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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.38 no.35 Rio de Jeneiro dez. 2016
ARTIGOS
A função da escrita de Nagiko no filme "O Livro de Cabeceira"
The Purpose of Nagiko's writing in the film "The Pillow Book"
Carla de Abreu Machado Derzi*
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-Minas - Brasil
RESUMO
É a partir da aproximação do cinema com o nosso funcionamento psíquico, que este trabalho se propõe a escutar a função da escrita de Nagiko no filme "O Livro de Cabeceira". Esse filme se caracteriza por imagens e texto, em que a primeira cena traumática determina o sintoma de Nagiko. O sintoma de escrever no corpo dos amantes ou emprestar seu corpo como se fosse papel conduz a pensar, tanto uma escrita no corpo desde sua origem, quanto um corpo que se manifesta na escrita. Nagiko, assim, mostra as soluções inventadas por ela, tentando velar o real em jogo.
Palavras-chave: Escrita, Sintoma, Trauma, Letra, Significante.
ABSTRACT
It is from the approximation of cinema to our psychological functioning that this paper proposes to listen to the purpose of Nagiko's writing in the film "The Pillow Book". This film is characterized by images and text, in which the first traumatic scene determines Nagiko's symptom. The symptom of writing on the body of lovers or lending her body as if it were paper leads to think both in body writing since its origin, and in a body which manifests itself in writing. Nagiko thus shows her invented solutions, trying to veil what is really at stake.
Keywords: Writing, Symptom, Trauma, Letter, Signifier.
Psicanálise e Cinema
Psicanálise e Cinema são invenções contemporâneas, nasceram no final do século XIX. A psicanálise nasce entrelaçada à arte, como ilustra Freud quando recorre à tragédia de ÉdipoRei, de Sófocles, seguida de Hamlet, de Shakespeare, e logo após, ao mito de Narciso e às produções artísticas de Michelangelo e de Leonardo da Vinci. Freud recolheu os efeitos da arte para construir sua teoria, pois ele notava que o artista detinha mais saber sobre o inconsciente do que o próprio psicanalista. Freud acrescenta:
As obras de arte exercem sobre mim um poderoso efeito, especialmente a literatura e a escultura e, com menos frequência, a pintura. Isto já me levou a passar longo tempo contemplando-as, tentando apreendê-las à minha própria maneira, isto é, explicar a mim mesmo a que se deve o seu efeito (FREUD, 1914/1913-1914, p. 253).
Embora a arte causasse um enigma em Freud, ele nunca escreveu sobre o cinema, ao contrário de Lacan. Lacan, além de fazer várias referências à literatura, faz referência aos seguintes filmes no percurso de suas obras: Monsieur Verdoux de Chaplin; Soudain l'été dernier de Mankiewicz; Psicose de Hitchcock; A regra do jogo de Renoir; Rashômon de Kurosawa; Dolce Vita de Fellini; Hiroshima meu amor de Resnais; In the mood for Love de Wong Kar-wai Calcutta de Louis Malle e o L'empire des sens de Oshima. Lacan (LACAN, 1960/1992, p. 21) afirma: "A tela do cinema é aqui o revelador mais sensível". E, em relação ao filme de Hitchcock, ele diz (LACAN, 1960/1992, p. 21): "Francamente, ele porta todas as marcas do intocável".
Deve-se ressaltar que Lacan confirma o pensamento freudiano, afirmando a importância de se deixar surpreender pela invenção apresentada pelo filme a fim de progredir na teoria psicanalítica, ao invés de pressupor um saber sobre o filme e interpretá-lo. Ou seja, sobre a tela do cinema um real, um imprevisível se manifesta, se presentifica, se mostra. Dessa forma, não é a psicanálise que detém um saber sobre o cinema, ao contrário os filmes e outras obras de arte é que ensinam sobre o inconsciente aos psicanalistas. Lacan (LACAN, 1965/2001) esclarecerá afirmando que o artista sempre precede o psicanalista, abrindo-lhe um caminho. Dessa forma, a metodologia desse trabalho não consiste em ilustrar a teoria psicanalítica com o filme, ao contrário, o método se baseia em recolher os efeitos imprevisíveis dessa sétima arte, o cinema, para uma construção teórica.
