que a precariedade da vida atual é decorrência das experiências da infância e da adolescência e, de certo modo, pode ser caracterizada como uma continuidade delas. Alguns guardam fortes laços com a catação do lixo como meio de sobrevivência desde a infância até a vida adulta, a exemplo de G., C. e W.

Em alguns momentos, a experiência com o lixo pode ser traduzida apenas como a catação de itens que possuem somente valor de uso, destinado à sobrevivência imediata. É o que ocorre quando o catador se alimenta e/ou alimenta sua família com algum tipo de comida que encontra no trato com o lixo. Situações como essas surgem nas falas de alguns entrevistados. T. relata que, muitas vezes, alimentava os filhos com o que encontrava no lixo e G. conta que não só ela, sua mãe e seus irmãos comiam restos de comida e até alimentos com validade vencida e que eram desprezados por supermercados no aterro que ela frequentava, mas também os próprios filhos chegaram a se alimentar dessa maneira durante algum tempo:

"[No aterro] tinha esses carros que vai com resto de fruta, alimentação que eles não queriam, aquelas coisas vencidas do supermercado, o carro pegava e despejava lá. Todo mundo sempre comeu as coisas de lá. [Alguém já sentiu alguma coisa?] Não, ninguém nunca sentiu nada. Minha mãe praticamente criou nós com a comida de lá. Ela achava pão, feijão, arroz. Todo tipo de comida que fosse estragada no supermercado e vai pra lá, a gente sempre comeu. "Danone" vencido, um dia, dois dias e até três dias, cinco dias, a gente sempre comia. Nunca aconteceu nada, e tinha o gosto normal, normal. [Sobre os filhos] Nunca tiveram nenhum tipo de problema e, muito pelo contrário, era tudo gordo. É porque vinha muito, eles comiam muito, e comiam e estragavam lá, faziam maior coisa lá. Eu nunca levei meus filhos pro médico com esse negócio de infecção intestinal, essas coisas não. Através do lixo de lá, não! Lá ninguém se preocupava com feijão pra colocar no fogo, não se preocupava com mistura..."

Assim, nem sempre tudo o que é desprezado por uma parcela da população, e que pode tornar-se lixo, é convertido em valor de troca. A comida citada por G. e alguns objetos como relógios, anéis, cordões, celulares, que alguns relatam já terem encontrado, passam a satisfazer uma necessidade pessoal do catador ou da catadora.

Entretanto, como visto anteriormente, a cata de materiais sólidos é uma ocupação regulamentada, que se caracteriza pela coleta, seleção e venda de tais resíduos, que entram na indústria de reciclagem. Nesse contexto, o lixo recolhido, e considerado material reciclável, adquire a dimensão de valor de troca, portanto, torna-se uma mercadoria.

Assim, todos os catadores entrevistados despendem sua força de trabalho para acumular materiais que possam ser vendidos a um proprietário de depósito ou a uma associação de trabalhadores do ramo, que, por sua vez, atuam como mediadores entre os catadores e as usinas de reciclagem. Em troca, esses trabalhadores recebem o pagamento pelo produto do trabalho, que, em parte das vezes, é a principal renda da família, a exemplo de V., que se orgulha de poder sustentar sua mulher e sua filha pequena com o trabalho na reciclagem.

É importante salientar que, para a maioria dos entrevistados, a renda familiar não depende somente do trabalho com os recicláveis. Nesse caso, na composição da renda da família entram, muitas vezes, cotas de bolsa-família e/ou aposentadoria de um dos pais ou ainda pensão por morte de companheiro. Exemplos dessas situações: M. recebe bolsa-família por manter seus filhos na escola; J. mora com os pais e a renda familiar se compõe por seu trabalho na reciclagem, pela aposentadoria do pai, pelas cotas de bolsa-família por ter irmãos e sobrinhos menores na escola e por um pequeno comércio mantido pela família; T. recebe uma pensão pela morte do segundo marido e F. está aposentado.

