SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.31 número47Em que língua teria Édipo conversado com a esfinge?Quem é estrangeiro no mundo dos homens? índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) v.31 n.47 São Paulo dez. 2008

 

EM PAUTA - ESTRANGEIRO

 

Cinema, psicanálise; espectador, analista: campo, contracampo*

 

Cinema, psychoanalysis; spectator, analyst: shot, countershot

 

 

Danilo Sergio Ide**

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Freud (1914/1996d) analisa o Moisés de Michelangelo seguindo a regra fundamental da psicanálise, tomada, porém, como regra de recepção: a obra é analisada segundo a mesma atenção dedicada pelo analista a um paciente. Nesse caso, obra e paciente tornam-se contrapontos: “o paciente como obra de arte” (Frayze-Pereira, 2004). Entretanto, na aproximação entre cinema e psicanálise, busca-se comumente o paralelo entre espectador e paciente. Ambos se assemelham pelo fato de estarem submetidos a regras. Regra de produção, proposta pelo analista ao paciente: tudo merece ser dito. Regra de recepção, proposta pelo diretor ao espectador: tudo merece ser visto. Entretanto, o analista também está submetido a uma regra de recepção: tudo merece ser ouvido. No cinema, melhor seria contrapor dois planos, um do espectador e outro do analista, montados como campo e contracampo.

Palavras-chave: Cinema, Psicanálise.


ABSTRACT

Freud (1914/1996d) analyses the Moses of Michelangelo following the fundamental rule of psychoanalysis, understood, though, as a rule of reception: the work is analysed according to the very attention dedicated by the analyst to a patient. In this case, work and patient become counterpoints to one another: “the patient as a work of art” (Frayze-Pereira, 2004). However for a comparison between cinema and psychoanalysis, one often seeks the parallel between spectator and patient. Both are similar in the sense that they are bound by rules. A rule of production, proposed by the analyst to the patient: everything is worth to be said. A rule of reception, proposed by the director to the spectator: everything is worth to be seen. However, the analyst is under one rule of reception: everything is worth to be heard. On cinema, it would be better a counterpoint between two shots, one of the spectator and the other of the analyst, cut together in shot and countershot.

Keywords: Cinema, Psychoanalysis.


 

 

Atenção flutuante

Nas “Recomendações aos médicos que exercem a Psicanálise”, Freud (1912/1996e) descreve a disposição que o analista deve manter em relação às palavras do paciente: “Ele deve conter todas as influências conscientes da sua capacidade de prestar atenção e abandonar-se inteiramente à ‘memória inconsciente’”. Ou, para dizê-lo puramente em termos técnicos: “Ele deve simplesmente escutar e não se preocupar se está se lembrando de alguma coisa” (p. 126).

Pois assim que alguém deliberadamente concentra bastante a atenção, começa a selecionar o material que lhe é apresentado; um ponto fixar-se-á em sua mente com clareza particular e algum outro será, correspondentemente, negligenciado, e, ao fazer essa seleção, estará seguindo suas expectativas ou inclinações. Isto, contudo, é exatamente o que não deve ser feito (p. 126).

Mas por que evocar a atenção flutuante em um texto sobre cinema?

Justamente em função de uma proximidade entre a atenção flutuante e a atenção dupla exigida pelo cinema, tal como descrita por Walter Benjamin em “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”. Ao mesmo tempo em que dedica toda sua atenção ao filme, a fim de bem assimilá-lo, o espectador ao longo da sessão também acaba se entregando à “memória inconsciente”.

De fato, a sucessão de imagens impede qualquer associação no espírito do espectador. Daí é que vem a sua influência traumatizante; como tudo que choca o filme somente pode ser apreendido mediante um esforço maior de atenção (Benjamin, 1955/1983b, p. 25). (Grifo do autor).

Através do seu efeito de choque, o filme corresponde a essa forma de acolhida [pela seara da diversão]. Se ele deixa em segundo plano o valor de culto da arte, não é apenas porque transforma cada espectador em aficionado, mas porque a atitude desse aficionado não é produto de nenhum esforço de atenção (Benjamin, 1955/1983b, p. 27). (Grifo do autor).

Essa duplicidade é introduzida pela tradução de José Lino Grünewald. O leitor é colocado diante de um cinema exigindo do espectador tanto um esforço maior de atenção, como nenhum esforço de atenção. Em alemão esse desencontro é menos marcado: onde há esforço, lê-se Geistesgegenwart (presença de espírito; sangue-frio) e onde a força se faz pouca ou nenhuma, Aufmerksamkeit (aí, sim, atenção). No primeiro trecho citado, a prontidão para responder a uma situação de choque (sangue-friamente) e no segundo, a distensão.

