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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) v.30 n.45 São Paulo dez. 2007
EM PAUTA - LINGUAGEM II
O desejo e a obra literária
Desire and literary work
Cleusa Rios P. Passos*
Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
RESUMO
O ensaio trata das relações especulares entre autor, leitor e obra literária, tomando como aspectos fundamentais as pulsões e o desejo, noções discutidas por Freud e seguidores. Os vínculos visados se configuraram tanto graças a textos literários, quanto a depoimentos sobre o que escreveram ou leram alguns autores: dentre eles Clarice Lispector, Julio Cortázar, Graciliano Ramos, Roland Barthes e Freud. A experiência de cada um diante de certas criações é aqui repensada, levando-se em conta não apenas o que afirmam sobre elas, mas também o que negam, pois aí entram em jogo “efeitos do inconsciente”. Merece ainda reflexão a necessária passagem dos elos de identificação das leituras iniciais, relativas a qualquer obra, ao necessário distanciamento crítico das posteriores.
Palavras-chave: Autor, Desejo, Efeitos do inconsciente, Leitor, Obra literária.
ABSTRACT
This essay is about the mirror-image relations found among the author, the reader and the literary work, considering as their fundamental aspects the instincts (drives) and desire, theories which are discussed by Freud and his followers. In this essay, the established links are based on literary texts and statements made by some authors about what they wrote and read, and among them are: Clarice Lispector, Julio Cortázar, Graciliano Ramos, Roland Barthes and Freud. Their experiences concerning some of their creations were re-examined taking into consideration not only what they say but also what they deny about them once it is in this process that the play with the “unconscious effect” takes place. Some reflections were also made in relation to the necessary identification links found in the first readings, related to any literary work, and to the necessary distance that the subsequent critical readings should keep.
Keywords: Author, Desire, Effects of the unconscious, Reader, Literary work.
O tema proposto revela uma das possíveis trocas entre dois campos culturais que, embora guardem suas especificidades, efetivam conexões, uma vez que, no ato da criação literária, estão em jogo sujeitos, desejo e pulsões indestrutíveis (vida/morte) – aspectos imprescindíveis tanto para o autor e seu leitor, quanto para a experiência psicanalítica. Cabe assim, no exercício da interpretação literária, tentar compreender certos traços do desejo e da pulsão, conceitos bastante complexos e discutíveis ao longo da história da psicanálise.
Em termos amplos, o primeiro é empregado igualmente em outros setores como a filosofia (de Spinoza a Hegel), comportando várias acepções – necessidade, apetite, atração sexual ou espiritual, tendência etc. Em Freud, o desejo se restringe à teoria do inconsciente, persegue um objeto perdido e se relaciona com as noções de sonho, recalque, fantasma (o “outro imaginário”, conforme Lacan). Insistente, sempre em busca de realização, configura-se distinto da necessidade (fome, sede) e da demanda amorosa. Seus vínculos com a palavra permitem a Freud chegar a um procedimento básico da psicanálise: a associação livre, ponte de acesso ao saber inconsciente.
Quanto à pulsão, também presente na psiquiatria e na filosofia (Nietzsche), será observada a partir do texto freudiano e de sua tradução – trieb, em alemão, é diferente de instinto, mais adequado ao comportamento animal (Hanns, 1986) –, acentuando-se seus elos com o psiquismo humano. Fundamental para o pensamento psicanalítico, pode ser entendida como uma descarga energética cuja “fonte se encontra na atividade motora do organismo e do funcionamento psíquico inconsciente do homem”. Não se confunde com a necessidade e, para Lacan, constitui “um conceito que articula significante e corpo”. Sua satisfação se encontra no próprio circuito pulsional, isto é, na realização do trajeto circular cujo fecho retorna ao “ponto de partida”. Descontínua, circular, sem objeto concreto pela impossibilidade de que este seja representado, a pulsão se caracteriza particularmente pelo “vaivém” em que se estrutura (Lacan, 1986).
No entanto, o objetivo aqui não é descrever os tempos de seu percurso ou a trajetória lacaniana desde a sistematização de Freud: longa elaboração, conhecida há mais de um século. Cumpre apenas lembrá-la, assinalando seja a contribuição de Lacan, segundo a qual o surgimento do “sujeito da pulsão se articula ao sujeito inconsciente” (Lacan, 1986), seja sua recusa ao dualismo pulsão de morte / pulsão de vida, proposto por Freud, fazendo prevalecer a idéia de que vida e morte constituem elementos básicos de toda pulsão, seja a introdução do olhar e da voz como pulsões parciais – algo importante não apenas para a psicanálise, mas também para as relações entre a literatura e o desejo, considerando que o trabalho literário tanto se apóia neste último, quanto o transfigura graças à criação verbal.