O cinema, arte contemporânea, é uma narração constituída de palavras, mas também de imagens, talvez essa seja a forma mais moderna do mito, forma que Lacan pode apreender para enriquecer a Psicanálise. Lacan (LACAN, 1957/1995), valorizando a imagem do cinema, articula a sequência cinematográfica à lembrança encobridora. Freud (FREUD, 1899/1986), em seu texto Lembrança encobridora, afirmará que há duas forças em jogo nas lembranças encobridoras, uma que se esforça por aflorá-la, e outra, que resiste. Acrescenta Freud (FREUD, 1899/1986, p. 274) "[...] o resultado do conflito, portanto é que, em vez da imagem mnêmica que seria justificada pelo evento original, produz-se uma outra, que foi até certo ponto associativamente deslocada da primeira". A lembrança encobridora é uma fantasia que toma valor de recordação. A lembrança encobridora encobre outra coisa. Da mesma forma, pode-se pensar em relação ao cinema, que se apresenta a partir de uma tela, colocando em cena significantes que engatam fantasias, mas que também fazem véu. Véu a uma experiência traumática, que precisa ser elaborada, mas que enquanto lembrança é irrecuperável, pois nem tudo pode se ver no campo da representação.
O cineasta Coutinho testemunha a presença das lembranças encobridoras em seus entrevistados na cena cinematográfica:
Eu estou interessado no que a pessoa fala a partir de sua experiência sabendo que, como é memória, toda memória é mentirosa, portanto tem verdade e mentira juntas, isso é inevitável. Não há solução. Ninguém consegue desobstruir a memória, então eu aceito aquilo que é exagero. Como sabe se o sentimento é verdadeiro ou não? (COUTINHO, 2014, p. 6).
É essa mesma experiência citada por Coutinho, que se passa no decorrer de uma análise, a experiência rememorada e elaborada em um processo psicanalítico, que não apenas aponta pontos obscuros, mas traz a experiência de sua própria irrecuperabilidade. Essa experiência se destaca pela impossibilidade de tudo saber, de tudo recordar. Além disso, pode-se deduzir das palavras do cineasta Coutinho, que diz sobre a necessidade de os seus entrevistados re(construírem) essa lembrança que não se recupera, mas que vai se construindo na medida em que eles falam:
É impossível, mas tem que tentar, e nesse confronto de tentar entender o outro, sai um diálogo que é improvisado, que é inventado, porque você inventa também quando fala. E não importa, se inventa bem, é verdade. Se é bem inventado, é verdadeiro e ponto final (COUTINHO, 2014, p. 11).
É impossível desobstruir, totalmente, nossa memória pela via da rememoração, mas é possível reconstruir a nossa história. Nessa passagem do trauma à fantasia, há implicação do sujeito. Dunker, quando aproxima o cinema do funcionamento psíquico, afirma:
Às vezes, o que se descobre no início de uma análise ou no fim é que estamos tentando fazer um filme quando há mais material para fazer outros. A nossa tragédia pode ser, na verdade, uma comédia mal filmada, nosso drama pode encobrir um filme de terror ou o que se esperava de uma comédia romântica sem graça se mostra um documentário denso e vertical (DUNKER, 2014, p. 22).
A escrita cinematográfica não se resume apenas em palavras e imagens, ela se manifesta também através da luz e da escuridão, do intervalo entre as imagens, apresentando, ao mesmo tempo, a continuidade e a fratura, a série e a quebra. Rivera (RIVERA, 2013, p. 03) ilustra esse intervalo no cinema a partir do filme La jetée, de Chris Marker, em que o intervalo é visível e há uma lenta fusão entre as imagens. Isso se evidencia mais ainda, quando nos lembramos de que, na montagem fílmica, há como operação, o corte. O corte encadeia uma tomada para outra, a partir do intervalo. No que se refere ao corte, Dunker (DUNKER, 2014, p. 27) acrescenta: "Ele não apenas gera e determina sentidos possíveis no material anterior, como pode dilatar ou suspender o fechamento da significação". Segundo Dunker (DUNKER, 2014), há uma afinidade entre o método da montagem de um filme e a montagem da sessão de análise.
