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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437versão On-line ISSN 2175-3482

Estud. psicanal.  n.29 Belo Horizonte set. 2006

 

TEXTOS SELECIONADOS

 

Ensaio sobre a experiência estética da arte em Ravel: o Bolèro

 

On the aesthetical experience of Maurice Ravel´s composition – Bolèro

 

 

Sílvia Machado LageI; Sílvia Regina Gomes FoscariniII

I Advogada. Pós-graduada em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
II Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais – CPMG

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

No presente ensaio pretende-se examinar as relações entre psicanálise, música e dança e, em particular, o sentido estético do recurso à experiência pulsional da obra de arte em alguns autores, tomando-se como paradigma o “Boléro de Ravel”. A hipótese é de que a apreciação da obra de Ravel, em suas distorções da forma e pungência sonora, pode nos tornar aptos a compreender – e não “interpretar” – o fenômeno da arte e seus efeitos subjetivos a partir do arcabouço conceitual da psicanálise.

Palavras-chave: Estética e psicanálise, Dança, Música, Boléro de Ravel, Gozo musical, Experiência subjetiva da obra de arte, Pulsão.


ABSTRACT

This essay intends to examine the relations between psychoanalysis, music and dance and specially the aesthetic recourse to the pulsing experience of the work of art in some authors production. For all the Ravel’s Bolero has been taken as a paradigm. The hypothesis is that the appreciation of Ravel’s work, with its distortions of form and the pungency of its melody enable us to comprehend- instead of interpreting- the phenomenon of art and its subjective effects approached from the conceptual framework of psychoanalysi.

Keywords: Aesthetics and psychoanalysis, Dance, Music, Ravel’s Bolero, Musical enjoyment, Emptiness of significance, Subjective experience of the work of art.


 

 

I

Ainda hoje se costuma refletir sobre o fenômeno da arte a partir de formas de pensamento que se encontram arraigadas no passado recente. É, pois, no mínimo curioso que se tenda a abordar as diferentes elaborações artísticas como “as mais puras e solitárias” dentre as atividades que deixam seus restos na cultura: um vício ironicamente “iluminista” e que vincula fortemente o período romântico à atualidade, concebendo a arte – e qualquer experiência estética em geral – como “um fim em si mesmo”. Todavia, se por um lado herdamos do século XIX este significado que ainda resiste, foi desta mesma época que muitos, como Freud, partiram rumo à sua explosão, possibilitando uma série sem igual de deslocamentos: do eu ao sujeito, da transparência à opacidade da linguagem e da história, só para citarmos alguns. Como nos diz Salzman:

(...) o século XIX nos ensinou a compreender a obra de arte como um produto condicionado pelo seu contexto histórico e cultural e, ao mesmo tempo e sem contradição, como expressão individual de uma artística singularidade. A própria conceituação de “avant-garde”, como comumente se a entende, é uma concepção pertencente ao século XIX – uma concepção romântica.1

Entretanto, se podemos afirmar que boa parte das idéias que hoje se fazem ressoar nas reflexões sobre as artes adveio do passado, menos obviamente se nos apercebemos que a própria abordagem romântica do artista como um “ser individualista” pode ter causado a originalidade destoante das obras que então começaram a se apresentar. Não se trata de mera tautologia: num certo sentido, podem-se tomar as rupturas estruturais veiculadas pela arte moderna como um “aborto cultural” advindo de um processo histórico de transformações que, necessariamente, desde longa data se intensificava e se impunha à forma das criações artísticas no Ocidente. Isso posto, e no sentido de elucidar melhor essa premissa especificamente no campo da dança, convém que façamos um levantamento sucinto de sua evolução histórica; dada a escassa exploração do tema pelo viés psicanalítico ou por aqueles que não fazem dela o seu percurso profissional.

