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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.38 no.60 São Paulo jul./dez. 2015

 

LITERÁRIAS

 

Balada para uma encantadora de serpentes1

 

 

Juarez Guedes Cruz

Membro efetivo e analista didata da SPPA

Endereço para correspondência

 

 

Eu estava deitado de costas e ela, com a cabeça aninhada em meu ombro, parecia dormir. Nada sugeria a mulher experiente, era apenas uma menina em meus braços. Eu a protegia, cuidava de seu sono, devolvia-lhe a paz. Para meu espanto, pôs-se a narrar um devaneio que tivera, imaginara-se uma encantadora de serpentes. E falava como se estivesse vivendo a situação naquele momento:

"Mais uma. Chega a serpente, metendo-se por baixo das portas, infiltrando-se pelos desvãos. Essa que é outra e diversa, mas, ao mesmo tempo, sempre a mesma e conhecida. Essa que, desde há muito, ronda com manhas de sedução, tentando subjugar-me mais uma vez. Mas, agora, sei bem como agir. No trato com ela, até o rosto de prazer aprendi a simular. Decorei meneios, fingimentos de suavidade. E os gemidos. Isso me ensinaram as mais velhas. Então, faço o de sempre: armo transes e sorrisos, mostro meus seios e concavidades e, assim, consigo hipnotizá-la.

Víbora, víboras. Aparecem de todos os lados e procedências, deixando entrever, no arrastar lento e medido, avatares de peçonha. Essa, maldita, que seguro junto à cabeça, está enrodilhada sobre meu corpo. Me aflige sua imobilidade enquanto a acaricio. Mostrasse ânsias de fuga e trairia sua impotência. Mas não, está quieta feito quem prepara um bote. Minha única segurança é sujeitá-la com carinho e força, deixando-a afastada o suficiente para que a língua, bífida, não toque meu rosto. São apenas alguns arriscados centímetros, mas só assim posso dominá-la.

Essa serpente. Às vezes, imagino-a entrando em minha boca. Então me antecipo: beijo-a e a coloco entre os lábios e sei que ela não irá me ferir e não deixará, na minha língua, sua maldade. Noutras vezes, quando estou deitada entregue e de bruços, e já ergui meus cabelos desnudando a nuca, imagino que virá, sinuosa e traiçoeira. Quase por instinto, aperto minhas coxas. Mas é dispensável esse cuidado: encantada, ela deslizará pelo meu corpo e não causará, dessa vez, nenhum mal.

É tanta maestria que algumas dessas serpentes ficam comigo, cativadas. Entretanto, não me afeiçoo. Aprendi, depois de muita desilusão, a conservar a cautela necessária para o bom desempenho de minha tarefa. Não quero mais, não busco e nem deixo que, passando por frestas e janelas, penetrem em minha alma e me explorem. Nada mais me seduz.

Às vezes, rezo por uma trégua. Mas continuam chegando à minha porta - pois sei ser carinhosa - e, mais uma vez, paciente, tenho que submeter a portadora de veneno, para que não me fira, não me mate. Para que não me ataque pelas costas.

Mas, um dia, vou me libertar. Isso, vou. Quando me veem competente, a seduzir, ignoram a mulher indefesa que fui e que, na verdade, continuo sendo. Nem sequer suspeitam disso os homens que abusaram de mim e que, agora, imobilizo. Meu prazer é vê-los, tal como o navegante, amarrarem-se ao mastro erguido para não mergulharem em minhas águas, para não submergirem aos meus encantos. Satisfação saber que, nem assim, escapam. Mas só eu conheço o quanto me resigno a essa vida, noite e dia, para poder dormir em paz, em minha cama de menina".

Quando terminou de narrar seus pensamentos, apenas mostrou a umidade dos olhos - com o tempo, aprendera a não chorar. Ouvi seu relato com atenção e não sabia o que dizer. Beijei-a e perguntei o quanto me incluía nesse penoso rol de traições e veneno. Gentil e com certa dose de sarcasmo, respondeu que eu era exceção e, não fosse, sequer contaria seu sonho. Sorri desconcertado, fingindo acreditar. Eu a queria muito, voltei a dizer.

Fiz o possível para ocultar, enquanto falava, minha bifurcada língua. Não posso negar que fiquei decepcionado. Muito antes do que eu imaginava, ela intuiu minha natureza de réptil. Tenho que providenciar, com urgência, novas artimanhas e disfarces. Realmente, não se concedem férias aos demônios.

 

 

Endereço para correspondência:
JUAREZ GUEDES CRUZ
Rua Tobias da Silva, 85/306
90570-020 - Porto Alegre - RS
tel.: 51 3331-1341
jgcruz@pro.via-rs.com.br

Recebido 10.05.2015
Aceito 13.06.2015

 

 

1. Publicada originalmente em A cronologia dos gestos, pela Movimento, em 2003.

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