É a partir dessa aproximação do cinema com o nosso funcionamento psíquico, que este trabalho se propõe a escutar a função da escrita de Nagiko no filme "O livro de cabeceira". Esse filme se caracteriza por imagens e texto, em que a primeira cena traumática determina o sintoma de Nagiko. Segundo a personagem Nagiko: "Eu vi meu pai e seu editor juntos pela primeira vez.
Mas, certamente, uma clara noção do que testemunhei, eu só teria ao ficar mais velha". Nagiko diz, então, que essa cena só terá um sentido a posteriori e, no decorrer do filme, ela mostrará respostas construídas por ela diante de tal cena. Essa arte esclarecerá a dimensão clínica do conceito de gozo, na medida em que Nagiko tenta cifrar a experiência de gozo através de sua escrita. Os efeitos desse filme destacam não apenas um encontro entre imagens e olhar, de um produtor e um espectador, mas também entre uma personagem e o campo psicanalítico. Assim sendo, esse filme ilumina a psicanálise.
A função da escrita de Nagiko
Use meu corpo como as páginas de um livro, o seu livro. Preciso de pele dois metros e meio, frente e costas. Tenho certeza de que há duas coisas na vida que são dignas de confiança: os prazeres da carne e os prazeres da literatura. Agora serei a caneta não apenas o papel (GREENAWAY, 1996).
Essas falas da personagem Nagiko, no filme contemporâneo O Livro de Cabeceira do diretor Peter Greenaway, revelam que a carne se mistura com a escrita. O sujeito, ao nascer, é "carne" e sua constituição ocorrerá a partir da linguagem, que é cravada nos viventes sobrescrevendo o corpo. No caso de Nagiko, as marcas psíquicas se inscreveram também, a partir da escrita do seu pai em seu corpo. O pai de Nagiko repetia o seguinte ritual escrevendo em seu corpo:
Quando Deus fez o primeiro modelo em barro de um ser humano, Ele pintou os olhos, os lábios... e o sexo. Depois, Ele pintou o nome de cada pessoa para que o dono jamais o esquecesse... Se Deus aprovou sua criação, Ele trouxe à vida o modelo em barro assinando o seu próprio nome (GREENAWAY, 1996).
O toque do pincel realizado pelo seu pai em seu corpo e o presente de sua tia do livro "O livro de cabeceira" fazem com que Nagiko desperte a delícia pela escrita e, sobretudo, pela escrita no corpo. O livro dado a Nagiko pela sua tia, "O livro de cabeceira", faz com que o título do filme seja homônimo, e também que a autora do livro seja homônima a Nagiko.
Portanto, é a partir da inscrição das marcas psíquicas do Outro como escrita do inconsciente e da escrita, realizada pelo seu próprio pai em seu corpo, como inscrição das marcas psíquicas, que Nagiko marcará o papel. Não há escrita, sem que nenhum corpo a tenha. O que se escreve nesta escrita do corpo é a letra, o corpo sustenta e é sustentado pela letra. Inicialmente, o papel de Nagiko é oferecer sua carne para ser escrita pelos seus amantes.
Desde o início do filme, Nagiko se apresenta com seu sintoma, emprestando seu corpo para ser escrito por inúmeros e sucessivos amantes. Essa escrita, que se repete, parece se tratar de um automatismo de repetição, de um ciclo determinado pelo encontro traumático. Nagiko testemunha um gozo nessa cena do seu pai com o editor, que inscreve em Nagiko o deleite pela escrita, intrincado à submissão paterna. O pai de Nagiko oferece seu próprio corpo ao editor em troca da edição do seu livro. Nagiko reedita a cena traumática vista, repetindo o destino paterno, fazendo-se de objeto de troca sexual recebendo como mais de gozar, a escrita em seu corpo.