Segundo Ellmerich,2 pode-se supor que todos os povos dancem. O autor observa que era comum, nas culturas primitivas, a execução de movimentos individuais de giros a fim de produzir efeitos específicos, tais como a perda do sentido de localização e a sensação de vertigem – sensações muito próximas a um “estado de êxtase” –; fenômeno que, de acordo com Wosien, por colocar o sujeito “em contato com a força vital”, o capacitava a se aperceber, para além do pensamento e da vontade, da existência de algo semelhante a uma “descarga rítmica de energia” e que o conduzia a uma expressão espontânea de seus movimentos corporais:

Para o homem primitivo, cada coisa possuía um aspecto misterioso e incalculável que podia desafiá-lo a qualquer momento, aniquilá-lo mediante seu simples aparecimento; isto é, acossá-lo através de uma experiência de revelação.3

No que tange à história das danças primitivas, sabe-se que, em sua origem, essas produções foram motivadas por manifestações rítmicas de cunho religioso. Da mesma forma, é consenso entre os historiadores especializados que as primeiras estruturas coreográficas, representadas em pedras, constituem fortes indícios da existência de formações grupais onde os movimentos eram executados em círculo, como numa roda. Nestes grupos, a própria experiência do tempo baseava-se nos padrões cíclicos da lua e a morte não era entendida a partir da duração: assim como os ciclos da lua, a própria vida estava fadada a renascer: dançava-se em todas as ocasiões e por todos os motivos, pelo nascimento ou morte; por dor ou por amor... O caráter religioso, fortemente arraigado e preponderante nas danças primitivas, funcionava como mediação ante a experiência contraditória da Natureza, bem espelhada no sentimento de desamparo humano frente à sua indiferença.

Num “salto histórico” – período por demais complexo para que possamos esmiuçá-lo -, passemos ao ano de 1859, quando o estilo romântico francês invade São Petersburgo e o ballet russo ganha uma nova técnica e expressão através da obra do coreógrafo Marius Petipa: diferentemente do estilo francês, em suas obras os temas foram escolhidos em função de suas possibilidades cênicas; ou seja, visando os olhos do espectador e não as emoções do próprio artista. Entretanto, mesmo sob a égide do elemento apolíneo – facilmente identificado no rigor técnico com que Petipa formulava suas coreografias –, sua obra também clama por Dioniso, na medida em que os belos movimentos executados pelos bailarinos assumem a forma de um “ato poético”, perpassando toda a cena. Assim, se por um lado o espectador é surpreendido por um espetáculo de proezas técnicas e “superficialidades”, noutros momentos o que vislumbra é algo paradoxal à própria cena - o que inevitavelmente lhe causa certa “surpresa”... E eis que aquele que “escapa ao tempo e ao espaço” reproduz na cena o seu salto “na pura poesia do movimento”: um apelo sensorial que retira o olhar do sujeito-espectador de sua passividade, convocando-o à “pura possibilidade”, como afirma Weil:

A possibilidade de crer na existência desse ponto de apelo detém o estranho poder de fazer evoluir os gestos desajeitados e imprecisos em direção a um movimento súbito, habitado pela graça e pela precisão, como se com o desaparecimento da dúvida pudesse desaparecer a indecisão que parasitava os movimentos do sujeito e surgir uma espécie de decisão nova: decisão de direção a.4

Posteriormente, à saturação do romantismo e do “academicismo” no campo da dança – que tendiam a uma “arte interpretativa” em detrimento de uma representação que valorizasse os diversos aspectos da subjetividade humana – se sobrepôs o neoclassicismo, onde uma nova organização estética das coreografias passou a ser promovida pelos artistas, revitalizando seus movimentos a serviço de um referencial rítmico diferente do até então observado no romantismo. Ressalte-se que este “movimento de superação” no campo da dança é um fenômeno que se impõe continuamente no tempo, pelo que aponta para diversas transformações subjetivas que tomam expressão na própria cultura - a chamada dança “moderna” e “contemporânea” são bons exemplos do aparecimento de uma nova ordem na qual o sujeito-bailarino “se faz participar” não como mero executor, escravo da técnica e imune à expressão de sua individualidade, mas como contraponto subjetivo necessário e singular à arte: ”objeto e sujeito de sua própria obra”. Objeto no que tange à faculdade do bailarino de aprimorar-se em sua técnica para se adaptar à coreografia – ”sulcar no corpo o movimento” – e sujeito com relação à vertente de sua própria criação artística – ao que se abre ao “novo”, ao inaudito. O gesto do bailarino, como bem soube dizer Garaudy, “induz a uma experiência não conceitualizável, não redutível à palavra. Se pudéssemos dizer uma certa coisa, não precisaríamos dançá-la”.5