Mas é importante guardar essa duplicidade lançada pela tradução brasileira. Para compreender melhor o que ela significa, vale a pena recorrer ao texto “O narrador”, pois lá o leitor também encontra a noção de distensão:

Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las (Benjamin, 1936/1983a, p. 205).

Enquanto o narrador desfila suas histórias, o artesão encontra-se entretido em seus afazeres. Tecendo e fiando, aos poucos é apoderado pelo ritmo do trabalho, dando impressão de que a tarefa não lhe exige nenhum esforço de atenção. Está, sim, esquecido da vida, esquecido de si, ou seja, distraído, mas nem por isso perde o fio da meada em seu trabalho e muito menos no acompanhamento da narração, pois nesse estado de distensão/distração (sem tensão, tração sobre si) maior é a capacidade de atenção/atração que dispõe para as narrativas.

No trabalho artesanal há uma distinção entre o trabalho do artesão (voltado ao tecer e fiar) e sua escuta (dirigida ao narrador). No cinema, o que pode ser considerado como parte do trabalho do espectador (voltado à recepção) e sua escuta (dirigida à tela) cobrem o mesmo objeto: o filme, o qual então é perseguido através de uma atenção dupla: uma atenção prestativa e uma atenção por atração:

&– uma atenção cuja presteza, caso não mantida em ritmo, desfaz-se nas associações de idéias que, contrárias à correnteza, seguem inconciliáveis à sucessão de imagens;

&– uma atenção cuja atração está em íntima relação com o estado de esquecimento de si do espectador.

Em ambas as disposições o espectador deve adotar uma postura quase de reverência: ausentando-se na presença do filme; contendo seus pensamentos, contendo a si mesmo. Tanto a atenção dupla descrita por Benjamin como a atenção flutuante de Freud estabelecem um alto grau de exigência, difícil de ser cumprido em sua plenitude.

Na análise essa austeridade impõe-se exatamente porque se coloca como contrapartida a uma regra, igualmente exigente, proposta ao paciente.

 

Regra fundamental da psicanálise

à medida que conta coisas, ocorrer-lhe-ão diversos pensamentos que gostaria de por de lado, por causa de certas críticas e objeções. Ficará tentado a dizer a si mesmo que isto ou aquilo é irrelevante aqui, ou inteiramente sem importância, ou absurdo, de maneira que não há necessidade de dizêlo. Você nunca deve ceder a estas críticas, mas dizê-lo apesar delas &– na verdade, deve dizê-lo exatamente porque sente aversão a fazê-lo. Posteriormente, você descobrirá e aprenderá a compreender a razão para esta exortação, que é realmente a única que tem de seguir (Freud, 1913/1996f, p. 150).

O analista propõe ao paciente que não deixe nada de lado em sua fala. O paciente é levado a compartilhar a suposição de que tudo, mesmo um mínimo detalhe aparentemente desprezível seria digno de atenção e permitiria uma significação. Entretanto, a regra fundamental carrega uma duplicidade, pois se instiga o paciente a associar livremente, também lhe instila uma dúvida:

o que mais limita a confidência do paciente, seu abandono à regra analítica, é a ameaça de que o psicanalista seja, por ele, enganado. ... o paciente pode pensar que o analista será enganado se ele lhe dá certos elementos. Ele retém certos elementos para que o analista não vá muito depressa (Lacan, 1973/1990, p. 221).

Na tentativa de evitar que o analista chegue rapidamente a algumas interpretações, a associação livre é tomada pela seleção do material a ser levado à análise.

No cinema, a seletividade não é uma necessidade que se impõe durante o processo: ela é esperada desde o princípio, visto que nem toda imagem é importante ao diretor para a composição do filme (a seção de cenas deletadas em DVDs posteriormente nos dá acesso a essas imagens não-escolhidas). Ao selecionar seu material, o diretor quer se assegurar das imagens que realmente lhe importam, que realmente merecerão a dedicação do espectador.