Diferentemente do saber científico em geral, a criação literária e os aspectos psicanalíticos vão muito além da “materialidade” do objeto, em busca de um sujeito que inscreva esse objeto em relações simbólicas. Assim, a psicanálise, por meio do silêncio e de pontuações, constitui um trabalho de escuta e expectativa da elaboração de palavras e imagens, visando ao desejo, ao sujeito marcado pelo movimento pulsional, à verdade singular e ao sentido imaginário para a própria vida, ignorando a regularidade do tempo cronológico.
Sem esquecer o papel da tradição, a crítica literária focaliza igualmente traços semelhantes ao visar articulações verbais, singularidade, desejo e efeitos de sentido poético/ficcional no objeto analisado. A presença do desejo como algo “capturado”, pois, embora atuante, consta dissimulado no texto, não deve ser descartada. Ao contrário, configura-se como um dos pilares da enigmática aliança entre criador, texto e leitor; ou, em uma palavra, entre sujeitos (incluindo, então, o inconsciente).
Partindo do literário, um exemplo ardiloso e movediço (dois adjetivos adequados a qualquer relato pessoal), porém bastante expressivo, ocorre em “A explicação inútil”, no livro A legião estrangeira (1964), de Clarice Lispector. Reunindo lembranças sobre sua maneira de compor o livro Laços de família (1978), ela declara ser difícil recordar “como e por que escreveu um conto ou romance”, mas que alguma coisa sempre é possível tentar reconstituir, sublinhando um aspecto básico para a produção textual “acabada”, a saber, a dúvida concernente a sua gênese. Contudo, interessam as notas a respeito dos textos “Amor”, “A imitação da rosa” e “Feliz aniversário” (Lispector, 1964, respectivamente p. 174, 175, 173), pois a autora trata de seus liames com cada narrativa, revelando afetos e imprecisões que permaneceram como restos mnêmicos de dois momentos, o da escrita e o da leitura.
Em “Amor”, Clarice evoca exatamente tais momentos, ressaltando os vários elementos componentes do literário – autor/texto/leitor – nele incorporados. Em linhas gerais, o conto narra um dia de uma dona de casa que, indo às compras, vê, do bonde, um cego mascando chiclete. Impressiona-se, passa de seu ponto, descendo perto do Jardim Botânico, onde entra e re-descobre a vida, oscilante entre a beleza, o enjôo e o inusitado. Na confluência do fascínio e da náusea, aflora o belo à maneira de um relance a ocultar a “morte”, metaforicamente instaurada na sujeição a seu “destino de mulher”, abafado pela repetição do enfadonho cotidiano de mãe e esposa. Aliás, a lembrança do tédio de Emma Bovary de Flaubert e a visão insistente de um cego a transtorná-la, sutilmente, parecem aqui ecoar, inserindo o texto em um diálogo mais abrangente a pedir, sem dúvida, outro viés de leitura, ancorado na perspectiva comparativista.
Da fase da criação, Clarice recorda a inesperada intensidade com que “cai” com sua criatura, no Jardim Botânico, a ponto de ter que fazer a própria “personagem chamar o guarda para abrir os portões já fechado”, escapando do risco de passar a morar ali. Em seguida, rememora a escuta de sua história, lida por um amigo, com o intento de criticá-la e, ao ouvi-la “em voz humana e familiar”, literalmente tem “a impressão de que só naquele instante ela (a história) nascia, e nascia já feita, como criança nasce”.
“Este foi o melhor momento de todos”, confessa: “o conto ali me foi dado, e eu o recebi, ou ali eu o dei e ele foi recebido, ou as duas coisas que são uma só”. No depoimento, vislumbra-se um elemento chave do ato criador, retomado em A hora da estrela como suporte composicional: o domínio sobre o que escreve não é inteiro. A personagem, ou seja, a palavra, parece guiar a autora pelos meandros da ficção e o processo discursivo dirige, assim, a mão que o elabora.
E é ainda Clarice quem o afirma, numa passagem referente à distância e ao estranhamento existentes entre ela e o texto concluído. “Não se trata de transe”, frisa, mas “a concentração no escrever parece tirar a consciência do que não tenha sido o escrever propriamente dito” (Lispector, 1964, p. 172-173). Sem esquecer o logro de qualquer relato, em termos psicanalíticos, as produções imaginárias não se desvinculam da função simbólica e a situação do sujeito/criador se caracteriza por seu lugar no mundo da palavra.