Com relação à história da música, restringimos-nos à simples menção das particulares características do período em que se deu o “nascimento” da psicanálise e da música moderna: o século XIX.6 No campo musical os efeitos do movimento romântico ainda res-soam na própria estrutura da escrita musical do Ocidente e, de forma semelhante ao que ocorreu com a dança, tem-se apontado amiúde diversas razões para conjeturarmos a respeito de uma ruptura ainda maior, a partir de um determinado momento, no próprio modo de expressão da música; ou seja, na subjetividade do compositor:

(...) podemos definir esse momento como o instante em que a tonalidade tradicional cessou de fornecer a fundamentação essencial expressiva e organizacional ao pensamento musical e foi substituída por outras maneiras de expressão e de organização musicais. Esta mudança ocorreu efetivamente nos anos vizinhos a 1900, e é este fato que nos permite falar autonomamente da música do século XX.7 (grifamos)

A princípio há, portanto, duas hipóteses a serem extraídas: em primeiro lugar, que a forma com que a melodia e a harmonia musicais – a tonalidade – se estruturavam não mais era capaz de realizar o que o compositor desejava expressar (ou, melhor, causar) –; e, a segunda – mais geral e que decorre da primeira –, que progressivamente a cultura, por suas obras, vai-se tornando um objeto reconhecedor do sujeito, (re)sig-nificando-o. Como já afirmado com relação à dança, pode-se inferir que a verdadeira criação (poiésis) parece depender da capacidade que o sujeito tem de causar em si o que parece carecer de qualquer origem; já que a cultura se escreve a posteriori. E eis que, neste particular, a música se nos apresenta, num certo sentido, por metáforas; eis que, como linguagem, o que aparece na circunstância imediata da palavra já vem significado pela memória de um povo.

Como objeto, portanto – e no limite –, a música é “puro transporte de significantes”, embora careça do valor semântico que a possa cristalizar em um significado qualquer. Se for assim, o que entendemos por “cultura” não passa do cultivo que fazemos do significante e, se arriscamos aqui uma leitura psicanalítica da música e da dança modernas (in casu, do Bolèro de Ravel), é porque a própria natureza geral dos conceitos psicanalíticos é o que permite que os atualizemos dessa forma: a psicanálise, como produção científico-cultural que originalmente estilhaçou significações pré-estabelecidas, paradoxalmente conseguiu preservar a sua originalidade operacional – e isso se deve não somente à sua aliança com uma teoria cujo feitiço ainda é capaz de suspender o sentido discursivo exigido pela “cultura” e sim, fundamentalmente, porque as características de seu objeto epistêmico – o inconsciente – o exigem: as suas variações, como a música e o “dançar, são imprevisíveis... Eis a magnitude do deslumbre freudiano que queremos, pois, ressaltar.

 

II

À época em que a psicanálise começou a se propagar pelo mundo, Maurice Ravel (1875-1937) – compositor francês e um dos maiores representantes do movimento neoclassicista europeu – já havia se tornado “celebridade” em seu país, sendo conhecido principalmente pela rigidez e perfeição estrutural de suas composições e por sua personalidade “excêntrica”. A descarnada condição deste criador “possesso” pela música, todavia, não nos ocupará neste trabalho, pelo contrário: o que o instrumento da psicanálise nos torna mais aptos a fazer é pensar a obra de Ravel no limite de sua capacidade de invocar, do longe da dimensão pulsional do sujeito, um gozo que amiúde se apresenta como “nostálgico”.