Relembrando o conceito de pulsão, que se apoia no corporal, para gozar é necessário um corpo e não um sujeito. A repetição dessa cena tenta fazer ressurgir um significante que sozinho tem função de suporte, de letra. Um significante inscrito, que se presentifica enquanto que real, ou melhor, com as palavras de Guimarães (GUIMARÃES, 1999, p. 96), "Entretanto, seja o que for que esteja na origem do recalque primário, essa identidade faltará sempre ao que quer que venha representá-lo". O trauma, assim, se caracteriza por esse encontro com o real. Devido a isso, Lacan (LACAN, 1974/1981) escreve traumatismo em francês como troumatismo, ou seja, um furo no traumatismo deve se destacar para mostrar um real fora do simbólico, um real que ex-siste.
Daí a função da repetição, pois o inconsciente busca aquilo que seria uma vez idêntico ao que foi uma vez percebido. Entretanto, essa identificação sempre faltará, pois o inconsciente só pode percebê-la enquanto diferente, enquanto furo. Como afirma Attié (ATTIÉ, 2012, p. 15): "Pode-se, então, dizer que, desde o início, se imagina sempre uma origem, que parece ser do campo da fantasia, ao passo que o começo é da ordem da manifestação do sintoma pelo significante ou letra". O autor ainda acrescenta: "o começo se inicia, portanto, pelo significante, e a origem, eventualmente começa pela letra" (ATTIÉ, 2012, p. 15).
A escrita de Nagiko são formas de suporte de um lugar, um lugar que se fundamenta na função de traço. Esse lugar é uma construção lógica que se distingue da origem. Nagiko, através da escrita, tenta assim apreender o inapreensível (a origem), ou seja, ela faz uso de significantes, para tentar domesticar o impossível, o real. Impossível na medida em que não é possível inscrever em um sistema significante.
O corpo é um depósito de cacos de significantes, que não significam coisa alguma, fora do sistema linguístico, mas que produzem efeitos de gozo. Como diz Soler (SOLER, 2010, p. 23): "Os cacos são do real, fora de sentido, sob a forma do Um sonoro, recebido do que foi ouvido". Essas peças soltas da linguagem, presentes mesmo antes da instauração da língua, constituem o que Lacan chamou de alíngua. Deve-se à alíngua a constituição do corpo erógeno.
"A linguagem sem dúvida, é feita de alíngua", diz Lacan. (LACAN, 1975/1985, p. 190). E ele (LACAN, 1975/1985, p. 190) acrescenta: "Alíngua nos afeta primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos". Ou seja, a alíngua afeta primariamente o gozo. Alíngua seria assim uma pré-linguagem, sendo assim a linguagem sempre uma ruminação da alíngua que carrega "a Coisa".
O sintoma de Nagiko vem deste real, do inconsciente não ligado à linguagem, mas à alíngua. Segundo Soler se referindo a Lacan:
Dessa forma, ele acrescenta à contingência traumática de Freud a contingência do "ouvido" primeiro. Isso não incrimina o outro como tentei dizer; a genealogia não é o destino, há uma história, certamente, que começa na primeiríssima infância, mas que é escandida, pelas contingências, os primeiros gozos e a água do primeiro banho..., ou seja, a água da alíngua, lalada na origem (SOLER, 2010, p. 51).
Assim, Lacan acrescenta à contingência traumática a alíngua. Em Nagiko, fica evidente não apenas a cena traumática, sendo essa a contingência traumática, mas também como em todo ser vivo o trauma estrutural. Esse último marcado por Freud, como sendo realizado pela estrutura de linguagem, constitutivo do sujeito e que, ao mesmo tempo, o divide. Lacan acrescenta e aprofunda o trauma estrutural, quando fala da pré-linguagem, a alíngua, a escritura do corpo. Por isso, que Soler irá afirmar na citação acima que a genealogia não é tudo, pois além do trauma estrutural, há o trauma contingente, sendo que nesse há implicação de Nagiko, pois ela escolhe saber do que viu. Há uma implicação do sujeito.