De qualquer maneira, o trabalho com o lixo é considerado fundamental, do ponto de vista material, para a sobrevivência do grupo familiar, e psicologicamente significativo na vida de todos. Chama atenção a justificativa de F. para enfrentar uma atividade excessivamente pesada e cansativa para os seus 85 anos de idade: "Eu não paro porque é muito ruim a gente ficar parado assim... O bom mesmo é esquentar os nervos, né? Porque, se parar, é pior, porque aí endurece tudo [...]". Para além da sobrevivência, o trabalho na vida de F. possibilita que ele mantenha o sentimento de que ainda pode ser útil e produtivo, além de forçar uma atividade física regular que mantém seu corpo ágil, apesar da idade. O que importa não é tanto o que consegue "apurar" ao final de uma jornada de trabalho, mas o fato de que é capaz de continuar trabalhando e suprindo as próprias necessidades e as de sua família.

C., além de ressaltar a função social do trabalho na catação - a limpeza das ruas - atribui o sentido de autonomia ao que faz: "Porque a gente não tem chefe, trabalha o dia que quer, na hora que quer; se você for trabalhar numa firma, tem que ter hora de entrar e de sair." Mesmo assim, defende que todos os associados possam ter sua carteira de trabalho assinada.

Para os mais jovens, o trabalho na reciclagem ganha sentido especial, pois são eles que estão mais expostos a possibilidades de se envolverem com drogas ou com algum outro tipo de delito - um temor que as mulheres catadoras, com filhos, expressam com certa frequência. Para W., que já foi preso por roubo e envolvimento com drogas, o trabalho no depósito o mantém afastado dos riscos de retorno à prisão. V., embora considere que o resultado financeiro esteja muito aquém do esforço que despende na catação, afirma: "Eu não acho ruim o trabalho na reciclagem, não. Pelo menos não tô fazendo nada errado [...]".

Muito embora seja comum aos entrevistados expressarem algumas vantagens e aspectos positivos do trabalho com materiais recicláveis, alguns, principalmente os jovens, almejam a inserção no trabalho formal, ter a "carteira de trabalho assinada" e um salário fixo. Curiosamente, referem trabalhos nem sempre valorizados socialmente como: zelador, empacotador em supermercado ou policial. O problema é que, mesmo para atividades formais como essas, esbarram em um problema comum: a baixa escolaridade. Entretanto, esse não parece ser o único empecilho. O fato de terem como única experiência de trabalho a catação de lixo passa a ser uma barreira quase intransponível para voos mais altos em termos de trabalho.

Aqui, são frequentes as referências ao preconceito que percebem nas pessoas ao redor, principalmente aquelas que podem desprezar o material reciclável/lixo que eles colhem; preconceito que sofrem e sentem por trabalharem com dejetos e terem condições precárias de trabalho e de vida (Sousa & Mendes, 2006, Adametes, 2004, Medeiros & Macedo, 2007). Assim, "lixeiro", "urubu", "catadeira de lixo", "mendigo" e "coisa sem valor" são expressões citadas pelos entrevistados e que refletem a própria percepção no olhar dos "outros" - dos não pobres e também de pobres não catadores - sobre os trabalhadores que vivem da cata do que é lixo para grande parte da população, um lixo que, no entanto, é o meio de sobrevivência de uma parcela significativa dessa mesma população.

É um olhar negativo, que, na maioria das vezes, sequer enxerga a atividade de catação de lixo ou de material reciclável como um "trabalho". Sendo assim, o catador de lixo, não aparece como um trabalhador, mas como um mendigo, um pobre que não quer ou não encontrou trabalho; quem sabe, um ladrão em potencial ou de fato.

A maioria dos entrevistados conta que percebe o olhar do outro como um olhar de suspeita e de medo e isso envolve também o olhar da polícia. C. relata que ocorrem situações em que a polícia "chega, revista seu carrinho [de qualquer catador], joga as coisas tudo no chão pra ver o que vai dentro, aí depois sai e a gente tem que ajuntar tudo de novo" . O que se vê aqui é a criminalização não necessariamente da atividade de catação do lixo, mas da pobreza, o que configura uma relação preconceituosa entre estar pobre e ser violento, criminoso.3

A pobreza educacional e material já os põe numa condição de trabalhadores pobres, e a atividade de catadores, os coloca em uma situação ainda mais penosa, uma vez que realizam um trabalho extremamente precário, insalubre - porque lidam com materiais oriundos de lugares, no geral, sujos - e pobre em conteúdo e em resultado material efetivo. O que conseguem acumular ao longo de um exaustivo dia de trabalho não os tira da condição de pobreza na qual se encontram, ao contrário, os mantêm reproduzindo tal condição.