A começar pela música, aqui não se pretende mostrar como os compositores pensam a sua própria obra8; mas “como a música se pensa nos homens, e à sua revelia.”9 Tomando como paradigmas as reflexões de Alain Didier-Weil e a obra mais conhecida de Ravel – o Bolèro –, o que se pretende é uma leitura psicanalítica da experiência de escuta musical; ou melhor, do “gozo estético” que essa obra pode fazer atravessar na subjetividade do ouvinte que a ela se submete. A ênfase será dada, portanto, nos possíveis efeitos pulsionais que a música nos “causa” – e isso porque se pode supor, com Weil, que ela produz no sujeito uma inquisição compulsória do “diferente” ao “mesmo” e, simultaneamente, uma resposta, ainda que sem o seu consentimento –; tornando-nos aptos a compreender o fenômeno do “gozo musical” ao concebê-lo como uma aparição possível do “novo” em meio a uma sólida tradição de significações.

Com efeito, não é a música que é atravessada pelo compositor – uma obra só se eterniza se “atropela” o seu criador – é a sua composição que o atravessa, deslizando, sem solução de continuidade, de um para outro âmbito das significações subjetivas. E é nesta esfera pulsional que Weil procura uma raiz etiológica para a compreensão do que denominou “gozo musical”: segundo o autor, nas diferentes articulações lógico-temporais que se apresentam quando nos submetemos à experiência de escuta da música, há um momento crucial – o segundo e o terceiro “tempos lógicos” – em que ocorre um reviramento da pulsão no sentido de se aproximar de um objeto reconhecido como “definitivamente perdido”. À diferença do primeiro tempo – onde a falta é articulada com a pulsão e o ouvinte tentará capturá-la, deixando-se levar somente porque espera da música a satisfação de algo que nem sequer sabe-se desejado –; Weil propõe que, nesse instante fugaz (o segundo e o terceiro “tempos lógicos” são simultâneos), ocorreria uma mudança no destino da própria pulsão que, em conseqüência, faz deslocar a posição do ouvinte frente ao objeto faltoso. O ouvinte perceberá que é a própria música que lhe reconhece “como ouvinte” enquanto o atravessa: ela, que era uma resposta, torna-se uma questão, convocada a responder a partir da perspectiva do Sujeito (“sujeito a respondê-la”):

(...) a música se constitui como que me ouvindo, como sujeito finalmente – chamemo-lo por seu nome –, como sujeito suposto ouvir. Assim, a música, a produção, o que era a resposta inaugural torna-se a questão, e a produção do sujeito músico, ao constituir-se como sujeito suposto ouvir, consigna-me nesta posição de sujeito, à qual vou responder por um amor de transferência.10

Pode-se, então, afirmar que a música produz falta e que, neste instante, o ouvinte se vê convocado a responder a uma pergunta – a nomear o indizível? A música, pois, faz falta – ela a produz –; fenômeno que Pérez assim descreveu: “somente faz falta o que advém, o que chega a ser; bem o sabe o obsessivo, que pela preocupação de que nada lhe faça falta toma cuidado, até o detalhe mais absurdo, para evitar que nada seja”.11 Parece-nos que é isso o que Weil pretende ressaltar em seu texto, e mais: o “gozo musical” recebe uma significação dionisíaca, através de uma sensação que ele identifica com o sentimento de “nostalgia” nesta bela passagem que vale a pena transcrever:

“O próprio do efeito da música sobre nós é que ela tem este poder de metamorfose, de transmutação (...) ela transmuta em nostalgia a tristeza que há em nós. Quero dizer com isso que se estamos tristes ou deprimidos, podemos designar o objeto que nos falta, cuja falta nos falta, nos faz sofrer, e estar triste é triste, quero dizer, não é a fonte de nenhum gozo. O paradoxo da nostalgia – como dizia Victor Hugo, a nostalgia é a felicidade de estar triste – é que precisamente o que nos falta na nostalgia é de uma natureza que não podemos designar, e que amamos essa falta. (...) E o que eu lhes proponho é compreender efetivamente o gozo, uma das articulações do gozo musical, como tendo o poder de evaporar o objeto.”12