Contudo, o trabalho findo renasce no olhar e na voz do “outro” de modo distinto, pois “ler bem” já pode constituir interpretação e, no caso, a leitura do amigo se faz com vistas à crítica. A cadeia ganha, então, novo sujeito, consignando à obra seu valor social. Ao comentar a própria ficção, literariamente, a autora pontua a troca indispensável entre sujeitos, o dom e a recepção, no espaço de encontro em que ressoam ignorados desejos, pulsões e, portanto, “efeitos” do inconsciente: o texto.
Se no campo escópico, conforme alerta Lacan, centrado na pintura, “há o olhar”, isto é, as coisas nos olham e nós as vemos (Lacan,1973), algo análogo ocorre com essa “superfície de ilusão”, construída pela tessitura de fios propiciadores de múltiplas significações. A obra se torna especular em relação a desejos, Clarice diz só se reconhecer nela em um tempo posterior, quando “despegada” da escritura, já estranha e alheia à fase em que a engendrou.
Na declaração, a autora toca um aspecto básico para a psicanálise: analogicamente, a leitura (bem como a análise no divã) pode comportar um “só depois”, isto é, vivências, impressões, traços mnêmicos são reconfigurados em função de experiências atuais, alcançando novos sentidos e “eficacidade psíquica”. O melhor momento de todos se concretiza, segundo ela, a posteriori, cabendo a pergunta: ouvir a narrativa não lhe teria trazido uma espécie de “apaziguamento do desejo”, obtido, em parte, pela mediação do leitor e de um possível sentido à obra, desconhecido no tempo de sua fatura? E, nessa ciranda, não se vislumbraria a reduplicação de sentidos da criação – tão desejada pelo criador? A perda do domínio sobre a produção é compensada por múltiplas e diversas fantasias, despertadas nos semelhantes, responsáveis pela longa cadeia de sensações e prazeres jamais sabidos.
Em duas proposições psicanalíticas, Freud considera que o artista dá forma aos próprios fantasmas por meio de imagens preciosas, conciliando os princípios de prazer e realidade (Freud, 1911/1985a), e atenua o caráter egoísta dos devaneios individuais graças ao “prazer puramente formal” – prazer preliminar ou prêmio de sedução. Assim, ele parece pensar a arte como expressão interior do artista e a “forma” seu veículo para provocar “a liberação de um gozo superior” diante da representação e do alívio de nossas tensões (Freud, 1900/1976a).
Embora algumas objeções possam ser feitas, é preciso levar em conta a posição específica de Freud. Mais atraído pelo conteúdo das obras e respeitando os “efeitos” estéticos no receptor, o mestre de Viena desconfia dos limites da psicanálise quanto à apreensão da “forma”. Se não alcança deixar claro o que seria tal “gozo”, nem as “fronteiras psíquicas bem mais profundas” de onde proviria (Freud, 1900/1976a), sugere uma baliza epistemológica concernente à própria interpretação da arte. Em um ensaio de 1914, “Le Moïse de Michel-Ange”, reitera tanto o problema da obscuridade dos efeitos, provocados pela obra estética no receptor, como a falta de compreensão que o inquieta diante das “técnicas” empregadas pelo artista.
Em outros termos, as reflexões freudianas mostramse vagas e discutíveis em certas passagens, no entanto já se visualizam, em embrião, questões desenvolvidas por Lacan. Ao escolher a pintura e o “dar-a-ver” que ela nos oferece, o estudioso francês estabelece liames entre um quadro, o desejo de contemplá-lo e o apaziguamento do receptor ao fazê-lo (Lacan, 1973). Guardadas as diferenças de tempo e contexto cultural, aí estaria o “alívio” mencionado por Freud (a “catarse” de Aristóteles, vista sob prisma distinto?) que, ao insistir na atração pelo conteúdo da obra, deixa escapar seus elos indissociáveis com a forma, ainda que confesse a dificuldade de apreendê-la, como psicanalista.
Paradoxalmente, ao trabalhar os chistes (Freud, 1905/1976b), não efetua a separação, buscando nos jogos verbais a sugestão de “sentidos”. Basta citar o famoso exemplo “familionariamente”, no qual a palavra compósita (familiar e milionário) surge num fragmento de Imagens de viagem, de Heine. Tratado pelo riquíssimo barão de Rothschild de “igual para igual”, uma personagem pobre produz a fala condensadora, revelando o que tentava censurar: era recebido “familiarmente”, só na medida do que é possível a um “milionário” fazê-lo (Freud, 1905/1976b).
Ao analisar essa formação substitutiva – analogicamente, “o efeito do inconsciente”, Freud se mostra sensível à forma que nega entender, enfocando a divisão da palavra e suas implicações. Logo, o problema parece centrarse na procura e interesse do momento: ao construir elaborações discursivas funcionais para seus estudos, a literatura pode ser respeitada parcial (conteúdo apenas) ou mais integralmente (forma/conteúdo), de acordo com o objeto enfocado ou com seu receptor.