Diferentemente da análise, onde há casos em que a produção cessa por completo e o paciente deixa de falar, no cinema, feito o filme, não há motivos para se temer pela produção. No cinema, trata-se, sobretudo, de uma regra fundamental de recepção. É diante de um espectador apresentando- se como analista de escuta seletiva que a regra se arrisca. Comprometida a recepção não há possibilidade do cinema. Quando atravessa o espectador a tentação de dizer a si mesmo que esta ou aquela cena é irrelevante, ou inteiramente sem importância, ou absurda, de maneira que não há necessidade de vê-la, nesse ponto está quebrada a regra. O espectador desliga-se do filme e põe-se prestes a sair da sala de cinema.

Entretanto, uma imagem, uma cena que desponta a princípio sem sentido não inclina o espectador apenas ao desapontamento. Pode levá-lo à interrogação: qual a significação possível desse sem-sentido, disso que parece seguir a lugar nenhum? O que o diretor quis com isso?

Na análise essa interrogação também atravessa o paciente. Entretanto, há uma diferença fundamental, pois, apesar de produzir o próprio objeto de análise, essa posição originária não lhe garante nenhuma força, antes prolonga o desconforto pela produção de algo cujo sentido desconhece. O paciente não sabe ao certo o que produziu. Freud (1940/1996b) buscava justamente esse não-sabido através da regra fundamental: “o que desejamos ouvir de nosso paciente não é apenas o que sabe e esconde de outras pessoas; ele deve dizer-nos também o que não sabe” (pp. 188-189).

Há nisso a expectativa pelo estranhamento, pela alteridade, por um estado alterado do paciente: “Eu disse isso, sim; mas o que eu quis dizer com isso? Provavelmente deve haver alguém capaz de sabê-lo. Haverá um sujeito suposto saber isso tudo. Quem será? Se o analista me propôs essa regra, deve ser porque detém o saber do meu inconsciente”.

 

Sujeito suposto saber

Em alemão a transferência é Übertragung. O verbo tragen significa, entre outras coisas, vestir. Nesse sentido, transferência é uma sobreveste ou mesmo uma ação de travestir alguém. Na análise, o paciente tenta vestir o analista com roupas de outra pessoa, ou seja, ele toma-o por outrem. Na fala logo acima, ele tomou-o pelo próprio sujeito suposto saber.

No cinema, essa transferência é ainda mais irresistível, pois o próprio diretor, ao produzir o objeto a ser analisado, detém um saber sobre o que produz, mesmo quando propõe o não-sentido: “o gesto de desistir do sentido, de desistir do acréscimo é a priori atribuidor de sentido” (Adorno, 1967/1986, p. 105). Essa intimidade entre autor e obra favorece a identificação da origem do filme no diretor. Essa posição originária na criação confere-lhe a posse de um saber prévio: deteria o sentido a priori do filme.

Na análise há um sentido a posteriori: primeiro o paciente diz, depois se verão as significações dessas produções cuja aurora e autoria é incapaz de identificar.

O filme também contém uma posterioridade, pois se coloca como objeto de análise. Na tentativa de retomar o projeto do diretor, os espectadores interpretam um sentido original a partir de rastros do filme. Aos que seguem a regra fundamental de recepção, nada apresentado no filme parece surgir por acaso. Não raro esses espectadores dedicados estabelecem relações não-previstas pelo diretor e atingem uma outra compreensão do filme: esta pode levar o diretor, se dela não discordar, a descobrir uma outra configuração do próprio filme. Seu projeto é então estendido, incorporando não apenas o que foi previamente planejado, mas também o que posteriormente veio a ser apropriado ao filme.

Entre os espectadores, há aqueles que se especializam como analistas de filmes, os críticos, comumente investidos como verdadeiros sujeitos suposto saber o cinema.

Se o supervisor é tomado por sujeito suposto saber a análise, torna-se o contraponto ao crítico de cinema. Entretanto na análise não se trata de saber mais ou menos, saber muito ou pouco. A análise não é uma avaliação de quanto sabe paciente, analista e supervisor.

Mesmo que seja o analista a pessoa a apontar um outro que fala pela fala do paciente, essa alteridade da fala é menos uma posse do analista do que um possível da fala do paciente. A alteridade da fala é indicação de que virá do outro o que designa o eu: virá do exterior o que designa o interior: virá de um forasteiro o que designa as próprias terras. Essa possibilidade é como uma expectativa messiânica, por um outro que está por vir pela fala do paciente: “este outro, ao mesmo tempo íntimo e totalmente estranho, que subverte e, secretamente, sustenta a humanidade dos homens. Benjamin o chama messiânico, para melhor marcar sua alteridade fundadora” (Gagnebin, 1994, p. 129).