O sentimento de nostalgia requer, portanto, uma (des)sexualização do objeto – uma desafecção da falta –, e a transfiguração pulsional que a música nos convida tem justamente esse efeito sublimatório de “leveza”, que é o gozo – “leve” porque “vazio” em sua significação. Segundo Weil, uma vez que percebe o peso deste “vazio”, o ouvinte tem confirmada uma suspeita que nunca o deixará: compreende que o objeto agora dado por ele como “perdido” permanece e permanecerá desaparecido, simplesmente porque já o era. E, se num determinado momento se reconhece como criador das notas que o dizem, sincronicamente um terceiro “tempo lógico” se impõe ao ouvinte – que será capaz de identificar-se também com um “novo sujeito suposto ouvir”: a própria pulsão invocante:

(...) o sujeito dirige-se, desta vez, a um novo outro, que chamei de sujeito suposto ouvir, que não é mais totalmente o Outro do ponto de partida, é um novo outro. Esse novo outro, precisamente, não é mais o “vel”, não é mais “ou um ou outro”. Com esse novo outro ele vai também identificar-se, ou seja, há, a partir do alto do anel, uma dupla disposição em que o sujeito é ao mesmo tempo aquele que é falante e aquele que é ouvinte (entendant).13

Isso quer dizer que, ao mesmo tempo em que é convocada por nós como “sujeito suposto ouvir” – ou seja, de um lugar que ela não pode responder –, a música toca o não-sentido de nossas perguntas. A música é a prova viva que compulsiva e repetidamente nos sabatinamos à procura de uma resposta circunscrita a algo pelo qual não é possível nem perguntarmos... Trata-se, assim, de um “eterno retorno” do mesmo desejo ou, talvez, apenas de um “eterno retorno” do desejo – essa condição demasiado humana capaz de levar à usura do significante, ao reconhecimento do não-sentido como condição para um novo sentido –; enfim, a “uma nova forma de gozo”?14 Correr o risco de quebrar o círculo da repetição pura e conferir à existência um novo significado: este é o verdadeiro desafio a que a pulsão nos convoca. E é isso o que arriscamos afirmar e que a verdadeira obra de arte consegue realizar – e é por isto que ela sobrevive ao seu criador -: “esvaziar o significante”.

Quanto à dança – que ora abordaremos segundo as reflexões de Alain Badiou –, os efeitos na subjetividade de quem a experiencia parecem fazer supor que há algo a ela inerente que ultrapassa o estatuto de “mera movimentação corporal” em direção a uma “criação coreográfica”, fazendo com que se perpetue: há algo neste discurso corporal que aponta para uma perspectiva pulsional em seu universo e que se apresenta tanto na dimensão estética quanto na “inestética”:

A dança, precisamente por ser uma arte absolutamente efêmera, já que desaparece assim que ocorre, detém a maior carga de eternidade. A eternidade não consiste no “permanecer tal” ou na duração. A eternidade é precisamente o que conserva o desaparecimento. Quando um olhar “fulgurante” se apodera de um desvanecimento, só pode conservá-lo puro, fora de qualquer memória empírica. Não há outro meio de conservar o que desaparece senão conservá-lo eternamente.15

Reconhecer a presença pulsional diluída em todo o seu aparato técnico é, por conseqüência, outorgar à dança a possibilidade de expressar “o humano” – principalmente no que concerne à sua característica efêmera. Mas como pensar esse aspecto pulsional que se faz apresentar também através do movimento corporal? Ante o exposto, portanto, resta-nos apostar na possibilidade de que a dança seja interpretada pelo viés da operacionalidade psicanalítica, e ousaremos fazer essa leitura a partir da obra de Maurice Béjart – coreógrafo francês que se apropriou de forma bastante reveladora das técnicas orientais em seus ballets –; eis que, para esse artista, a dança “nasce dessa necessidade de dizer o indizível e conhecer o desconhecido, de estar em relação com o outro”; cultivando, pois, a arte de “fazer do gesto a palavra do silêncio”.16 Inspirado pela música de Ravel, coreografou um de seus mais ilustres trabalhos: o Bolèro. Em 1970 uma montagem imagística extremamente fiel à idealizada pelo próprio Ravel para o seu ballet foi finalmente realizada por Béjart, trazendo como solista um bailarino que, sito no centro do palco e praticamente sem sair do lugar, consegue submeter à sua volta, num grande círculo de “transe”, inúmeros outros bailarinos.