É importante ressaltar que, na cena traumática vista por Nagiko, três personagens fazem parte da cena: o editor, o pai e Nagiko. Várias outras cenas no filme reeditam o entrelaçamento entre esses três personagens. Esclarecendo, o marido de Nagiko é escolhido pelo editor de seu pai, o pai de Nagiko oferece a ela um presente dado pelo seu editor, e ainda, o editor tenta escrever no corpo de Nagiko o ritual de seu pai. Assim o papel, a escrita, a pele e os amantes estão interligados e embevecidos de gozo. Como diz Nagiko: "Apreciava o aroma de todos os tipos de papel, fazia-me lembrar do cheiro da pele de um amante, ou de um novo amante" (GREENAWAY, 1996). A escrita de Nagiko funciona como suporte, de tal forma que, quando seu marido, escolhido pelo editor de seu pai, se recusa a escrever em seu corpo, ele também se recusa a fazer uma parceria sintomática com Nagiko. E ainda, ele queima seu diário, o que a faz abandoná-lo, pois ela afirma: "Se a escrita não existisse de que depressão terrível nós sofreríamos!" (GREENAWAY, 1996). Talvez, o marido tenha queimado o diário de Nagiko, pois se sentia excluído da cena de gozo. Seu gozo é solitário. Nagiko escrevia em língua estrangeira, impedindo-o de ler, sendo assim, ele se sentia exilado.
Freud (FREUD, 1916/1969), no texto O sentido dos sintomas, afirma que o sintoma é um destino pulsional, um substituto de uma satisfação sexual. A psicanálise continua a dar ao sintoma um valor que se refere sempre ao gozo. Nagiko mostra que o sintoma é um fenômeno de corpo, do corpo de gozo. Seu corpo faz "cama do Outro", é o tabuleiro do jogo, diz Lacan. (LACAN, 1975/1985, p. 12). O corpo falante de Nagiko não se apresenta no campo da linguagem, mas se desloca para o campo do real, de um corpo substância que "se goza". Como reafirma Lacan (LACAN, 1975/1985, p. 35): "Gozar tem essa propriedade fundamental de ser em suma o corpo de um que goza de uma parte do corpo do Outro". Sobre esse campo do real em relação ao corpo, Lacan ainda nos diz (LACAN, 1975/1985, p. 178): "O real, eu diria, é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente".
Assim, não se trata aqui de decifrar os escritos de Nagiko, ou ainda, escutá-los como um saber a ser revelado, pois a função dessa escrita é exatamente alcançar o que está fora de alcance.
As palavras escritas na carne de Nagiko e depois, escritas por ela nas carnes dos outros, são palavras que não dizem tudo. Elas são marcas, traços, vestígios do que escapa de ser dito. Trata-se aqui do inconsciente enquanto real, fora de sentido. A letra indica a ausência de sentido, mas a presença de um gozo inquestionável. É interessante observar que a pulsão altera da passividade para a atividade, mudando de objetivo, após o primeiro encontro com seu amante (Jerome), em que ele pede para o corpo dele servir de papel. Assim, ela passa a escrever em seu próprio corpo, alterando o percurso pulsional, de ser escrita em seu corpo por outro, passa ela a escrever em seu próprio corpo, e posteriormente, muda de objeto novamente, passando seu amante a ser o seu papel, ela escrevendo, então, na carne dele. Isso esclarece que o vaivém da pulsão, decorre da impossibilidade dela ser satisfeita plenamente, já que a pressão da pulsão é constante e sua fonte inesgotável.
A relação de Nagiko com seu amante (Jerome) se consolida a partir do momento em que ela o vê com o editor do seu pai. Assim, a tríade da cena traumática, Nagiko, pai e editor é substituída por Nagiko, Jerome e editor. Esse amante de Nagiko entra no lugar de seu pai. Nagiko repete o ritual do pai nesse amante e faz que ele escreva o ritual do pai em seu corpo. Dessa forma, a cena traumática continua a ser reeditada.
Seu sintoma é um acontecimento de corpo, denunciando um encontro contingente entre um sujeito e a emergência do gozo. É pela escrita que Nagiko crava libido em seu corpo. Pode-se pensar em duas vertentes desse sintoma, uma que se manifesta pela sua singularidade, concernindo ao gozo, e outra vertente mais universal, mais coletiva, marcada pelos significantes que procedem do Outro. Nagiko manifesta essas duas vertentes a partir do seu sintoma, uma escrita que tenta cifrar um gozo que insiste e persiste, presentificando uma perda de gozo na medida em que tenta instituir uma separação entre seu corpo e o Outro (Pai). Segundo Costa:
A questão mais interessante, que vai ocupar a personagem central do filme, é que, quando entra o corpo como um elemento de circulação, o pai decai do ato de criador, de pai idealizado, assumindo uma condição de humilhação (COSTA, 2002, p. 3).