Insistindo na questão do literário, percebe-se que o psicanalista fragmenta sua concepção, esboçando impressões importantes de acordo com a demanda teórica das próprias pesquisas. Desde 1895, em Études sur l’hystérie, considera que as histórias de suas pacientes podem ser lidas como “romances” e se espanta que não sejam levadas “a sério” pela ciência. Sem dúvida, merece destaque o fato de pensar esses relatos clínicos como forma narrativa e, ainda, reiterar que as cenas contadas não eram “falsas”, estabelecendo ligações complexas entre o “desejo e a realidade” – ligações recobradas por seus seguidores, responsáveis, em grande parte, pela renomada “fórmula” lacaniana: “a verdade tem estrutura de ficção” (Lacan, 1973).
Exatamente o que faz Clarice nos depoimentos sobre Laços de família: sua “fala literária” dá à verdade das declarações a forma de ficção. E o leitor, curioso pela gênese de um texto, acaba deleitado com outro, indeciso entre a verdade e o fantasma (o da autora e o seu). Algo da primeira surge ora na entrevista, ora nos contos e o segundo segue processo análogo; seus efeitos se manifestam na escuta ou na leitura em foco.
Com alguma diferença, o processo se reitera na “explicação” de “Feliz aniversário”, conto que gira em torno da festa de 89 anos de uma matriarca. Os vários membros da família fingem alegria, escondendo o temor de serem obrigados, eventualmente, a cuidar da “velha” – conforme a designam. Clarice afirma ter esboçado, inicialmente, algumas linhas sobre impressões de uma festa qualquer. Anos mais tarde, ao deparar com suas anotações, a história nasce, embora nada do que escrevera tenha acontecido. Tempos depois, um amigo lhe pergunta de quem era aquela avó e ela responde: “... era a avó dos outros”! Passados dois dias, “a verdadeira resposta” advém “espontânea”: a avó era dela mesma e só a conhecera, na infância, por meio de um retrato.
Resposta “verdadeira” e “espontânea”... A lembrança, despertada pela questão do outro, ganha elaboração verbal, obrigando o leitor a refletir sobre o que a autora não diz. A avó era tanto sua quanto dos outros. A fotografia surge num relance mnêmico (pessoal), aliando-se à experiência alheia, afetiva e social – única forma de a autora criar uma personagem avó, visto não ter conhecido a sua. A condensação sustenta o perfil da matriarca. Seu tratamento denuncia, inclusive, vivências e postura de uma família, carioca e pequeno-burguesa, frente a um ser que deixou de produzir no mundo do capital, tornando-se um fardo a carregar. O psíquico e o social se entrecruzam, sem que Clarice o sublinhe, mas ela intui sempre a ação do cultural. Veja-se a recordação que lhe fica de “A imitação da rosa”.
Nesse conto, diversos índices de sua construção surgem num esclarecimento curto e fragmentário. De início, a autora menciona ter nele inserido resquícios do cotidiano, impressões: uma vaga notícia de doença, rosas enviadas por alguém e repartidas com uma amiga ou a “flor como constante na vida de todos”, acontecimentos que ela não sabe precisar, “caldo de cultura de qualquer história”, além do tom monótono, da agradável “repetição /.../ cantilena enjoada” no mesmo lugar a “cavar pouco a pouco” e a dizer alguma coisa.
Especificamente na certeza de “que não sabe” e no gosto intrigante da “repetição” ocultam-se efeitos do inconsciente e rastros do desejo. Ora, as marcas do dia, semelhantes aos restos diurnos dos sonhos, sustentam o ato inventivo, paralelamente a algo anterior, mais forte e inexplicável: a repetição agradável, representada na narrativa pelo “tom monótono”, junto à confissão de “coisas” ignoradas também pertencentes à cultura – aspecto sempre atuante na escrita. Tais dados assinalam os desdobramentos pretéritos e a transfiguração do presente num conto cujo eixo é, paradoxalmente, o temeroso ato de repetir.
Apoiada em ditos truncados, lacunas, lembranças de um passado recente, preenchido por clínica, médico e enfermeiras, a escritura vai construindo Laura, a personagem principal, que se percebe presa a um vertiginoso retorno de algo (“sintoma”?) indizível, algo que acreditava desaparecido. Por meio da repetição, desencadeada graças à visualização de belas rosas na sala, voltam traços desestruturantes para o mundo que a circunda, enquanto se veste e aguarda a chegada do marido, uma vez que ambos devem ir a um jantar.