Íntimo e estranho: motivos também presentes em Das Unheimliche (Freud, 1919/1996c). O próprio antônimo já anuncia essa duplicidade, pois Heimliche não é apenas o familiar, mas também o escondido, secreto. Algo familiar, algo há muito conhecido não devia ter o que ocultar. Mas heim é o lar e o que se encerra em quatro paredes é o que se oculta aos olhos dos outros. Manter essa propriedade é afastar seus pertences do alcance alheio. A negação Unheimliche então é necessária a fim de exprimir o que é próprio a alguém, mas não foi mantido em segredo de outrem. Isso deixa de ser reconhecido como próprio; torna-se propriedade reconhecida no outro. Unheimliche é a sensação trazida através desse outro que retorna ao eu algo de si mesmo.

O outro não se revela tão outramente como aparentava. O eu não era tão único como se pensava. Talvez o que parecia tanto um não era ainda a forma acabada do próprio eu. E o messias não deixa de aparecer como um outro eu possível.

Há também uma esclarecedora duplicidade em “A dúvida de Cézanne”, as duas vidas, vida criada e vida determinada: “retomada criativa de nós mesmos, a nós mesmos finalmente sempre fiel” (Merleau-Ponty, 1945/1975, p. 125):

&– criada, pois, no imediato da experiência, a criação surge como pura novidade, como puro outro.

&– determinada, pois, quando a memória intervém e retoma o sentido até o momento, toda travessia parece não ter outra solução senão a proporcionada por essa criação, como se isso já estivesse contido desde o começo: da origem ao presente, fielmente sempre eu.

O cinema por vezes se arrasta em disputas sobre quem sabe mais ou menos: o espectador, o crítico ou o diretor? Quem sabe muito ou pouco? Quem sabe mais: o primeiro, a saber, ou o último a saber? Qual possui mais autoridade: quem riu primeiro ou por último? Entretanto, não há nada como a última palavra, senão a última palavra naquele momento. Há ainda um devir de possíveis significações. O que parecia tão definitivo segundo a autoridade do diretor ou do crítico ainda não era toda forma acabada do filme.

Entretanto, essa nova palavra prestes a despontar também deverá pender entre a renovação e a conservação, entre a retomada criativa e a fidelidade, se seu intento é estender ainda mais o acabamento do filme. Mesmo que a nova crítica e o autor se tornem um par em desavença, ela não poderá, contrariada, persegui-lo a fim de derrotá-lo. Na literatura, isso era tomado por Guimarães Rosa como vingança:

Bem, um crítico que não tem o desejo nem a capacidade de completar junto com o autor um determinado livro, que não quer ser intérprete ou intermediário, que não pode ser, porque lhe faltam condições, deveria se abster da crítica. Infelizmente a maior parte deles não faz isso, e por isso acontece que tão poucos deles, geralmente, têm algo a ver com a literatura. O que tal crítico pretende, em resumo, é vingar-se da literatura, ou sabe Deus que motivos o impulsionam. Talvez como passatempo. É um palhaço, ou um assassino. A crítica literária, que deveria ser uma parte da literatura, só tem razão de ser quando aspira a complementar, a preencher, em suma a permitir o acesso à obra. Só muito raramente é assim, e eu lamento, pois uma crítica bem entendida é muito importante para o escritor; ela o auxilia a enfrentar sua solidão. Mas raramente é assim, quase sempre a crítica não tem valor nem interesse, é apenas uma perda de tempo. Uma crítica tal como eu a desejo deixaria de ser crítica no sentido próprio, tanto faz se julga o autor positiva ou negativamente. Deve ser um diálogo entre o intérprete e o autor, uma conversa entre iguais que apenas se servem de meios diferentes. Ela exerce uma função literária indispensável. Em essência, deve ser produtiva e coprodutiva, mesmo no ataque e até no aniquilamento se fosse necessário (Lorenz, 1965/1983, pp. 75-76).

Nessa entrevista concedida ao crítico alemão Günter Lorenz, é importante destacar que não se nota na fala de Guimarães Rosa qualquer defesa da necessidade de um acordo entre autor e crítico. A questão é, sobretudo, auxiliar o escritor a enfrentar sua solidão: essa é a fidelidade que se espera do crítico para com o autor, essa é a política do crítico literário (política entendida como uma medida para a condução da crítica literária).

