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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.34 no.53 São Paulo dez. 2011
EM PAUTA
Notas sobre a dimensão poética da palavra na prática psicanalítica
Notes on the poetic dimension of word in the psychoanalytic practice
Marilsa Taffarel*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP
RESUMO
Este artigo apresenta a ideia de que o discurso do paciente na sessão psicanalítica contém elementos verbais que, pela força da transferência, sofrem transmutações tais como aliterações, escansões, efeitos rítmicos, repetições, entre outros, que lhe conferem estrutura poética. São símbolos presentificadores das vivências, cuja apreensão é base indispensável da interpretação psicanalítica.
Palavras-chave: Elementos poéticos, Forma, Expressão.
ABSTRACT
This paper presents the idea that the patient's discourse in the analytic session contains verbal elements that, through the force of transference, suffer transformations such as alliterations, scansions, rhythmical effects, repetitions, among others, which provide it with a poetic structure. They are symbols which bring to presence experiences, whose understanding is an indispensable basis for the psychoanalytic interpretation.
Keywords: Poetic elements, Form, Expression.
Por que num livro de psicanálise, em uma seção destinada às reflexões clínicas, Isaías Melsohn, dedica um capítulo à análise da primeira parte do poema de Federico Garcia Lorca "Pranto por Ignácio Sanches Mejías";? O que pretende o autor?
Escreve Isaías:
O presente exemplo visa a revelar o poder que tem o poeta de conceber e comunicar, para nossa contemplação, a forma do pensar humano ante o impacto de uma situação trágica como a morte. [...] O suceder da alma enlutada em direção a uma inexorável submissão à dor da renúncia. (Melsohn, 2001, p. 226)
Remetemos o leitor à leitura desse magnífico poema, uma vez que não iremos reproduzi-lo aqui. Convidamos também o leitor a experimentar a curiosa e ousada iniciativa de sua inclusão na parte denominada por Melsohn "Lições clínicas";. Ali, encontramo-nos com o poema e uma acurada e literariamente inspirada indagação da atividade poiética, atividade de recriação da palavra, comum ao grande poeta e ao paciente em condição de análise.
Novamente, cito Melsohn (2001, p. 228):
Este seminário colhe do domínio da poesia uma situação exemplar para submetê-la à interrogação psicanalítica. E porque fomos ter à grande poesia? Não será igualmente possível extrair de poesia menos sublime matéria para o fazer psicanalítico? Sim. Mais simplesmente ainda, não constitui a palavra trivial da sessão psicanalítica a substância habitual deste fazer? Sim. Porque, então, fomos ter à grande poesia? Não vimos já o que ela tem a mostrar? Sim, e ainda não. Compreendemos o poema mas isso ainda não basta. Vamos, por isso, prosseguir a inquirição. O que pode nos ensinar, a nós psicanalistas e psicólogos, a palavra do poeta? Em que consiste o seu dizer e qual a relação desse dizer com o método de investigação da palavra inaugurado pela psicanálise?
Nesse pequeno capítulo de seu livro Psicanálise em nova chave (Melsohn, 2001) deparamo-nos com a constante ocupação de Melsohn em alicerçar sua perspectiva própria do psiquismo – e a partir dela da prática psicanalítica – em uma revolucionária teoria do conhecimento surgida na primeira metade do século passado. Essa teoria é defendida por Ernst Cassirer, que, essencialmente, postula que toda experiência humana é penetrada por valores simbólicos. Pode-se, então, dizer que se produz conhecimento sobre o homem a partir do que o autor denominou "escuta poética";, aquela que capta os símbolos afetivos. A apreensão afetiva do mundo é simbólica, é um pensar.
O poeta mostra concretizada nas imagens que seu dizer cria a Forma emocional do pensar, a Forma emocional de pensar o pensamento e a temporalidade. A presença e o pulsar da vida espelhando nas coisas os ritmos, as intensidades e as tensões da vida das emoções nos faz sentir a Forma desta emoção. Por que a Forma da emoção? Forma, configuração, estado, estrutura, arranjo e estilo em composição literária musical ou plástica, princípio constitutivo que confere a um ser sua natureza própria. Forma significa Ideia, do grego Idea, Eidos – visão mental – que provém de Idein, ver. A emoção é Forma, é um Eidos, é concepção que subentende igualmente expressão. Forma e expressão são constitutivos do sentimento. Sentimento sem forma é abstração vazia. Da mesma maneira, não há Forma, de uma parte e expressão, de outra. A locução Forma e Expressão da emoção designa uma conexão, uma relação de natureza semântica, simbólica, a mesma que existe, por exemplo, entre som e significado da palavra. (Melsohn, 2001, pp. 227-228)
Langer (1980), discípula americana de Cassirer, mostra-nos que o objeto estético na música, na arte pictórica e na poesia possui uma qualidade intrínseca, uma organização análoga a certas emoções e ele é, por tal motivo, um instrumento lógico que permite conceber tais emoções. O objeto estético é um símbolo da vida emocional, de seus ritmos, das diversas vivências temporais e corporais constituindo-se como uma concepção emotivo-intelectual que comporta determinado grau de abstração. No caso da arte pictórica ou da música, esse símbolo, expressão objetivada da vida emocional, não é mediado pela palavra. No caso da poesia, a palavra é recriada, articulada/desarticulada, organizada a fim de comportar elementos poéticos.
"O que fez o poeta e como ele o fez?"; – pergunta-se Langer.
Ele produziu uma ilusão, tão completa e imediata quanto a ilusão de espaço criada por alguns traços no papel, a dimensão de tempo em uma melodia, o jogo de poderes erigido pelo primeiro gesto de um dançarino. Ele produziu uma ilusão por meio de palavras [...] mas o que ele cria não é um arranjo de palavras, pois as palavras são apenas seus materiais, dos quais produz seus elementos poéticos. Os elementos são o que ele desloca e equilibra, espalha ou intensifica ou aumenta, a fim de compor um poema. (Langer, 1980, p. 220-221)
Para Langer, o poeta cria uma vida virtual. Note-se que ela escreveu Sentimento e forma em 1953, ou seja, muito antes que a palavra virtual adquirisse o sentido negativo que predominou nas últimas décadas. Vida virtual e aparência de vida, nesse livro, são expressões carregadas de sentido positivo, de positividade ontológica. Os acontecimentos que compõem essa vida virtual "possuem apenas aqueles aspectos que lhes são dados na narrativa: são tão terríveis, tão maravilhosos, tão simples, ou tão comoventes quanto 'soam'";.
Tyger, tyger, burning bright
In the forests of the night. (Langer, 1980, pp. 223)
Langer cita esse trecho de uma poesia de W. Blake – Tigre, tigre, resplandecendo/nas florestas da noite – para mostrar como apenas a construção gramatical nos coloca nessa vida virtual onde um tigre existe, mas não o tigre comum e sim um tigre carregado de poder simbólico; não em florestas escuras, mas em "florestas da noite";. "O 'tigre' de Blake não tem nascimento natural, nenhum hábito quotidiano; ele é o 'tigre' feito por Deus, com um coração de emoções satânicas e um cérebro de mestre"; (Langer, 1980, p. 224).
Escreve Isaías que as rimas, as repetições "articularam e comunicam o sincopar rítmico de batimentos emocionais; elas veiculam reverberações do dizer que não tem linguagem; elas dizem o indizível na sua indizibilidade [...]";. (Melsohn, 2001, p. 228)
Pergunta-se ele:
Consiste o dizer do poeta na rica exploração e no domínio da gramática e do vocabulário da língua? São suas palavras extraídas do léxico segundo a significação que lhes confere o dicionário, ou, ao contrário, é o dicionário que entesoura a riqueza depositada na língua pelos grandes poetas e prosadores? O poeta não utiliza meramente vocábulos, mas cria A Palavra, dá nascimento a sentidos originais da linguagem, fratura e recria a língua. (Melsohn, 2001, p. 228)
A partir de Freud e transpondo para o campo psicanalítico as concepções de Langer, Isaías pôde pensar a sessão psicanalítica como um espaço no qual se dá esta metamorfose da linguagem propiciada pelos montantes afetivo-emocionais mobilizados pela transferência e afirmar seu caráter simbólico, seu caráter de símbolo presentificador: é a
[...] espontaneidade do dizer criativo que se articula no encontro humano sui generis da sessão psicanalítica. Trata-se aqui também de apreender o sentido original do dizer. É aqui que os movimentos sutis da alma imprimem na palavra, na frase, na totalidade da fala, as vibrações de um dizer único. É aqui o lugar para recuperar o valor primevo da palavra, aquém, do hiato que a gramática introduz entre as categorias, o lugar onde a palavra é ainda, ação e expressão de ação. (Melsohn, 2001, p. 229)
A expressão valor primevo não tem apenas uma função de adjetivação forte, ela é de cunho conceitual. Isaías está se referindo nesse ponto ao conceito de metáfora originária de E. Cassirer. Nessa primeira e original produção metafórica se dá a passagem de emoções e afetos intensos para o plano da palavra configurando um salto categorial.
Cabe ao analista, pensa Isaías, conceber a forma da emoção que o paciente vive, depois de atravessar o portal da fusão afetiva que esse mesmo encontro gera muitas vezes.
Viver a matéria e Forma das emoções é experimentá-las como sujeito, envolvido pelos acontecimentos, prisioneiro, padecendo. Ao passo que conceber a pura Forma das emoções é contemplá-las emocionalmente, sim, mas a respeitosa distância. Essa distância entre conceber a Forma do sentir e viver a matéria do sentir é o que nós, psicanalistas, buscamos atingir. (Melsohn, 2001, p. 228)
Porém, não se trata na análise de descrever a vivência, o que é feito discursivamente, o que implica recorrer ao papel analítico da palavra. "A descrição visa ao sentido emocional, mas toma-o como referência, como objeto do pensar. [...] Falar sobre difere de falar expressivamente"; (Melsohn, 2001, p. 228).
O psicanalista deve, na visão do autor, usar do poder psicanalítico da palavra. O psicanalista precisa exercitar sua escuta poética e sua fala poética, ou melhor, sua fala com elementos poéticos. Fala não denotativa, não descritiva, mas uma fala que permite a manutenção da presença.
Langer (1980) insistentemente aponta para a passagem de nível que existe entre o discurso consensual ou convencional e a poesia. A poesia tem um efeito de ruptura com aquele plano da experiência, o chamado plano discursivo, da fala comum. O tigre de Blake, voltemos a ele, não é "uma fera a ser caçada e esfolada por esportistas ingleses. Um tigre comum iria andar à espreita em uma selva escura e não resplandecer nas 'florestas da noite'"; (Langer, 1980, p. 223).
Ricouer (1977), em seu livro Interpretação e ideologias, refletindo sobre a hermenêutica de textos escreve sobre o potencial subversivo da ficção poética que distancia a realidade quotidiana e abre-nos para uma outra dimensão da realidade. Sem que entremos na discussão de suas propostas de uma hermenêutica crítica, queremos apenas pinçar outra afirmação relevante para nós: "é do real quotidiano que o discurso poético se distancia, visando ao ser como poder-ser"; (Ricoeur, 1977, p. 138).
Para nós, psicanalistas, a abertura da escuta para as palavras e suas conexões peculiares, suas torções, aliterações, repetições, sua polissemia, o ritmo com que são enunciadas, as eventuais rimas e escansões que lhe conferem a mesma estrutura do objeto poético é a condição básica da apreensão da dimensão pulsional-afetiva. Por sua vez, a comunicação do analista feita, respeitando a dimensão poética e, portanto, fugindo do aprisionamento na esfera explicativa, que tanto nos corrói, permite que os brotos de eus estancados no curso da vida de cada paciente retomem a via do desenvolvimento e realizem sua potencialidade.
Referências
Langer, S. (1980). Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva. [ Links ]
Melsohn, I. (2001). Psicanálise em nova chave. São Paulo: Perspectiva. [ Links ]
Ricoeur, P. (1977). Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: F. Alves. [ Links ]
Endereço para correspondência
Marilsa Taffarel
Rua Dr. Albuquerque Lins, 566/62
01230-000 – São Paulo – SP
tel.: 11 3081-4071
E-mail: mtaffare@terra.com.br
Recebido: 17/10/2011
Aceito: 28/10/2011
* Psiquiatra pela Escola Paulista de Medicina. Psicanalista. Mestre em Filosofia pela PUC-SP. Doutora pelo Núcleo de Psicanálise da PUC-SP. Membro Associado da SBPSP. Coautora do livro Isaías Melsohn. A psicanálise e a vida: setenta anos de histórias paulistanas.