A partir do ritmo persistente da música de Ravel, dos movimentos ondulatórios do tronco do bailarino e de uma marcação acentuada do ritmo com os pés, a dança vai sucessivamente exprimindo uma espécie de “explosão pulsional” – efeito que nos remete, diga-se de passagem, à performance própria da realizada pelas danças de conotação primitiva. Passemos, então, ao Bolèro.

 

III

Existem diversas razões para que o ballet mais conhecido de Maurice Ravel – o Bolèro de 1928 – seja aqui abordado: seu estilo intencionalmente primitivo foi (e ainda é) atribuído à precariedade da saúde mental de seu compositor17, sendo não raro alvo de inúmeros debates, em sua maioria sob a égide da psiquiatria, e que persistem até os dias atuais: não pela primeira vez uma obra foi identificada absolutamente com a “demência”. O Bolèro também parece revelar, a despeito do enorme sucesso com que foi recebido à data de sua primeira apresentação (fato que por si só já soa estranho a ouvidos “inestetas”)18, a grande autenticidade das obras de Ravel: unindo certa obsessão tonal – compulsivamente repetida –, ritmo e coreografia exaustivos a um fim cataclismático, o que este ballet causa no espectador pode ser traduzido como uma profunda sensação “do desconhecido”: efeito que, num gradual e calculadíssimo crescendo, nos convoca a uma encantadora e irresistível “aniquilação”. Neste ponto – e tendo-se em vista alguns comentários anteriores a respeito da forma da escrita musical no Ocidente –, salta aos ouvidos um detalhe importante: Ravel consegue esse efeito nada “romântico” sem, contudo, precisar quebrar estruturalmente a tonalidade. Esta é, com efeito, “ultrapassada com pudor através de seu próprio exibicionismo.” Assim, a forte carga de classicismo e a simplicidade do Bolèro parecem apontar, na verdade, para uma “maior clareza de meios e uma mais ampla economia de expressão”19 no estilo de Ravel – que parecia se angustiar, à época de sua composição, com uma nova inspiração: a morte, cujo encontro se fazia cada vez mais presente em sua própria vida.20 Com efeito, tudo nos faz supor que Ravel punha-se a escrever quando o pressionava aquilo que lhe fazia falta; vez que sua resistência não era capaz de vencer o seu gênio e que o parto lento e árduo de suas obras – e não apenas do Bolèro – era uma “constante”.

Todavia, se por um lado esse encontro com a “morte” – ou com o “vazio”, se preferirmos – se nos apresenta como um irresistível ponto de partida para a compreensão do gozo musical, convém frisar que não se trata, aqui, de uma leitura “psicogeneticista” das intenções de Ravel21. A conjectura é, na verdade, uma interrogação: se é possível que a música, como afirma Weil, nos conduza a um encontro com a própria pulsão invocante, então se pode afirmar que a experiência estética do Bolèro é um encontro com o “vazio”, com o “inominável”? E, supondo-se como afirmativa a resposta, como explicar “o inexplicável”? Percebe-se que apostamos na primeira hipótese, mas reconhecemos que um mero “deslizar metafórico” talvez seja-nos absolutamente inútil ante tal tarefa “abismal” se visarmos a uma explicação que, indiferente ao que é “incapturável”, imobilizar-se na forma de uma “verdade”. “Não se pode buscar a própria busca”, como bem disse Pérez: o objeto não está apenas momentaneamente perdido; ele sequer existiu, e o que encontramos “quando temos a sensação de ter encontrado alguma coisa não é senão a nossa própria condição infantil de buscadores” – Freud soube bem frisar essa idéia22. Em sendo assim, o pathos entre o “mal estar cultural” e o gozo criador ainda conserva-se, pois, enigmático para a psicanálise; já que o gozo, além de pressupor um processo de (a)cul- turação, se articula principalmente com um “tempo perdido”:

Retornemos ao perfil do desejo: uma vez percebido o álibi da ordem previamente estabelecida, na sua pretensão de retorno ao paraíso, o sujeito encontra, antes de mais nada, a maçã mordida. “Vi que as coisas, quando buscam seu curso, encontram seu vazio”, disse o poeta. Isto nos permite inferir que o paradisíaco tempo do narcisismo torna-se mito, música, na sua posterior alienação. (...) A criação é a passagem ao ato da pulsão sublimada.23

Sabe-se que Ravel sempre conservou uma “candura infantil, enternecedora para os seus familiares, mas considerada, pelas testemunhas mais distantes dos seus artifícios pueris, como um enigma um tanto desapontador”24. Como se este grande compositor, tal como um “menino do carretel”, necessitasse dizer o tempo todo adeus a essa música que cria e que se desfaz no instante – ele “sabia” o preço incomensurável de sua maravilhosa liberdade...

Como na música, a coreografia do Bolèro de Ravel, de igual forma, consegue exprimir de modo surpreendente este “acontecer inconsciente”: há um corpo dito “dançante” e que, contudo, também se diz “anônimo”: antes mesmo que o movimento lhe alcance e se aproprie totalmente de seu ser, antes que se consiga atribuir a este corpo uma finalidade ou qualquer interpretação de sentido ou de valor, de alegria ou dor, algo “do nada” (a pulsão) parece repetidamente insistir em se apresentar...

Enfim, parece-nos que o termo “vazio” realmente traduz muito bem o significado da “questão” e da “resposta” a que o Bolèro de Ravel nos conduz, através dessa tonalidade berrante que, em sua apresentação, não se limita à insistência com que se repete: Ravel introduz-nos através de sua música, dezoito vezes seguidas, numa obstinação esmagadora e sem desenvolvimentos ou modulações em sua maior parte, infatigavelmente uma “Dor Maior em dó maior”; atenuada apenas pela alternância de dois temas estereotipados e sustentados por harmonias aparentemente banais... Ao fim de cada desempenho instrumental, a música intensifica-se em inúmeras possibilidades de “significação”, a ponto de levar o ouvinte (e o intérprete) a uma espécie de “auto-tortura” – efeito que Ravel consegue se utilizando apenas do modo crescendo na música e que o bailarino deve conseguir fazer transbordar, através de uma expressão facial desafetadamente imóvel ao dançar contorcendo o seu corpo sem literalmente sair do lugar.

O Bolèro tem sido descrito como uma obra “difícil de ouvir e de se ver” e, certamente, com razão: a cada repetição, somos levados a nos aprofundar nos abismos de nossa “Dor” e, sem querer dela nos livrar, nos fortalecemos neste insano desafio ao poder de Tanatus... Trata-se de um ballet de um incrível vigor e expressão rítmicos, onde a tensão é uma constante tanto no que concerne à coreografia quanto à música. Esta é, de fato, a característica mais brilhante da obra: na música, todo o estímulo deste “desafio” reside unicamente no manejo, pelo intérprete, do modo crescendo orquestral - que se reveste, a cada retorno do leitmotiv, da pura possibilidade de significância; enquanto os movimentos que a acompanham constituem-se, para o bailarino, num espaço contínuo de criação – e, portanto, ausente de qualquer direção –, onde novos movimentos necessariamente advirão das “profundezas” de seu corpo, causando-nos um “clarão ofuscante” sem nem mesmo pedir licença...

Obviamente não se esgotam aí as “significações” despertadas pela obra de Ravel nas subjetividades de quem a ela se submete e, talvez, seria ainda mais esclarecedor se nos indagássemos, como o fez Salzman, sobre como é significativo “o fato de que, de todos os mestres de maior envergadura do século, Ravel ofereceu a menor influência no desenvolvimento das idéias contemporâneas, mas possivelmente a maior de todas as influências no terreno da imaginação musical popular.”25 Ao nos depararmos, obviamente, com a experiência pulsional do Bolèro de Ravel, uma “realidade (des)familiarizada” numa infinidade de sensações poderá aparecer, convocados que somos pelas imagens e ritmo intrigantes que soam de sua arte – e que se unem em um tempo (in)certo, como se esperássemos pela realização de uma promessa não-feita e que se concretiza à nossa revelia. Com efeito, “a vivacidade da palavra não se deixa aprisionar entre aspas”26, e talvez seja mesmo a arte, como expressão “Maior” dos efeitos da cultura, aquilo que mais vivamente convoca o método psicanalítico a tomar posse do que lhe é próprio: a enigmática compreensão dos fenômenos psíquicos inconscientes.