Sempre em torno da preparação – jamais concretizada – e da espera, resolve enviar as flores, que queria para si, à amiga-anfitriã. No entanto, mesmo ausentes, as rosas permanecem como palavra e marca metafórica da própria “ausência” de Laura, alheia a seu entorno. Nessa cena, reaparece o já vivido outrora e negado no momento, pois visto como “doença” pelo marido – representante de um mundo que crê na “normalidade”. Nada impede, porém, o retorno da perturbadora repetição, inscrita na mulher que, sentada na sala, se mostra “de novo alerta e tranqüila como num trem. Que já partira”. A metáfora da partida sugere a entrega imperiosa e sem volta da personagem à outra lógica, tão rechaçada socialmente.
Logo, a confissão da autora e a narrativa comportam um vago “não dito”, ancorado em insinuações que ganham formas propiciadoras de pactos distintos com o leitor. Persiste a idéia segundo a qual “a verdade se estrutura como ficção”, no sentido de que a primeira não se encontra apenas no factual, mas em “sua propriedade narrativa”. E aqui entra o autor, pois, ao transformar “vivências” ou “fantasias” em discurso artisticamente ordenado, a linguagem se oferece como o elo possível entre ele e o texto e com ela aflora toda a tradição do dizer. O desejo – sempre recaindo imaginariamente sobre o “outro” – pode seguir as trilhas da tradição ou subvertê-la e as ficções acabam parte de um modo peculiar de realidade.
Para corroborar a entrevista de Clarice, vale lembrar a posição de vários escritores. Dentre eles, Julio Cortázar que, considerando Casa tomada um de seus mais inquietantes relatos, responde em uma entrevista:
Ese cuento es la escritura exacta de uma pesadilla que tuve.
Soné el cuento – con la diferencia de que no había allí la pareja de hermanos; yo estaba suelo – la típica pesadilla donde usted empieza a tener miedo de algo innombrable, que nunca llega a saber lo que es porque el terror es tan grande que se despierta antes de la revelación.
En ese caso se trataba de unos ruídos confusos que me obligaban a mí a tirarme contra las puertas, a cerralas y a ir retrocediendo mientras los ruídos seguían avanzando y algo tomaba la casa.
Es curioso como lo recuerdo: era pleno verano en mí casa de Villa del Parque en Buenos Aires; me desperté bañado en sudor, desesperado ya, frente a esa cosa abominable, y me fui directamente a la máquina y en tres horas el cuento estaba escrito. Es el paso directo del sueño a la escritura.
Y entonces creo que el interés que tiene la gente con ese cuento tiene que ver, no solamente con el placer literario que pueda producirle, sino con algo que toca sus propias experiencias profundas (Bermejo, 1978, p. 139-40).
A narrativa, constante de Bestiario (1972), enfoca um casal de irmãos que vive em uma casa, construída com muitos cômodos. Celibatários e totalmente alheios ao mundo exterior, os dois se dedicam a tarefas domésticas, escolhendo por lazer colecionar selos antigos (ele) e tecer e destecer – às ocultas – lãs (ela). No entanto, os hábitos automatizados são rompidos pelo súbito aparecimento de estranhos sons, em espaços diferentes da casa, que vai sendo fechada pouco a pouco. Com a chegada dos ruídos ao saguão, as personagens acabam na rua, perdendo o direito ao legado de seus ancestrais, já que nunca tentaram descobrir o motivo do aparecimento dos sons.
Sem analisar o conto em si, pois aqui interessa a palavra de Cortázar como leitor de sua criação, cabe retomar a entrevista, na qual ele declara saber que a questão do incesto se impõe textualmente e a expressão “matrimonio de hermanos”, empregada com o intento de caracterizar as personagens, saiu, com todas as letras, “en el curso de la escritura” (Bermejo, 1978, p. 37). No entanto, a expressão vai surpreendê-lo no instante da releitura, permanecendo inalterada porque lhe parece lógica no interior da narrativa.
E mais, além de confessar sua percepção como leitor, ele menciona igualmente que a recorrência do tema do incesto se constata, sobretudo, em seus primeiros relatos, e sua presença em Casa tomada ocorreu “totalmente inconsciente de lo que escribía” (Bermejo, 1978, p. 37). A comparação de uma série de textos pela crítica revelou-lhe “a noción de lo incestuoso de manera más o menos explícita”, no conjunto de sua obra, obrigando-o “a mirar más cerca” de si mesmo (Bermejo, 1978, p. 36-37).
Logo, a palavra tanto pode conduzir o autor no ato da escrita, quanto descortinar algo desconhecido a respeito dele próprio na fase da leitura. No caso de Cortázar, à semelhança de uma “mise en abyme”, a ficção onírica ganha forma em outra, o conto. Por sua vez, a crítica o ajuda a deslocar-se para novos espaços: de criador torna-se leitor crítico, ao considerar, em nível mais amplo, as constantes de sua produção e, em nível menor, a função que ela pode ter como trabalho especular de afetos, desejos e angústias pessoais. Em suma, Julio Cortázar assume diferentes posições diante de sua ficção: é autor, leitor e crítico.
Aí, novamente, a entrevista evoca a psicanálise, já que ressalta um dado recorrente das reflexões lacanianas: a presença da “matéria” (palavra, tinta, nota musical etc.) atuando no criador, isto é, a interação incessante entre seu Imaginário e o Simbólico no qual se insere, incluindo também história e tradição. Na literatura, cabe ao verbo comportálos. Análogas, as falas de Clarice e Cortázar destacam aspectos dessa lúdica interação.
Autores, ambos se deixam levar intensamente pela palavra; receptores, traços de seu desejo ressoam no olhar e na voz, alheia e familiar, do leitor. E, ainda, descobrem a posteriori um inesperado sentido para suas composições. Conforme se vê, sobre o texto “Amor”, a leitura que o amigo realiza permite a Clarice confessar: “o conto ali me foi dado/.../ ou ali eu o dei/.../”. Também o escritor “argentino” sofre o mesmo processo, instaurando-se uma convergência entre ambos e Lacan: de modo claro, o “dar a ver” se coloca face a face com o “receber” da contemplação (pontuada pelo psicanalista) na qual se manifesta o desejo do Outro.
Embora inapreensível, o desejo do autor se “conforma” nessa reestruturação de experiências em que seus fantasmas atuam ao lado da (e na) invenção verbal. Cabe recordar os famosos versos de “Autopsicobiografia” de Fernando Pessoa e suas implicações de sentido:
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a sentir que é dor
A dor que deveras sente.
(Pessoa, 1969, p.164).
Um dos elementos compositivos a merecer destaque nos versos é a ficção da dor, ponto máximo da ordem simbólica e imaginária que não só se oferece ao leitor, mas incorpora ainda o desejo do autor – nesse momento, duplo e cúmplice à distância. Por sua vez, passando pela cultura, tal desejo se “insere” em uma espécie de trans-subjetividade cujo traço diferenciador (afetos?, estilo?, escrita?) estaria no rearranjo dos dados colhidos, seguramente filtrados, matizados e deslocados pelo sujeito que cria. Aqui, o desejo pode ser histórico, sem se submeter à História.
Indestrutível, ele não busca propriamente ser saciado, mas a prática complexa de seu “exercício”, enquanto força propulsora da mão que escreve. O “exercício” do desejo estaria ligado às escolhas (confessas ou não, sobre as quais tem controle ou não) léxicas, sintáticas, imagéticas, referentes ao renomado modo grego do fazer poético (poiesis). Nessa direção, seus vínculos se estendem ao agir, ao participar da criação do mundo; em síntese, à pulsão de vida.
Merece relevância, igualmente, uma atitude oposta de certos escritores diante de leitores e críticos, qual seja, a negação (Freud, 1925/1985b) acerca de certas afirmações sobre a própria obra. Dentre tantos, vale mencionar Graciliano Ramos e sua recusa em admitir um diálogo com Dostoievski. Em 12 de novembro de 1945, ele escreve a Antonio Candido, avaliando as considerações do crítico a respeito de seu Angústia:
Onde as nossas opiniões coincidem é no julgamento de Angústia. Sempre achei absurdos os elogios a este livro, e alguns, verdadeiros disparates, me exasperaram, pois nunca tive semelhança com Dostoievski nem com outros gigantes. O que sou é uma espécie de Fabiano, e seria Fabiano completo se a seca houvesse destruído a minha gente, como V. bem reconhece (Candido, 1999, p. 8).
No entanto, em 15 de julho de 1945, no texto “O fator econômico no romance brasileiro” (Ramos, 1962, p.257), Graciliano cita uma passagem de Crime e castigo, entusiasmado com um pesadelo – “verdadeira maravilha” – de uma personagem que se mata em seguida. Ora, Angústia também apresenta, no fim, páginas de terríveis devaneios criados pela personagem central, Luís da Silva. E, mais, em artigo posterior, constante de Ficção e confissão, o próprio Antonio Candido compara o assassinato que esse protagonista comete, eliminando seu rival (espécie de duplo odiado e invejado), “como a projeção de Goliadkin no romance de Dostoievski (“O duplo”)”.