Leite (2008, p. 86) afirma que, "no âmbito do senso comum dos não pobres, predomina uma 'imagem em negativo' da pobreza. Isso significa que os pobres tendem a ser pensados não como são, de fato [...]". Aqui, não se leva em conta o que Sarti (2005, p. 36) chama de "positividade concreta" e que se refere ao modo como as pessoas pobres trabalham, moram, buscam sua sobrevivência etc. Para Leite (2008), os pobres são vistos pelos não pobres a partir "do que lhes falta" (no campo material e simbólico), do que "não tem". Também são pensados, com frequência, como pessoas em relação às quais se deve buscar estabelecer "fronteiras" ou das quais se deve "distanciar".

Se este mesmo argumento for aplicado à relação entre os catadores e os não catadores, sejam eles pobres ou não pobres, pode-se dizer que se constrói, também, em relação aos que trabalham na reciclagem do lixo uma "imagem em negativo". Afirma M.:

"Eu acho que eles veem a gente como lixeiro mesmo, eu acho que sim. [O que você quer dizer como lixeiro?] Uma coisa sem valor, né? Uma pessoa sem valor, porque é diferente de se ter um estudo. Pra quem não tem e vive disso eles não olham a gente com essa imagem de 'alguém', não [diz "alguém" com ênfase]."

Na tentativa de resistirem ao preconceito que sofrem e ao estigma que carregam - por trabalharem com o que é "sujo" - e de mostrarem a positividade e o valor do trabalho que realizam, os entrevistados constroem uma forma de enfrentamento e defesa à qual Sarti (2005), ao discutir a atitude das pessoas pobres em relação às pessoas ricas, chama de autovalorização defensiva. Para a autora, essa forma de defesa é a contrapartida "em face da crença discriminatória dos ricos de que o pobre é ignorante, atrasado, não quer saber de trabalhar, não tem moral" (p. 26).

Por viverem em uma condição de pobreza, os catadores buscam enfatizar que, apesar de serem catadores e de serem pobres, vivem uma vida honesta, fazem um "trabalho direito" e conseguem sustentar minimamente suas famílias. Entre as mulheres, há duas que fazem questão de se definirem como mães solteiras. Uma delas, M., se orgulha de estar, sozinha, criando seus filhos e de o fazer com o trabalho na catação e com as cotas de bolsa-família que recebe por mantê-los na escola. Insiste em dizer que se esforça para que os filhos continuem estudando. Por um lado, há a motivação financeira - a bolsa-família - pelo outro, há, principalmente, o sonho de vê-los com escolaridade elevada, de modo a poderem negar a "imagem em negativo" que se constroem das pessoas que vivem na pobreza e/ou à margem das expectativas sociais normativas. Nas palavras de M.: "vai ser um grande prêmio pra mim, um dia eu chegar a ver algum filho meu formado, né?, pro meu orgulho. Porque é muito bom, né, ser alguém apesar de ser filho de mãe solteira, [por]que filho de mãe solteira é muito jogado fora". Embora não sendo mãe solteira, T. também afirma que sustentou, sozinha, os filhos que teve e que, hoje estão quase todos casados, a respeitam e não tem vícios de bebida ou fumo. Afirma ela: "É por isso que dou valor, dou valor à minha família. Graças ao meu bom Deus".

Depoimentos como esses mostram que trabalhadores como os entrevistados tendem a vincular sua afirmação de si tendo como referência o olhar do outro. O trabalho é, como afirma Sarti (2005, p. 90), "um dos instrumentos fundamentais dessa afirmação pessoal e social". Assim, o trabalho na catação pode se traduzir em uma demonstração de honradez e de virtude moral. A honra pode estar presente no fato de "trabalhar por conta própria", sem precisar ter um "chefe nas costas da gente", reafirmando seus anseios de autonomia através do trabalho; ou, em face dos trabalhos "desqualificados" que têm a seu alcance, traduzem-nos como trabalho "duro, serviço pesado" que exige qualidades morais como "coragem, força e disposição".

Sobre o sentimento de autonomia que alguns entrevistados afirmam ter em seu trabalho, cabe lembrar que Medeiros e Macedo (2007, citando Birbeck, 1978), denominam os catadores de lixo de "autônomos proletários", uma vez que sua autonomia é ilusória, pois vendem sua força de trabalho às usinas de reciclagem em condições altamente precarizadas. As jornadas de trabalho são extensas e os ganhos resultantes desse trabalho são extremamente baixos.