 

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Endereço para correspondência:
Rua Paula Candido, 35/301
30430–260 – Belo Horizonte – MG

Recebido em 02/02/2006
Aceito em 10/05/2006

 

 

1 SALZMAN, Eric. Introdução à Música do Século XX, p. 13.
2 ELLMERICH, Luis. História da Dança; p. 90.
3 WOSIEN, Maria. Danças Sagradas, p. 73.
4 DIDIER WEIL, Alain. Invocações: Dionísio, Moisés, São Paulo e Freud, p.17.
5 GARAUDY, Roger. Dançar a vida, p. 37.
6 Sabe-se, por exemplo, que F. Nietzsche atribui a Sócrates a dissolução grega em O nascimento da Tragédia – obra em que o filósofo também nos esclarece sobre as origens do “acontecimento romântico” (ou Socratismo) e seus desdobramentos na concepção do “trágico”, como o próprio título faz ecoar.
7 SALZMAN, Eric. Introdução à Música do Século XX, p. 15.
8 Todavia, alguns comentários de Maurice Ravel sobre o Bolèro que nos se apresentarem pertinentes – e apenas ante o seu valor retórico, portanto – serão abordados como referência para uma melhor compreensão de sua obra.
9 LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido - Mitológicas, p. 21.
10 DIDIER-WEIL, Alain. A Nota azul; p.93.
11 PÉREZ, Carlos D. Do Gozo Criador; p.44.
12 DIDIER-WEIL, Alain. A Nota azul; p. 94.
13 DIDIER-WEIL, Alain. A Nota azul, p.98.
14 Idem, p. 100.
15 BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inestética, p. 92.
16 ELLMERICH, Luis. História da Dança; p. 125.
17 Os biógrafos de Ravel nos contam da sua terrível agonia moral, progressivamente enclausurado no interior de si mesmo por uma grave lesão cerebral “que deixara intacta a sua inteligência, ao mesmo tempo em que o privava da possibilidade de a empregar nas relações com os seus semelhantes. Durante os quatro últimos anos de sua vida conheceu o atroz suplício dum prisioneiro condenado a viver enterrado e que, firmemente ligado e amordaçado, visse erguer-se, pedra por pedra, a muralha que o havia de isolar do mundo exterior e condená-lo a uma lenta asfixia”. In VUILLERMOZ, Emile; História da Música, p. 341.
18 A estréia do Bolèro se deu na Ópera de Paris em 20/11/1928. A execução musical foi guiada por Ravel e a coreografia original foi de Bronislawa Nijinska para a bailarina russa Ida Rubstein.
19 SALZMAN, Eric. Introdução à música do século XX. p.71.
20 ROLAND, Manuel. Ravel; p. 123.
21 Inúmeros recentes estudos psiquiátricos tomam o desenvolvimento repetitivo do Bolèro como um efeito da progressiva deteriorização cerebral que acometia a saúde de Ravel, identificando a singularidade desta obra como uma Katharsis dos afetos que decorrem da demência. Até da doença de Alzheimer já se cogitou (devido aos sintomas compulsivos de repetição característicos desta doença): um “diagnóstico” grosseiro e falacioso, diga-se de passagem...
22 “O achado de um objeto é propriamente um reencontro.” in Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, apud. PÉREZ, Carlos D. Do Gozo Criador, p.155.
23 PÉREZ, Carlos D. Do gozo criador, p.156.
24 VUILLERMOZ, Emile; História da Música, p. 337.
25 SALZMAN, Eric. Introdução à música do século XX; p.72.
26 PÉREZ, Carlos D. Do Gozo Criador, p.110.

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