Conforme se nota, Graciliano declara ter lido o autor russo, contudo, inicialmente, nega ressonâncias da leitura em suas criações, só reconsiderando tal postura às vésperas da morte, segundo depoimento do filho, Ricardo Ramos. No fim, o autor reconhecera publicamente ter sofrido influência de Dostoievski, Tolstoi, Balzac, Zola “e também seu permanente interesse pela literatura russa” (Garbuglio, 1987, p. 17). Curiosamente, no texto acima referido (1955), a posição de Antonio Candido também se alterara com a percepção de ecos dialógicos entre o autor brasileiro e o russo (Antonio Candido, 1999, p. 82). Crítica e confissão – embora em momentos distintos – parecem, de novo, confirmar-se.
Interessa ainda observar, aqui, o outro lado da moeda, o do intérprete/leitor. Já assinalado em Clarice e Cortázar, mais ligados à elaboração ficcional, esse lado recebe, agora, um olhar mais voltado para o receptor propriamente dito. Sujeito dividido e submetido à linguagem, tal leitor se depara não apenas com “resíduos indecifráveis” do literário, “nós” obscuros que possibilitam a ilusão (Assoun, 1996), mas também com os limites das abordagens críticas: questões fulcrais para a psicanálise e a literatura, campos de reconhecimento dos limites de qualquer sujeito.
Da perspectiva do leitor, novo relato pode assinalar sua vinculação com o texto. Ao dar a aula inaugural no Colégio de França, em janeiro de 1977, Roland Barthes conta as impressões sobre a leitura de A montanha mágica de Thomas Mann, selecionando, entre tantos, o tema específico da tuberculose, doença que viveu por volta de 1942, muito semelhante à do livro. Ao associar as duas épocas, afirma que elas “se confundiam”, afastadas de seu próprio presente.
O espelhamento leva-o a descobrir “com estupefação” que seu corpo era histórico, ou seja, contemporâneo ao da personagem da obra, ainda que não tivesse nascido, como se seu corpo fosse mais velho que ele e a impressão da presença de modos sociais, impostos pela vida, se reavivasse por meio da leitura. Barthes percebe as dificuldades, quase intransponíveis, de separar a vida acadêmica (autor/leitor) da pessoal, no entanto constata que a incorporação de ambas pode propiciar novas obras, tornando inesgotável a rede autor/produção/leitor. Perspicaz, ele assinala o paradoxo da existência do homem que se identifica com o tempo pretérito graças à obra artística, todavia precisa considerar o presente e renascer, tendo, entre diversos parâmetros, o “caldo da cultura”, no caso, o legado de escritores (Michelet e Dante) e o nome de uma obra:
se quero viver, devo esquecer que meu corpo é histórico, devo lançar-me na ilusão de que sou contemporâneo dos jovens corpos presentes, e não de meu próprio corpo, passado. Em síntese, periodicamente devo renascer, fazer-me mais jovem do que sou. Com cinqüenta e um anos, Michelet começava sua vita nuova: nova obra, novo amor. Mais idoso do que ele (compreende-se que esse paralelo é de afeição), eu também entro numa vita nuova... (Barthes, 1980, p. 46).
Em se tratando de vínculos entre leitor e obra, cabe retomar uma passagem peculiar que tem como “personagem” o próprio Freud e sua análise do Rei Lear, de Shakespeare – talvez a mais feliz, do ponto de vista literário, dentre as escritas por ele. Ao enfocar o tema dos três cofres, constante igualmente do Mercador de Veneza, opta pelas questões de amor e morte, ancorando-se nas tradições mítica e feérica (Freud, 1976a). Às perguntas referentes à falta de análise sobre os “desejos edípicos” de Lear – uma vez que sua preocupação com os textos literários ligava-se, em grande parte, a suas teorias – responde que outros a farão.
Porém acaba confessando a Breuer ter apelidado a noiva, Marta, de Cordélia e conta a Ferenczi ter esboçado um paralelo entre a filha Anna e a preferida de Lear. No artigo “Lear ou les voi(es)x de la nature” (1971b), André Green aponta o problema, insinuando certo ocultamento de Freud dos próprios “fantasmas” e destaca sua inclinação em tratar o complexo de Édipo do lado da criança e não do pai. Peter Gay, em seu Freud: Uma vida para nosso tempo (1988/1989), confirma a declaração a Ferenczi, oferecendo um novo dado: o tema da filha mais nova sempre interessara ao psicanalista vienense, ampliando as reflexões relativas ao papel das mulheres na vida e na morte de um homem.
Logo, fica a questão: por que um estudioso, interessado na comprovação de suas teorias, afasta-se de uma temática tão relevante para seu campo? Paradoxalmente, se a atração pelo texto shakespeariano o impele a escrever, o olhar não se centra nas ligações edípicas entre Lear e Cordélia, desviando-se para outro lugar e tema: a morte, que também o assombrava na época. À exposição do medo de morrer seria mais forte que os inquietantes desejos edípicos? Ou estaria a serviço da camuflagem do que ele teme trazer à luz?
Em síntese, no leitor o desejo se instaura de modo variado, seja por certa inserção da obra em sua vida, seja pela magia verbal que, produto de uma rede complexa, prende e excita o desejo da leitura. Assim como no desejo do autor está o leitor, este se espelha, muitas vezes, naquele, isto é, no ato da leitura e no espaço em que ambos se encontram, para tal autor só um determinado leitor: um leitor “como eu”.
Eu o abarco, eu o compreendo, eu o interpreto ou o ignoro – como não ver aí intuito crítico, talvez dos mais perversos? Para além do gozo (sublinharia Barthes), aflora a significação perspicaz que torna funcional e socialmente aceitável o intrigante desejo de ser o “outro”: “A Borges, lo admiro, a Ramón Gómes de La Serna, lo quiero”, dizia Cortázar a respeito dos autores de sua preferência. Se a admiração é reveladora, o querer parece desentranhar ângulos inusitados de cada sujeito.
Ao longo do artigo, em diferentes situações, Clarice, Cortázar, Barthes e Freud tanto mostram faces fundamentais de seus elos com textos próprios e alheios, como se deslocam, assumindo posições que lhes permitem perceber outros olhares. Ora interligados a seus personagens, numa espécie de unidade (ilusória?) indestrutível, ora evocando relances resguardados do cotidiano, ora se apropriando da cultura ou cenas de outrem, todos pressentem uma face de suas criações a ser desvelada.
Clarice transfigura literariamente o vivido, sabendose dividida pelo jogo sujeito/objeto, consciente/inconsciente e buscando aproveitar do ponto de vista do leitor e das experiências particulares como leitora. Cortázar assinala o lúdico trabalho de transformar cenas imagéticas (aqui, a onírica) em verbo ficcional e, paralelamente, desenvolve tendências críticas, graças a especialistas que evidenciam constantes de sua produção e, numa cadeia contínua, levam-no a descobrir traços reprimidos de seu universo pessoal.
Processo análogo sofrem Barthes e Freud. Enquanto o primeiro se expõe e elabora “descobertas”, escrevendo uma Aula para terceiros que, ao mesmo tempo, também lhe ensina, sublinhando alguns de seus afetos e quereres, o mestre vienense esconde (sabendo-o ou não) seu desejo atrás de uma análise mais literária do que psicanalítica. Todavia, os leitores atentos cobram revelações e discretamente, ele confessa a amigos o que antes evitara. Em todos, o papel do leitor, alguém que observa e pontua, se constitui fundamental. Curiosamente, seja ele um desconhecido, seja o próprio autor em outra posição, é o olhar distanciado de um terceiro que o obriga a relembrar e a reelaborar... Conforme se vê, impossível descobrir os laços entre autor/obra/leitor, sem as associações dos envolvidos na ciranda. Aliás, a importância do problema para a crítica textual evoca a afirmação de Clarice sobre o que lhe pedem a respeito de Laços de família: “explicação inútil”.
Vale reiterar que não há aqui preocupação com a análise do objeto literário como tal, mas, sim, com aspectos de sua gênese e recepção. Tais aspectos, sugestivos da presença de procedimentos psíquicos “diluídos” na escritura, concernem ao desejo e a “efeitos” do inconsciente do autor e leitor que afloram sub-repticiamente e terminam por desvelar o que pensávamos não saber sobre nós.
Da visada crítica, esses procedimentos parecem auxiliar pouco na apreensão da obra, no entanto, é preciso reconhecer a evidência de uma função a mais da literatura: além da percepção de marcas de nós mesmos na superfície especular do texto, tal perspectiva assinala a necessária passagem da primeira leitura – dirigida pela curiosidade, traços identificatórios, íntimos, inusitados, denegações, desejos inconfessáveis etc. – para o distanciamento crítico imbuído de outros saberes, como meio de praticar o diálogo com o objeto enfocado, instaurando, paralelamente à nossa visão pessoal e lacunar, a virtual pluralidade de sentidos da invenção literária.
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Endereço para correspondência
Cleusa Rios Pinheiro Passos
Rua Machado Pedrosa, 368 – Jardim São Paulo
02045-010 – São Paulo – SP
Tel.: 11 6977-9762
E-mail: clerios@uol.com.br
Recebido: 27/03/2007
Aceito: 30/03/2007
* Professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada de Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.