O pai de Nagiko era criador, quando escrevia seu ritual no corpo da menina e passa a ocupar um lugar de pai humilhado quando oferece seu corpo como objeto sexual para o editor. A autora (COSTA, 2002, p. 3) ainda afirma: "Daí, então, ela vai se tornar prisioneira e impossibilitada de expressar qual seria sua relação particular a esse elemento que é a escrita". Essa escrita tenta separar a invasão do Outro, do pai, que habita seu corpo. Como ratifica Caldas (CALDAS, 2007, p. 18): "Vejamos então, na história de Nagiko, a ilustração de como a letra da escrita é pai de seu corpo".
A outra vertente do sintoma, a universal e coletiva, é de uma escrita endereçada ao olhar do outro, do editor, para que publicasse seus livros. A escrita de Nagiko sobre o corpo confere a ela uma dimensão equiparada à literatura, em que tenta transformá-la em um texto móvel, por meio do corpo de Jerome. Ela tenta, em Nome-do-Pai, se inscrever no campo do Outro.
Mas é importante ressaltar que, ao mesmo tempo, em que Nagiko encontra-se embaraçada em seu sintoma (a escrita), seu sintoma também é uma solução. Solução singular a Nagiko, que, no nível sexual, é uma solução à ausência da relação. A escrita nada mais é que uma tentativa de tratar pelo significante, o real. Nesse sentido, o sintoma de Nagiko faz suplência à relação sexual que não existe, na medida em que há uma escrita no corpo, não apenas em sua constituição corporal, mas também quando esse corpo se empresta enquanto papel para que outras escritas se depositem. Ou seja, o corpo é derivado de uma escrita e a escrita advém do corpo.
O real comanda a atividade da escrita de Nagiko. Soler (SOLER, 2010, p. 53) afirma: "[...] certos sujeitos conseguem se renomear por meio de suas obras". Será que Nagiko tenta se renomear através de seu sintoma? Ou ainda, será que ela tenta desfazer uma escritura de origem, escrevendo, para se re-escrever? Talvez a escrita de Nagiko seja uma tentativa de se desenlaçar para reenlaçar em outro lugar. A escrita faz função sintomática para que Nagiko se nomeie a partir de sua singularidade. Ela faz esforços para sustentar o pai decaído, como ela afirma: "Ser escritora para honrar meu pai!" Soler (SOLER, 2016) diz que o nome próprio recebido por meio da genealogia, é insuficiente para que o sujeito se identifique enquanto um, apenas um. Soler (SOLER, 2016, p. 173) nos lembra, ainda, da historia da gênese: "Depois de ter criado cada uma das coisas, Deus lhe deu um nome". Essa história de gênese remete ao ritual do pai de Nagiko, em que ela é nomeada pelo Outro. Essa nomeação de seu pai, juntamente com a cena traumática, torna-a prisioneira. Ela faz assim uma tentativa, tentativa de enodar o patronímico à singularidade, visando escrever seu nome, por meio da escrita enquanto sintoma. Será que a escrita de Nagiko faz com que sua grafia deixe um traço singular infalsificável? "Nomear é um ato", diz Lacan (LACAN, 1975/1976, p. 74) e acrescento, o ato é algo que o sujeito realiza sem saber e que produz efeitos.
No desfecho do filme, Nagiko busca uma saída pela maternidade. Ela sepulta "O livro do amante" sob um bonsai e repete no corpo do seu bebê, o ritual que recebera do seu pai: "Se Deus aprovou sua criação, Ele trouxe à vida o modelo em barro assinando o seu próprio nome".