Do mesmo modo que o trabalho na reciclagem adquire o sentido de valor moral, também a saúde é representada de modo semelhante. Nenhum entrevistado nega que o trabalho que fazem é insalubre, penoso, pesado e guarda em si determinados perigos e riscos de adoecimento, mas seguem trabalhando apesar das características das atividades que fazem, dos desconfortos, dos mal-estares e das dores que sentem, algumas vezes até minimizando os problemas.

Alguns claramente enfatizam os perigos de se trabalhar com o lixo: M. afirma que mantém seus filhos distantes desse tipo de trabalho porque "nesses materiais, de qualquer maneira, tem bactéria". Conta ocorrências de acidentes provocados por carros durante o transporte do material, que ela própria tem apresentado "manchas pretas" na pele devido ao sol forte a que está exposta durante o trabalho e que também sente dores nas costas "de tanto pegar peso". Diz ela: "A gente, às vezes, traz uma carroça tão pesada que, às vezes, a gente vem parando porque ninguém aguenta". Conclui, por fim, que o futuro na reciclagem "é ficar doente".

W., ao ser perguntado sobre se tem algum problema de saúde, responde:

"Não, graças a Deus eu sou muito cheio de saúde. Eu não me lembro de doença nenhuma. Até febre é normal para uma pessoa, mas eu não me lembro de ter nem isso. Só sinto dor de cansaço (risos). Eu sinto dor nas costelas todinha e acho que é de andar demais, de se abaixar e se levantar, de botar peso, eu não sei. Eu acho que se eu fizer assim (faz uma posição de espreguiçar) estrala tudim minhas costelas. Mas eu acho que essa dor não é doença não, que é normal porque eu só sinto quando tô mais enfadado."

F. diz que sente dor no joelho. Afirma: "eu sinto só isso mesmo... às vezes aparece uma dorzinha no corpo, mas isso é de quem é véio mesmo...". C. relata que sente dor na coluna e nas pernas e que já não consegue "puxar carrinho mais pesado". Ela sintetiza os perigos do trabalho e a ausência de proteção social no campo da saúde:

"Não é nada seguro, tem muitos riscos, já aconteceram com vários catadores, ou até com a gente mesmo. O rapaz chegou com o material e quando ele foi saindo, eu gritei que ele ia passar a perna num ferro, mas aí ele já tinha passado, então foi um golpe muito grande. Aí a gente teve que levar pra tomar a antitetânica, porque é arriscado perder uma perna, né? Tem vidro, tem muita gente que não separa o material, mistura tudo, aí é muito risco. A gente não tem como pagar um FGTS, né? Um INSS, né? Aí quando cai doente, se num for os amigos, um ajudando o outro, não tem da onde tirar."

Para os que integram alguma associação de catadores de materiais recicláveis, a proteção com que podem dispor é uma rede de auxílio mútua, às vezes caracterizada pela partilha igualitária dos ganhos entre os associados. Afirma M. a respeito das colegas que adoecem ou se acidentam: "elas entram na divisão. A gente entrou nesse acordo que ninguém pode tirar da outra porque a outra tá doente. Ela não tem culpa." Entretanto, aqueles que trabalham diretamente para um depósito, como ocorre com W., J. e V., não têm o mesmo tratamento dos que estão vinculados a uma associação. Em caso de doença ou acidente, tendem a ficar mais desamparados.

No fim das contas, somente acidentes ou doenças mais graves podem ser impeditivos para continuarem trabalhando. Como mostram Dall'Agnol e Fernandes (2007), em um estudo sobre catadores de lixo associados de Porto Alegre, o entendimento que os trabalhadores têm de suas condições de saúde considera apenas a esfera biológica e, mesmo assim, se restringe às doenças de difícil tratamento e cura, como a AIDS e o câncer. Desse modo, apesar de apontarem algumas afecções como decorrentes do trabalho, os trabalhadores consideram-se saudáveis. Nessa mesma linha, Sousa e Mendes (2006) concluem, em seu estudo sobre os catadores de lixo do DF, que para os trabalhadores "saúde é ter condição para trabalhar" e que a relação entre problemas de saúde e trabalho, geralmente, é negada pelos trabalhadores (p. 37).

