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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.33 no.51 São Paulo dez. 2010
EM PAUTA - PSICANÁLISE E ESCULTURA - PER VIA DI LEVARE
Instantâneos: Deixa ficar
Instantaneous
Carlito Carvalhosa*
... ao deparar-se com os santos cobertos, apagados do interior do templo, o sujeito tem a oportunidade de estar solitário e frente a frente com a sua realidade, seu corpo e sua alma, humano e sem mediação (Mesquita, 2010).
Desta vez pensei que era possível ver a peça com mais intensidade se eu mantivesse a distância dela. Para fazer o espaço em torno dela parte da peça. (Carvalhosa citado por Monachesi, 2005)
Uma alta e volumosa construção de tecido veste e oculta toda arquitetura do Octógono, fazendo-o desaparecer e, dessa forma, interrompe o fluxo e a percepção habituais no interior do museu. A rigidez da geometria é contraposta por um labirinto de linhas curvas e paredes flutuantes, diáfanas, sensíveis ao vento e ao movimento. Do centro desse outro espaço o museu desaparece e dá lugar a um mundo de vultos e sombras, que se movimentam ao som de uma trilha discreta, mas persistente, de alguma forma familiar ou próxima. O jogo assimétrico de lâmpadas sobre as paredes reforça o rompimento da paridade do espaço original, criando distintas zonas de luz e sombra, e conferindo uma qualidade cinemática a essa nova arquitetura (Mesquita, 2010).
Para combater a superoferta visual que atrapalha a percepção, “eu me convenci de que a visão dá menos a ver, e de que é acima de tudo um processo de ocultamento” (Virilio, 1984, citado por Monachesi, 2005).
As diferenças são, no entanto, impurezas do branco, não tantas assim que cheguem a cancelar a relação de participação entre os dois lugares. Tudo se passa como se, ao entrar numa dessas salas, em que nada de mais acontece, só nos fosse oferecido um reles “isto é isto”. Mas se existe (ou existiu, não importa) um quase duplo desse lugar em outra parte, “isto é aquilo” também. Demorando- -se mais um pouco ali, a experiência de um E/OU corporificado talvez comece a medrar. E ela pode ser muitas coisas, menos pacífica. Diferenças ressaltam justamente porque em cada parte há pouca coisa, tão pouca que cada agora, aqui, isto, aquilo é muito – tanto faz se numa ou se noutra montagem. “Faz parte”, o dito mal resignado de todo dia, passa a incluir também fazer a parte, realizar integralmente uma parcela, aqui e agora, levando em conta lentes e fios aparentes como alguma sobra que, afinal, faz parte, sabendo sempre que resta outro pedaço lá e então. Não parece uma figura estranha ao desencontro marcado que caracteriza há tempos o trabalho de Carlito. Nem ao modo de vida mais e mais imerso naquele sentimento de não estar de todo, na volatilidade da presença com que fazemos do mínimo sinal, para o mal e/ou para o bem, um acontecimento (Bandeira, 2008).
Eu gosto desse paradoxo, gosto que as peças sejam instáveis, no sentido do seu significado, da presença dos materiais e na relação dela com o espaço. (Carvalhosa citado por Monachesi, 2005)
Fazendo do espaço em torno da peça parte integrante dela, Carvalhosa nos força a adotar uma espécie de cegueira involuntária. No habitual afã de ver mais e melhor, de ver de perto e de tocar, acabamos – entre a frustração e a impotência, ali brecados pela barreira − deixando o olhar vagar pelo vazio, imaginando como aquilo foi parar ali, se há alguma coisa sustentando aquele corpo informe em algum ponto onde a vista não alcança ( Monachesi, 2005).
Outros artistas trabalham com projeto, mas mesmo esses têm interesse pela distância entre projeto e obra: a obra só faz sentido se esse espaço for misterioso e intraduzível.
Quando cessam os sons involuntários da obra, os panos estalando como lençóis ao vento e os passos ecoando entre rígidas paredes, nós percebemos que não há silêncio neste lugar. Existe sempre um som ao fundo, um horizonte sonoro. Parece o som que um filme faz entre o fim de um diálogo e o início de uma música. Entre o céu que rufa e a respiração exagerada. A voz da película em si, o chiado de algo sendo visto, a fricção entre o filme e o projetor (Lindsay, 2008).
Curiosamente o mundo está ficando bidimensional. O espaço real é tão intensamente representado em duas dimensões, que ficou difícil diferenciar um do outro, entre filmes, computadores, redes sociais, livros, revistas, telas e plotagens gigantescas em todo lugar. Edifícios e cidades se parecem cada vez mais com simulações tridimensionais, com sua luz plana e superfícies sem alma, dégradés, cores pastel, setas e molduras em linhas duplas, triplas ou pontilhadas (Carvalhosa, 2010).
Rapidamente os ocos de Apagador nos levam ao horror vacui e a um seu oposto, o medo do desmaiadamente cheio. Não dá para saber se Carvalhosa apagou ou subtraiu o volume interno do lugar, se o volume deixou de existir como se nunca tivesse acontecido ou se foi suprido deixando cicatriz e dor. Assim não sabemos se estamos sofrendo ou não. A brisa dentro da sala não alivia a premonição de um peso e de uma solidez fora dos seus lugares. Ele fez um caixão para o ar. Ou um caixão de ar. Em algum outro lugar deve haver o costume do luto branco, mas não neste lugar. Aqui o visitante apressadamente enche este vácuo com toda espécie de espiritualidade (Lindsay, 2008).
Será que há sempre uma decisão tomada sobre qual forma será escolhida para o que é feito, ou qual forma não será rejeitada? Imagino um caminho, surgem coisas inesperadas, outras se mostram sem força e precisam ser mudadas, às vezes se começa tudo novamente, e por aí afora. Não é um processo de pôr ou tirar, são ambos.
O oposto de “rever” seria “tornar visível o invisível”, tarefa de que o filósofo se autoincumbiu (Monachesi, 2005).
Ficamos sem saber a origem e, portanto, o sentido deste som. Quando escutamos o som da passagem de um avião no céu acima percebemos que estamos escutando uma gravação feita dentro da própria sala em algum momento anterior. Alguém nos informa que uma gravação é feita toda noite e tocada no dia seguinte. Então estamos sempre ouvindo o som de ontem à noite. De repente o som soa romântico, como a memória de um gemido de uma amante. Mas permanece uma sensação inquieta. Parece que desceu uma cortina entre nós e o dia. A noite fora do lugar não consegue imprimir sua escuridão. Simplesmente o dia está cinza e sujo de som (Lindsay, 2008).
Em A soma dos dias, instalação de Carlito Carvalhosa no espaço central da Pinacoteca do Estado de São Paulo (agosto a outubro de 2010), encontramos uma escultura concebida para existir de fato por um período de oitenta minutos. Longos e levíssimos tecidos brancos, dispostos em uma espiral, encobrem todo um espaço octogonal da arquitetura do museu. A escultura de tecido esvoaçante se completa com o som minimalista da música vinda pelas mãos do compositor Philip Glass que, ao piano, se encontra no centro da obra. A escultura existirá enquanto o som chegar aos ouvidos atentos e olhares extasiados dos espectadores. A experiência sensorial diante dessa obra produz efeitos emocionais inusitados. As esculturas, nos dias de hoje, são outras (Buschinelli, 2010).
Se a arte é aquilo que não tem um só significado, então ela sempre estará no caminho deste. A boa arte exige uma aspereza nessa relação. Não se trata de buscar a pureza de uma forma, mas de dar forma à matéria, informá-la. Uma grande qualidade dessa noção é que ela define uma função para a arte, e não uma missão (Carvalhosa, 2010).
Referências
Bandeira, J. (2008). Faz parte (folder). São Paulo: Galeria de Arte Raquel Arnaud | Galeria Millan. Fonte: <http://www.carlitocarvalhosa.com/ [ Links ]>.
Buschinelli, C. (2010). Psicanálise e escultura − carta-convite para ide 51. São Paulo | SBPSP.
Carvalhosa, C. (2005). Favor não tocar. Entrevista concedida a Juliana Monachesi. São Paulo: Centro Universitário Maria Antônia da USP. [ Links ]
Carvalhosa, C. (2010). A soma dos dias. Projeto Octógono. São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo. [ Links ]
Lindsay, A. (2008). Apagador. São Paulo: Galeria de Arte Raquel Arnaud. Disponível em:<http://www.raquelarnaud.com/exposicoes_main.asp?expoId=84&language=pt>. Acesso em 13 nov. 2010. [ Links ]
Mesquita, I. (2010). A soma dos dias. Projeto Octógono (folder). São Paulo: Pinacoteca do Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.carlitocarvalhosa.com/>. Acesso em: 13 nov. 2010. [ Links ]
Monachesi, J. (2005). Da “pintura que não dá pé” à escultura que afoga. Disponível em: <www.canalcontemporaneo.art.br/arteemcirculacao/archives000491.html>. Acesso em: 16 nov. 2010.
Virilio, P. (1984). L’horizon négatif. Paris: Éditions Galilée.
Endereço para correspondência
Carlito Carvalhosa
E-mail: carlito@carlitocarvalhosa.com
* Artista plástico.