Na literatura, os diferentes meios da crítica e da criação ao menos se realizam pela escrita. No cinema, a diferença estende-se entre a escrita do crítico e as imagens do diretor. Entretanto, trata-se da mesma política para o crítico de cinema: auxiliar o diretor a enfrentar sua solidão. E não é essa também a política do analista, em auxílio do paciente no enfrentamento de sua solidão?

 

Políticas dos autores

A perversão da noção de autor é incontestavelmente uma herança negativa da Nouvelle Vague. Antes, aqueles que eram considerados autores de filmes eram os roteiristas, uma tradição que vinha da literatura. ... Nós, porém, dissemos: “Não, a direção é o ato fundado e verdadeiramente criador do filme...”. A partir daí, desenvolvemos a política dos autores, que consistia em sustentar o autor, mesmo quando ele era fraco. ... E assim o conceito se perverteu, transformou-se em um culto do autor, e não no de seu trabalho. Então, todo mundo se tornou autor... Acho que quando lançamos a política dos autores, nos enganamos ao privilegiar a palavra “autor” quando, na verdade, era a palavra “política” que deveria ter sido destacada. Pois o verdadeiro objetivo desse conceito não era demonstrar quem faz a direção, mas explicar o que faz a direção (Tirard, 2002/2006, pp. 249-50).

O deslocamento da política para o culto do autor também é observável pela forma com que nos referimos à expressão lançada pela Nouvelle Vague. Ao invés de “política dos autores” dizemos atualmente “cinema de autor”. Ou seja, a palavra “política” apagou-se completamente e a questão é avaliar se um diretor já chegou a condição de autor ou mesmo de mestre. Esse debate acalenta extensas discussões, se um diretor decano já merece o titulo de mestre ou se a incipiente obra de um jovem diretor já permite que o consideremos um verdadeiro autor. Godard por sua vez receberia friamente esse debate. Interessa-lhe pouco saber se um diretor é autor ou não. A partir da entrevista concedida ao cineasta francês Laurent Tirard, podemos extrair algumas questões cinematográficas importantes a Godard: O que há para ser contado? De que maneira contá-lo em um filme? Como tornar esse material interessante? Por que filmá-lo? Por que fazer disso um filme e não outra coisa? Onde colocar a câmera? Quando e por que movê-la?

Ao enfatizar uma preocupação com o fazer cinematográfico em detrimento ao culto do autor, Godard de certo modo retoma o final do texto “A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução”, em que Benjamim vê a necessidade de uma resposta política para a arte. O próprio texto já se detinha sobre a questão do culto do diretor, analisando o fenômeno como uma retomada secular do valor de culto da arte. Se antes a função ritualística desempenhada pelas obras de arte impunha uma distância sagrada entre obra e espectador, o culto do autor repõe essa distância, porém, em termos profanos: “Cada vez mais, o espectador se inclina a substituir a unicidade dos fenômenos dominantes na imagem de culto pela unicidade empírica do artista e de sua atividade criadora” (Benjamin, 1955/1983b, p. 10). Ao diretor, cujo estilo é inimitável, atribui-se então uma aura. Ele próprio torna-se irreprodutível, muito mais do que suas obras. Essa atribuição passa a pautar a recepção do espectador: sua dedicação será medida pela extensão do culto que faz do diretor.

Para Benjamin, o cinema anunciava uma transformação das relações entre o espectador e a obra de arte. No passado, o acesso às pinturas era restrito a poucas pessoas, pois, como estavam abrigadas em igrejas, claustros e posteriormente nas cortes, “elas só se transmitiam através de um grande número de intermediários hierarquizados” (p. 21). Já o cinema parecia requerer menos intermediários e assim o acesso aos filmes se estendia inclusive à massa.

Entretanto a revolução prometida pelo cinema não se cumpriu plenamente ao longo da história. Ou talvez não fosse tão outra como aparentava a Benjamin. Por mais que o cinema seja acessível a um grande público (apesar do alto preço dos ingressos, ainda existe em São Paulo um circuito de cinema gratuito em centros culturais e cineclubes), a compreensão de muitas de suas obras requer hoje a mediação de especialistas. Trata-se de um novo tipo de “intermediário hierarquizado”, não mais ligado ao acesso, mas à assimilação dos filmes.

A revolução prometida pela psicanálise também se constrange a realizar-se outramente. A nota do editor inglês que antecede o artigo “Análise terminável e interminável” cria uma questão embaraçosa:

Recordar-se-á que no breve debate sobre a técnica nas New introdutory lectures (1933a), ele (Freud) escrevera que “nunca fora um terapeuta entusiasta” (Standard Ed., 22, 151). Assim, nada há de inesperado na fria atitude demonstrada neste artigo para com as ambições terapêuticas da psicanálise ou da enunciação das dificuldades com que ela se defronta (Freud, 1937/1996a, p. 226).