No caso dos entrevistados da pesquisa em questão, apesar das mazelas do trabalho que se expressam no corpo, eles tendem a enfatizar a força que ainda têm para uma atividade desgastante e de extrema precariedade. Aqui, trabalho e saúde são dois valores morais que não se dissociam. Como afirma Sarti (2005): "O corpo é o instrumento do trabalho, não apenas para sobreviver, mas para mostrar-se forte. [Assim] Também a saúde tem um valor moral" (p. 91).

Apesar de a maioria dos catadores se referir à sua atividade como um trabalho semelhante a qualquer outro em termos de meio digno de sobrevivência, todos concordam que se trata de um trabalho precário, visto como socialmente desvalorizado, e estigmatizado, sobretudo, "sem futuro". Desse modo, mesmo aqueles que afirmam que gostam do que fazem, sugerem que esta é uma atividade realizada na ausência de alternativas menos extenuantes, mais seguras - tanto do ponto de vista da saúde como da proteção social - e mais rentáveis.

O futuro de todos - homens e mulheres, jovens, adultos de meia-idade e idosos - permanece sem perspectivas. Os mais velhos não aposentados esperam obter a aposentadoria e os mais jovens sonham com o emprego formal, mas não veem como efetivarem o sonho na ausência da escolaridade básica que as empresas solicitam no ato da seleção ou da contratação. Enquanto isso, continuam vivendo da cata que fazem, lidam com a possibilidade, muitas vezes real, de se envolverem com drogas ou outros delitos. Alguns se mostram desejosos de conquistar melhores condições de vida, mas, ao mesmo tempo, expressam desesperança e conformismo, como parece ocorrer a W. Afirma ele:

"[...] eu não queria ser nada, eu queria ser do jeito que eu sou, nem ser doutor, nem ser polícia, nem nada. Queria ser do jeito que eu sou, normal, só queria ter umas condições melhores de viver. Queria ter tudo que uma pessoa assim tem, inclusive melhor, pra não faltar nada dentro de casa, no momento em que precisa."

J. pensa em voltar a estudar para ter "uma vida melhor". Ao mesmo tempo, afirma: "Eu não dou muito valor na minha vida não. A minha vida é um fracasso." Ao ser lhe perguntado por que, responde: "É um fracasso, mal dá pra mim fazer minhas coisa, mal dá pra mim ter minhas coisa".

Enquanto os mais jovens não veem futuro num trabalho diferente para si mesmos, os trabalhadores mais velhos - com filhos pequenos, adolescentes ou jovens - transferem a perspectiva de um futuro distinto para eles. Avaliam que o trabalho de catadores de lixo é uma herança que não deve ser deixada aos filhos. O depoimento de M. é enfático quanto a isso:

"[...] eu penso no futuro... o futuro que eu vou pensar é que um dia eu vou chegar e me aposentar... mas não sei quando (risos). E também que ao menos um desses menino me ajude, né? Tenha um futuro melhor... não chegue a ter o futuro que eu tive, de viver assim trabalhando, sustentando uma carroça no meio da rua feito burro de carga, e que eles tenham um futuro bem melhor. Pelo menos eu aconselho muito que eles terminar os estudos, conseguir um bom emprego e até mostrou pra eles... Não é bonito a pessoa chegar nos cantos e ver a pessoa trabalhando nos hospital, ou num banco, né?, numa Caixa Econômica, num é tão bonito?"

Esse depoimento sugere, de certo modo, alguns contrastes que os catadores estabelecem entre o trabalho que fazem e os outros tipos de trabalho, que até almejam: catador é burro de carga, faz trabalho desqualificado, incerto, sujo e feio. Os outros tipos de trabalho, no entanto, podem ser mais seguros: um bom emprego, um trabalho mais leve, limpo e bonito.

 

Considerações finais

A cata de material reciclável envolve pessoas pobres, de baixa escolaridade e que, no geral, não encontram alternativas de trabalho menos penoso, insalubre e rentável, de preferência, um trabalho formal. Atinge, então, aqueles que buscam a sobrevivência imediata para si e sua família. Muitas vezes, esses catadores vivem basicamente da cata dos materiais, por meio da qual buscam alimentos e outros materiais para o consumo e materiais recicláveis que possam ser vendidos.

No caso dos entrevistados, cujas experiências foram alvo de análise neste artigo, os mais jovens quase sempre viveram da cata de lixo; outros, principalmente as mulheres, iniciaram essa atividade já na vida adulta. No entanto, para todos eles, a trajetória de vida foi marcada por carências de toda ordem o que, com certeza, determinou sua condição atual de vida e trabalho como catador.

No grupo estudado, trabalhadores de meia-idade e idosos participam de associações. Nas associações, as condições de trabalho são praticamente as mesmas de trabalhar para um "deposeiro", embora o fato de ser associado confira uma maior identidade aos trabalhadores, acesso a programas (governamentais e ONGs) e certa proteção e apoio sociais. Na condição de associado, os catadores podem contar com uma rede mínima de proteção e auxílio mútuos. Isso parece fazê-los sentirem-se mais seguros, mesmo porque percebem que conseguiram, de algum modo, estruturar suas vidas a fim de investir no futuro dos filhos. São eles que devem estudar e se esforçar para buscar trabalhos formais, qualificados, seguros e mais rentáveis, para, assim, se distanciarem das experiências de vida e trabalho de suas mães e de seus pais.

Quanto aos jovens, os homens não estão vinculados a nenhuma associação e trabalham diretamente para um proprietário de depósito. Deste modo, seguem sem qualquer meio de proteção no que diz respeito aos riscos que o trabalho oferece, e também sem nenhum suporte social, além do da própria família, quando é o caso. Em vista disto, são eles os que se encontram mais fragilizados material e psicologicamente. Tendem, por isso, a expressar sentimentos de desalento, de fracasso e de falta de perspectiva de futuro.

Apesar de não se ter estatísticas oficiais sobre a quantidade de catadores da cidade e sobre sua divisão entre associados e vinculados a depósitos, pode-se notar, nas visitas e observações, que é mais comum os catadores homens e jovens trabalharem para depósitos e as mulheres e homens mais idosos para associações. Os homens, principalmente os jovens, preferem trabalhar para depósitos em vista da percepção de uma maior autonomia e independência, além da perspectiva de um ganho mais imediato, embora menor. Além disso, os trabalhadores de mais idade possuem outras fontes adicionais de renda, o que permite que possam esperar por um tempo mais longo pelo dinheiro arrecadado com a venda do material, como acontece nas associações.

Um aspecto importante, entretanto, une todos os entrevistados, independentemente da idade e do gênero: o fato de se considerarem trabalhadores e de buscarem, através do trabalho de catação, viver uma vida digna e honesta. Isto, para eles, é possível porque catar lixo nas ruas para sobreviverem, embora seja um trabalho extenuante, sujo, estigmatizado e pouco rentável é, sobretudo, um "trabalho direito".

As condições de trabalho e de vida dos catadores são evidentemente precárias e também condizem com as quatro condições que determinam a vulnerabilidade social, propostas por Rodrigues et al. (1999), ao explicitar os mecanismos de exclusão. A primeira diz respeito à severidade das condições de trabalho: trabalho desenvolvido ao ar livre, sujeito às variações climáticas; trabalho manual pesado ou violento, com consequências para a saúde física. A segunda se refere à segurança e à higiene do trabalho: trabalhos que expõem a poluentes ou radiações, por exemplo, além de outros perigos como bactérias. As contrapartidas financeiras se constituem na quarta condição que, no caso, são mínimas e variáveis. Finalmente, a quarta e última condição especifica as garantias sociais: possibilidade de acesso aos benefícios do sistema de saúde, educação, segurança social, entre outros, o que, evidentemente, não ocorreu e não ocorre ainda no grupo estudado.

A pobreza e a condição de vulnerabilidade social e a precariedade da vida pessoal e de trabalho do grupo estudado evidenciam-se de duas formas: por um lado, desde uma perspectiva objetiva, caracterizada pelo seu potencial mensurável, por meio dos relatos de ganhos ínfimos e condições penosas e perigosas de trabalho; por outro, desde uma perspectiva subjetiva, que se mostra nas experiências vividas pelos catadores, nas normas e valores apreendidos e na carga valorativa que atribuem à sua condição, passível de alimentar a baixa autoestima presente nos discursos e na imagem negativa que os catadores têm de si.

 

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Submetido: 29/11/2010
Revisto: 11/07/2011
Aceito: 24/08/2011

 

 

1 Denominação utilizada para designar o dono do depósito.
2 Organizações não governamentais.
3 Sobre a relação entre pobreza, violência e criminalidade, sugerimos consultar Telles (1990), Telles, (1993) e Sarti (2005).

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