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Ide
versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo fev. 2015
ESPECIAL
Fotografia: o instante e o permanente
Rogério Nogueira Coelho de Souza*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Ao tratar das relações entre o visível e aquele que vê, Merleau-Ponty questiona:
Não há, portanto, coisas idênticas a si mesmas, que, em seguida, se oferecem a quem vê, não há um vidente, primeiramente vazio, que em seguida se abre para elas, mas sim algo de que não poderíamos aproximar-nos mais a não ser apalpando-o com o olhar, coisas que não poderíamos sonhar ver "inteiramente nuas", porquanto o próprio olhar as envolve e as veste com sua carne... Qual a razão por que, envolvendo-os, meu olhar não os esconde e, enfim, velando-os, os desvela? (2007, p. 128)
Certa vez um paciente mostrou-me uma série de fotos feitas no fim de semana. Uma chamou-me à atenção. Em sintonia com as outras se destacava, certamente por sua qualidade artística, uma vez que me fazia pensar sobre o conflito que pode haver entre o imediato, do instante presente, e o permanente duradouro. Algo que remetia a certas angústias daquele paciente.
Não posso apresentar a foto. Qualquer descrição minha não lhe faria justiça. Tratava-se da imagem colorida, em cores não muito vivas, de uma praia ao amanhecer. Mar, céu, areia, montanhas ao fundo, a imprecisa figura de uma pessoa na praia, tudo iluminado pela luz do sol nascente, ainda fraca, porém envolto por bruma, típica de manhã de outono em seus primeiros momentos.
Não posso me deter na sessão, nem em seu caso clínico. No entanto, a partir do sofrimento vivido por aquele paciente, algumas questões poderiam ser feitas. Seria possível fotografar todos os instantes? Recuperá-los em sequência e resgatar por completo, sem perda, toda a experiência vivida? Por que sua insistência com o instante?
Ele queria apreender o belo, perceber-lhe o sentido, dar-lhe significado. Aponto-lhe a foto que me atraíra. Mostro-lhe o que permanece lá, independentemente do instante em que foi feita. Lá continuarão céu, mar, areia, montanhas. Esses permanecerão. Luminosidade, bruma, figura humana, naquele ambiente, são instante apreendido. Instante e permanente compõem-se. A foto integrara o que poderia ser paradoxo. Pela fotografia, o instante, fortuito, permaneceria na companhia do permanente, que estaria lá ainda que não fosse capturado pela visão interpretativa do fotógrafo. Aquela foto era verdadeira interpretação para o paciente.
Fotografar é interpretar, em seu sentido amplo, escrever sobre fotografia é fazer uma interpretação, pessoal e limitada, sobre esse amplo campo de conhecimento. Sirvo-me da interpretação fotográfica do paciente, pela qual muito aprendi.
Ampliando minha visão, utilizo-me das palavras de Barthes: [...] a palavra mais adequada para designar (provisoriamente) a atração que sobre mim exercem certas fotos era aventura. Tal foto me advém, tal outra não. O princípio da aventura permite-me fazer a Fotografia existir (2012, p. 26).
Acompanho a direção apontada, pois também para mim é preciso que uma fotografia promova uma espécie de aventura, de animação, que desencadeie algo similar àquilo de vivo, inesperado, sentido quando do acontecimento interpretativo em Psicanálise. Sabemos que fotografias não são reflexos da realidade, são rupturas do tempo, do fluir da vida. São invenções, ficções, em que a câmera fotográfica separa um momento de outro, captura o instante, de maneira bem diferente de nossos olhos que, mesmo apurados, não conseguem perpetuar o visto do mesmo modo que no registro fotográfico.
A memória revelada pela câmera não é suficientemente esclarecedora, pois, quanto mais uma foto conta, possivelmente menos se poderá saber do fotografado. O instante fotografado não esteve retido em nossa memória da mesma maneira que na fotografia. Nossa memória recria o vivido, interpretando-o dá-lhe sentido, mesmo que falso. Fotografias fixam instantes, tornam o presente absoluto e aparentemente inquestionável. Apenas aparência, porque sendo um corte no tempo só ganhará vida, animação e aventura se sofrer significação interpretativa do espectador. Talvez seja esta a arte da fotografia, a sofrida interpretação que se impõe a nosso dedicado olhar frente ao que se vê no registro do fotógrafo.
Uma fotografia torna uma imagem perene (como o céu, mar, areia e as montanhas da foto referida), mas o caráter vivo de uma imagem está no olhar interpretativo daquele que vê, dando-lhe de modo instantâneo a significação artística imanente ao trabalho fotográfico feito com arte (como a luminosidade particular, a bruma, a presença fugaz da figura humana na foto citada fizeram-me compreender que ali se fazia presente uma resposta à angústia do paciente).
Aponta Heidegger: "Na obra de arte, põe-se em obra a verdade do ente. 'Por' significa aqui erigir. Um ente... acede na obra ao estar na clareira do seu ser. O ser do ente acede à permanência do seu brilho"(2007, p. 27).
Ensina o filósofo que na obra de arte opera-se a emergência do ente na medida em que houver o desvelamento do seu ser, ao qual nos referimos como verdade. Na obra de arte (como pode ocorrer na fotografia), se nela acontece uma abertura do ente, no que é e no modo como é, está em obra um acontecer da verdade (Heidegger, 2007, p. 27). Eis o que permite à arte da fotografia promover sentido e experiência àquele que pode ver a verdade exposta em imagem.
Nos estudos fundamentais da Psicanálise, investigando os sonhos, Freud usou o modelo dos instrumentos ópticos para compreender a localização psíquica dos fenômenos mentais. Destaca o caráter regressivo do sonho, demarca sua essencial característica de figurabilidade e lembra-nos de que a ação dos sonhos desenvolve-se em uma cena diferente da vida representacional de vigília. Permanecendo no campo psicológico e evitando qualquer correlação anatômica, sugere:
[...] visualizarmos o instrumento que executa nossas funções anímicas como semelhante a um microscópio composto, um aparelho fotográfico ou algo desse tipo. Com base nisso, a localização psíquica corresponderá a um ponto no interior do aparelho em que se produz um dos estágios preliminares da imagem. (Freud, 1987, p. 491)
A primeira teoria do aparelho psíquico, e sua teoria do funcionamento mental, não à toa, faz analogia com a câmera fotográfica. Continuamos a estudar a complexa capacidade representacional do psiquismo. Houve mudanças no entendimento da memória, ganhou-se conhecimento pela semiótica, mas o modelo do instrumento fotográfico utilizado por Freud continua propondo, por analogia, um modo de pensar como é possível, pela interpretação da experiência emocional, promover mudança psíquica.
No caso daquele paciente tudo isso se apresentou de modo peculiar, pois se pode tomar sua fotografia como imagem expressiva da busca por uma interpretação, que, produzindo suficiente convicção afetiva, lhe trouxesse alternativa a seus sofrimentos. Na ocasião o paciente compartilhou comigo sua surpresa pelo efeito que a foto promovia e, comovido, pôde refletir com mais consequência sobre suas dificuldades emocionais.
Freud, investigando os sonhos, destacando sua característica imagética e assim ampliando a compreensão do funcionamento psíquico, nos remete às decisivas palavras de Merleau-Ponty sobre o que, inicialmente, se questionara: [...] o próprio olhar é incorporação do vidente no visível, busca dele próprio, que LÁ ESTÁ, no visível [...] (2007, p. 128).
Referências
Barthes, R. (2012). A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. [ Links ]
Freud, S. (1987). A interpretação dos sonhos. (Capítulo VII). In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud (Volume V, pp. 468-561). Rio de Janeiro: Imago. [ Links ]
Heidegger, M. (2007). A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70. [ Links ]
Merleau-Ponty, M. (2007). O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva. [ Links ]
* Membro filiado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.