Se o editor não se surpreende diante de comentários críticos de um analista não-entusiasta, presume-se que sua surpresa está reservada às críticas provenientes de um analista entusiasta. Isso significa que de um analista entusiasta não se esperam críticas à psicanálise?

É possível não tomar estrita nem estreitamente a afirmação de Freud de que “nunca fora um terapeuta entusiasta”. Com a política dos autores, Godard pretendia explicar o que faz a direção. Nos artigos sobre a técnica, Freud está interessado na questão do que faz a condução da análise. Se em “Análise terminável e interminável” adota uma posição crítica é porque nesse texto está justamente em causa pensar o que limita a análise. Gélida atitude de Godard; fria atitude de Freud? Um espectador que não se dedicasse ao problema do que faz o cinema ainda não experimentaria todo entusiasmo pelo cinema. Um analista verdadeiramente entusiasta não teria outra dedicação senão perseguir a explicação do que faz a psicanálise.

 

Referências

Adorno, T. W. (1986). Notas sobre o filme. In F. R. Kothe (Org.), T.W.Adorno: Sociologia (pp. 100-107). São Paulo: Ática. (Trabalho original publicado em 1967).        [ Links ]

Benjamin, W. (1983a). O narrador: Observações sobre a obra de Nikolai Leskow. In Textos escolhidos: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas (2. ed., pp. 57-74). São Paulo: Abril. (Trabalho original publicado em 1936).        [ Links ]

Benjamin, W. (1983b). A obra de arte na época de suas técnicas de reprodução. In Textos escolhidos: Benjamin, Horkheimer, Adorno, Habermas (2. ed., pp. 3-28). São Paulo: Abril. (Trabalho original publicado em 1955).        [ Links ]

Frayze-Pereira, J. A. (2004). O paciente como obra de arte: Uma questão teórico-clínica. In F. Herrmann & T. Lowenkron (Orgs.), Pesquisando com o método psicanalítico (pp. 33-41). São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Freud, S. (1996a). Análise terminável e interminável. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 23, pp. 223-270). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1937).        [ Links ]

Freud, S. (1996b). Esboço de psicanálise. In S Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 23, pp. 151-221). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1940).        [ Links ]

Freud, S. (1996c). O estranho. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 17, pp. 233-273). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1919).        [ Links ]

Freud, S. (1996d). O Moisés de Michelangelo. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 13, pp. 213-241). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914).        [ Links ]

Freud, S. (1996e). Recomendações aos médicos que exercem a sicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 12, pp. 121-133). Rio d e Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1912).        [ Links ]

Freud, S. (1996f). Sobre o início do tratamento: Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. (Vol. 12, pp. 135-158). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1913).        [ Links ]

Gagnebin, J. M. (1994). História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva.        [ Links ]

Lacan, J. (1990). Do sujeito suposto saber, da díade primeira e do bem. In J. Lacan, O seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). (4ª ed., pp. 218-230). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Trabalho original publicado em 1973).        [ Links ]

Lorenz, G. (1983). Diálogo com Guimarães Rosa. In E. F. Coutinho (Org.), Guimarães Rosa (pp. 62-97). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. (Trabalho original publicado em 1965).        [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1975). A dúvida de Cézanne. In Textos escolhidos: Husserl,Merleu-Ponty (pp. 113-126). São Paulo: Abril Cultural. (Trabalho original publicado em 1945).        [ Links ]

Tirard, L. (2006). Jean-Luc Godard. “Você quer fazer cinema? Pegue uma câmera”. In L. Tirard (Org.), Grandes diretores de cinema (pp. 239-252). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. (Trabalho original publicado em 2002).

 

 

Endereço para correspondência
Danilo Sergio Ide
Av. Prof. Mello Moraes 1721 &– Cidade Universitária
05508-900 &– São Paulo &– SP
Tel.: (11) 9264-9024
E-mail: dan.ide@bol.com.br

Recebido: 30/05/2008
Aceito: 05/06/2008

 

 

* Versão modificada do trabalho apresentado em 7 de junho de 2007 no II Colóquio de Psicologia da Arte.
** Psicólogo formado pela USP em 2002, Mestre em Psicologia Social pela USP em 2006.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons