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Ide
versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015
EM PAUTA | SEGREDO
O segredo de Macabéa1
Macabéa's Secret
José Fernando de Santana Barros
Membro titular e analista didata da SPR
RESUMO
A partir do romance de Clarice Lispector, A hora da estrela, o autor tenta estabelecer um paralelo e um diálogo fictício com algumas ideias psicanalíticas, notadamente as ideias de Fábio Herrmann, autor da Teoria dos Campos, e as de Isaías Melsohn, tais como aparecem em seu livro Psicanálise em nova chave. O objetivo é mostrar que o artista, muitas vezes com outras palavras, expressa aquelas ideias na construção de sua obra literária, expressão simbólica de sentimentos e emoções.
Palavras-chave: Segredo. Sentido. Significação. Percepção expressiva. Percepção representativa. Expressão simbólica.
SUMMARY
Making use of Clarice Lispector novel A hora da estrela, the author tries to establish a parallel and a fictitious dialogue with some psychoanalytical ideas, notedly Fábio Herrmann's ones, author of Theory of the Fields and the ones of Isaías Melsohn the way they appear on his book Psicanálise em nova chave. The aim is to show that the artist, most of the times with another words, expresses those ideas during construction of his literary work, which is simbolic expression of feelings and emotions.
Keywords: Secret. Meaning. Signification. Expressive perception. Representative perception. Simbolic expression.
Em A hora da estrela, Clarice Lispector narra a história de Macabéa, uma moça nordestina morando e trabalhando no Rio de Janeiro, desprovida de tudo, que ninguém quer, virgem e inócua, que não faz falta a ninguém. É mais ou menos com essas palavras que Macabéa é apresentada ao leitor.
Meu objetivo, por meio desse romance, é estabelecer, fazendo uma síntese da história, um fictício diálogo entre a narrativa e algumas ideias psicanalíticas, tomando como norte, principalmente, o pensamento de Fábio Herrmann e o de Isaías Melsohn.
É bom assinalar que Clarice, como real narradora do romance, assume a identidade de um homem, Rodrigo S. M., para falar de uma mulher, advertindo-nos de que ele é nós, pois não aguenta ser apenas ele, precisa dos outros para manter-se de pé, tão tonto que é, ele enviesado [...]. Ao mesmo tempo nos lembra de que "[...] para escrever qualquer coisa, o seu material básico é a palavra. Assim, esta história será feita de palavras e frases e destas se evola um sentido secreto que ultrapassa palavras e frases". Com esse pensamento, reforça a ideia já exposta no início do livro, quando Clarice Lispector, de forma expressiva, nos oferece outros títulos possíveis para A hora da estrela, tais como, A culpa é minha, Eu não posso fazer nada, Quanto ao futuro ou Clarice Lispector. Lembra-nos, assim, que a palavra "cria" sentidos novos que podem ser secretos. Na clínica psicanalítica, essa propriedade da palavra é enfatizada. O discurso do analisando é eivado de sentidos outros, sentidos possíveis, secretos, tão secretos que nem mesmo o analisando se dá conta. Quando alguém diz algo, diz o que quer dizer e diz muito mais sem o saber (Herrmann, 1991). É esta propriedade da palavra, sua ambiguidade inerente, que permite a interpretação do analista. Além do mais, a palavra é sempre carregada de afeto inerente a ela. Teremos uma história de alguém que não é ninguém, o romance parece ir construindo uma personagem a partir do ninguém que é a moça nordestina e nordestinada.
Há uma espécie de cumplicidade entre o narrador e Macabéa, pois "ele" nos diz que, à guisa de informações sobre a jovem e sobre ele, ambos vivem exclusivamente no presente, pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas no momento. Isaías Melsohn nos fala disso, quando, rememorando e citando Santo Agostinho, diz que, de fato, não existe o presente, nem o passado, nem o futuro. O que existe é o presente do passado, o presente do presente e o presente do futuro. Existem memórias presentes do passado, percepções atuais do presente e uma presente expectação do futuro. Os três tempos estariam condensados no momento presente. Nesse contexto, Melsohn enfatiza a necessidade de analisar, antes de mais, o presente da sessão, o aqui e agora, análise que deverá lançar alguma luz sobre o passado e sobre o futuro (Melsohn, 2001).
Para falar da personagem, o narrador necessita mexer com alguns de seus hábitos, tudo isso para se pôr no nível da nordestina. Ela grudou-se na sua pele qual melado pegajoso ou lama negra. Diz ele, ainda, ter certeza de que essa narrativa mexerá com uma questão delicada: a criação de uma pessoa inteira que, na certa, está tão viva quanto ele próprio. Percebemos que o drama envolve a construção de uma personagem. Algo semelhante ocorre na análise. É necessário que o analista se ofereça como objeto, que se grude nas representações ou na realidade do analisando para que possa delas apreender algum sentido expressivo e dar-lhe, na sequência, um significado (Melsohn, 2001). Notamos que Melsohn distingue sentido e significação. Sentido é algo relacionado com a modalidade de percepção expressiva e significação diz respeito à percepção representativa, por sua vez relacionada com atos de linguagem.
Citando Cassirer, Melsohn menciona a existência de quatro modalidades diferentes de percepção. Duas delas nos interessam sobremaneira, trata-se, como vimos, da percepção expressiva e da percepção representativa. A primeira é uma modalidade primordial na qual o que se percebe são as qualidades afetivas do objeto, sua fisionomia afetiva, nela não está em jogo a percepção de qualidades sensíveis. A segunda modalidade é a percepção representativa, intrinsecamente ligada à linguagem. Um bebê de poucas semanas ou meses de vida não percebe um rosto com atributos sensíveis. Ele não percebe um rosto com pele clara, olhos verdes, com expressão hostil ou amorosa etc., mas percebe diretamente a afetividade, a hostilidade ou a amorosidade. Essas qualidades expressivas, porém, não desaparecem com o advento da linguagem. Assim como acontece com as fases libidinais do desenvolvimento, em que a fase oral continua permeando as fases ulteriores, sendo determinante para a evolução psíquica da libido, os caracteres expressivos percebidos no início da vida continuam permeando a linguagem que, em si mesma, contém, além dos aspectos lógico-predicativos, aspectos míticos, caracteres expressivos, tão importantes para a escuta psicanalítica. Lembremos que o termo "palavra" era expresso no grego antigo pelos termos mito e logos. Portanto, não seria demasiado lembrar que o sentido expressivo da palavra dita envolve um halo de vivência afetiva, emocional, expressão simbólica não discursiva dos sentimentos e emoções do analisando, tudo isso sendo apreendido pela percepção expressiva do analista, sensível a uma personalidade em construção. Nesse sentido, para o exercício dessa percepção, a semiótica da arte tem muito a nos ensinar, pois a arte é, sobretudo, expressão simbólica dos ritmos biológicos e vitais do ser humano, bem como dos sentimentos e emoções. Por essa razão é que a grande arte torna-se universal, perene e, por que não dizer, imortal, pois esses ritmos biológicos e vitais são inerentes à condição biológica humana. O persona-gem de um filme (do qual não me recordo o nome) definia a arte como sendo "tudo aquilo que nos faz ver que estamos vivos".
Voltando ao romance, a narrativa é acompanhada do princípio ao fim por uma levíssima e constante dor de dente, coisa de dentina exposta, nos adverte Rodrigo S. M. A história será igualmente acompanhada pelo violino plangente tocado por um homem magro na esquina. A sua cara é estreita e amarela como se ele já tivesse morrido. E talvez tenha, acrescenta o narrador.
Clarice Lispector, na sua obra literária, expressa um conhecimento do valor simbólico das imagens e da sua produtividade de sentidos. A história será doída, mas, como contraponto, teremos um violino plangente, amenizando a dor. De qualquer forma, o choque da dor com o som de um violino resultará em sentidos futuros e possíveis. Quem saberá? Ou a dorzinha será a manifestação do inconsciente cujos efeitos incomodam o processo de construção do indivíduo?
Avisada de que será despedida do emprego, Macabéa reage como se tivesse culpa em causar algum aborrecimento. Atordoada, vai ao banheiro e se olha no espelho. Há uma pia imunda e rachada, cheia de cabelos, o que tanto combinava com sua vida. Espelho sem brilho, pia rachada e imunda expressam simbolicamente os sentimentos da nossa personagem a respeito de si mesma.
Ela não sabia que ela era o que era. Poderíamos concluir, numa palavra, que Macabéa não existia, ou seja, ela não tinha identidade, ou melhor, não tinha um núcleo identitário que a caracterizasse, que representasse seu desejo, pois desejo ela não tinha. Porém, pode um ser humano nascer sem desejo? Seria o mesmo que nascer sem inconsciente. Seria o mesmo que não ter nascido. Seria o mesmo que permanecer flutuando em fusão com a imensa natureza. É que talvez tivesse acontecido de seu desejo dar um nó, vítima de algum trauma, e, assim, ficado paralisado, incapaz de sentir e expressar suas necessidades ou incapaz de simbolizá-las (Herrmann, 2001). Fixara-se o desejo na ideia de não ser nada. Talvez por isso, o narrador passe a nos informar sobre a vida pregressa da moça nordestina.
Órfã aos dois anos, passara por muitas privações materiais e afetivas. Quais as mais importantes e lesivas? Quem saberia dizer? No caso do ser humano, umas se transformam em outras, por força do desejo e da simbolização. Amor transforma-se em leite e apazigua a fome. Leite transforma-se em amor, apaziguando o desamparo e propiciando segurança. No caso de Macabéa, leite é leite e amor não existe. A única coisa que queria era viver. Não sabia para quê, não se indagava. Quanto a mim - diz o narrador -, autor de uma vida, me dou mal com a repetição: a rotina me afasta de minhas possíveis novidades. A rotina nos torna quase autômatos. Não sabemos pensar sobre o que fazemos, não sabemos nem mesmo pensar sobre como pensamos. As regras que nos constroem se ocultam e tornam opaco o nosso cotidiano (Herrmann, 1991). Tudo parece natural e novidades não podem acontecer. É o que fará Macabéa dizer que "as coisas são assim porque são assim".
Após pensar sobre a rotina, o narrador descreve como a moça quebra a sua. Ela inventa algo para não ir ao trabalho num certo dia, ficando sozinha em casa. Estar sozinha é maravilhoso! Ela ouve o rádio, dança e rodopia, ao estar sozinha torna-se livre. Ela agora tem um espaço a usufruir. Estaria aproximando-se de sua identidade? Não sabemos ainda, mas ela irá aproximar-se de alguém. Começa a namorar com um rapaz também nordestino que a trata de Senhorinha e, com esse tratamento, ela parece começar a ser gente. Será um elo com o mundo? Sem dúvida, embora seja um elo com o mesmo mundo que a fizera daquele modo. Logo será desprezada pelo namorado, humilhada e substituída. E já que não era pessoa triste, procurou continuar como se nada tivesse perdido, informa-nos o narrador. Reconhecer as perdas é aumentar a dor de dente, teria dito Clarice Lispector? É melhor negá-las. Macabéa toma apenas Aspirina para não se doer. Ela se dói dentro, mas não sabe explicar. Em tempos modernos, quando as pessoas doem dentro e não sabem explicar, imitam Macabéa: tomam Antidoriex, Fluvorex, Dormex ou Somatex. Depois da Aspirina, ela é aconselhada a procurar uma cartomante que lhe daria um destino. De repente sua vida mudaria completamente. Teria um estrangeiro com quem casar, muito amor, muito dinheiro, veludo e cetim, casaco de pele. Só então percebe que sua vida era uma miséria. Teve vontade de chorar ao ver o seu lado oposto, ela que, como foi dito, até então se julgava feliz. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho, nos diz o narrador. Essa situação vivida por Macabéa pode ser encontrada na sessão analítica. Interpretado ou rompido o campo do inconsciente que determinava e limitava um modo de ser, o sujeito perde momentaneamente a identidade na qual acreditava e passa a se ver diferente. O mundo também passa a ser visto de forma diversa. Há uma perda para haver um ganho. A identidade perdida é adquirida, posteriormente, de forma ampliada, nos diz Herrmann (Herrmann, 1991).
O prenúncio de Madama Carlota, a cartomante, foi uma desconstrução de sua história. Seria ingênuo se não fosse simbólico. Um prenúncio que a fez repensar sua vida, a abdicar de sua crença de que nada sabia. Um prenúncio "mágico" e "simbólico" lhe traz outra possibilidade de ser. Macabéa prova o gostinho da felicidade. Bem que ela poderia ter pensado que Deus se fez homem para despertar nos homens o gosto de uma vida de deuses.
Mais ou menos nesse ponto, o narrador, não sei mais se Clarice Lispector ou Rodrigo S. M., diz que escrever não é acumular e sim desnudar. E diz que tem medo da nudez, pois ela é a palavra final. Freud dissera algo semelhante, fazendo uma analogia entre a Psicanálise e as Artes. Aquela não trabalhava per via di porre, como na pintura, mas per via di levare, como na escultura (Freud, 1905/1972). De qualquer modo, é difícil chegar à nudez. Análise também é desnudamento, mas sempre temos outra veste por baixo da que tiramos. Quando pensamos que Macabéa será agora feliz, que terá escolhido outra possibilidade de vida, é atropelada por um automóvel, logo após sair da casa da cartomante.
Com esse final infeliz, Macabéa parece desvelar seu segredo. Como todo ser humano, desejava ser feliz, mas é na morte que realiza seu desejo. Caída no asfalto, talvez continue a sonhar com um príncipe encantado que lhe traria a felicidade. Ironicamente, foi atropelada por aquele auto que tem a estrela como logomarca, um Mercedes-Benz que decreta sua hora: a hora da estrela.
REFERÊNCIAS
Freud, S. (1972). Sobre psicoterapia. In S. Freud. Obras Completas (Vol. VII). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1905). [ Links ]
Herrmann, F. (1991). Andaimes do real: o método da Psicanálise. (2ª ed.). São Paulo: Brasiliense. [ Links ]
______. (2001). Introdução à teoria dos campos. São Paulo:
Casa do Psicólogo. Melsohn, I. (2001). Psicanálise em nova chave. São Paulo: Editora Perspectiva. [ Links ]
Endereço para correspondência:
JOSÉ FERNANDO DE SANTANA BARROS
Rua Jornalista Paulo Bittencourt, 155/102
52010-260 - Recife - PE
tel.: 81 3222-2850 / 81 99975-7879
jfernandosantana@uol.com.br
Recebido 05.05.2015
Aceito 13.06.2015
1. Texto modificado de uma apresentação feita em um evento de Psicanálise e Cultura promovido pela Sociedade Psicanalítica do Recife.