Nagiko repete o mesmo ritual do pai por meio de seu sintoma, deslocando apenas sua parceria sintomática, dos amantes ao filho. Se Nagiko se nomeia a partir de seu sintoma singular, a escrita, entretanto ela sugere pela maternidade que não é capaz de se separar do seu gozo, mais-de-gozar, não destacando assim, o objeto a enquanto causa de desejo. Aqui, não se pode explicar com a teoria freudiana, em que a maternidade seria uma forma de responder o que é ser uma mulher. Ser mãe não obtura a mulher, já que mãe não é sinônimo de mulher. Enquanto as mães são submetidas à castração, as mulheres são "não-todas" submetidas a ela.
Nagiko, enquanto mulher, busca na maternidade uma solução para o seu ser. Antes, Nagiko fazia suplência à ausência da relação sexual com a escrita, no final do filme, além da escrita ela tenta fazer suplência com a maternidade. Como Lacan (LACAN, 1975/1985, p. 49) indica: "Para esse gozo que ela é, não-toda, quer dizer, que a faz em algum lugar ausente de si mesma, ausente enquanto sujeito, ela encontrará, como rolha, esse a que será seu filho". Ou ainda, Lacan (LACAN, 1969/2001, p. 374) dirá: "Ela satura [...] a modalidade de falta em que se especifica o desejo (da mãe)". Todavia, será que o tornar-se mãe recobrirá o ser mulher em Nagiko? Será que a maternidade preencherá o buraco do real do trauma, buraco que denuncia que não há relação sexual?
Considerações finais
Como menciona Caldas (CALDAS, 2007, p. 18), ao se referir a Nagiko: "A personagem de ficção vem nos mostrar a direção que lhe foi dada e o resultado alcançado. Ela não demanda saber, ela oferece saber". Nagiko nos ensina, clinicamente, o que Lacan (LACAN, 1975/1985, p. 41) afirma: "A escrita não é de modo algum do mesmo registro, da mesma cepa se vocês me permitem esta expressão, que o significante". Pois a escrita é a letra que não se fabrica como o significante. A letra tem função de suporte, embora manifeste uma ausência de sentido e uma colônia de gozo.
Nagiko tenta, com seu sintoma, encontrar uma solução para evitar o real do traumático, tratar o real. Mas, como sua escrita, ela não cessa de não escrever a escrita para a relação sexual (já que a relação sexual é da ordem da impossibilidade de ser escrita), resta a Nagiko a necessidade de repetir esse arranjo, seu sintoma.
Esse arranjo sintomático de Nagiko funciona como solução, pois tenta recobrir um gozo traumático. Uma solução que não elimina todo o real em jogo, pois sempre resta um gozo a ser velado. A maternidade mostra a tentativa desse velamento. Assim, Nagiko escreve treze livros, mas não consegue se re-escrever, ficando à mercê do Outro. Nagiko, mesmo escrevendo, não consegue ser autora de sua própria vida, pois o objeto a, enquanto mais-de-gozar, não se abstrai para que surja um sujeito do desejo. Observe-se que o ritual do pai, a cena traumática e a história do livro (Livro de Cabeceira) determinam a vida de Nagiko. É necessário que Nagiko crie uma ficção para que seja causada enquanto sujeito e saia da repetição. A escrita evitou que Nagiko ficasse a deriva e se afundasse a um gozo desbussolado. A escrita fez uma suplência sintomática subjetiva.
O filme elucida a clínica contemporânea a partir de Nagiko, onde o simbólico é insuficientemente operatório, ou seja, Nagiko não consegue elaborar a cena traumática, o que a leva a escrever no nível do real do corpo. Nossa época, marcada pelo desfalecimento do Nome-do-Pai, implica a presentificação de um real e a necessidade do sujeito criar arranjos singulares para que não se inunde de um sofrimento sem limites.
Referências
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Artigo recebido em: 01/02/2016
Aprovado para publicação em: 06/04/2016
Imagem Seta Endereço para correspondência
Carla de Abreu Machado Derzi
E-mail: carladerzi@mail.com
*Psicanalista, mestrado Psicanálise/Universidade Paris VIII (Vincennes-Saint Denis-Paris-França), doutorado Psicanálise/Universidade Paris VIII (Vincennes-Saint Denis-Paris-França), profa. Curso de Psicologia/Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas).