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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.33 no.50 São Paulo jul. 2010
EM PAUTA - CARTAS
Uma história de amor entre André e Dorine revelada em Carta a D.
A love history of André and Dorine revealed in Letter to D.
Vera L. C. Lamanno-Adamo*
Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região
RESUMO
Baseada no último livro do filósofo André Gorz, Carta a D., a autora discorre sobre o amor, sobre a vida, sobre a morte e sobre o processo de luto. No final articula uma aproximação entre arte e psicanálise.
Palavras-chave: Amor, Vida, Morte, Luto, Arte e psicanálise.
ABSTRACT
Based on Letter to D., the last book of the philosopher, André Gorz, the author goes through considerations about love, life, death and mourning process. It is also discussed a linking between art and psychoanalysis.
Keywords: Love, Life, Death, Mourning, Art and psychoanalysis.
I
Carta a D. é o último livro do filósofo André Gorz, escrito no ano de 2006, para homenagear sua mulher, Dorine, com quem partilhou a vida por quase sessenta anos. O livro é, ao mesmo tempo, uma reflexão lúcida e descarnada sobre o valor do amor e um balanço final da vida de seu autor, o que inclui, em primeiro lugar, o casamento de mais de meio século com a inglesa Dorine. Ela é D., a quem a “carta” se dirige, em um texto no qual o racional ex-marxista reconhece que sua formação intelectual muitas vezes o impediu de reconhecer os sentimentos transbordantes que nutria por sua mulher.
Os dois viveram uma história de amor e companheirismo após terem se conhecido em Lausanne, em uma noite de neve, em outubro de 1947. Desde então nunca mais se separaram. A partir do início da década de 1990 André viveu em retiro com Dorine, que sofria, há anos, de uma doença degenerativa.
Logo no início do livro André escreve:
Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e se mantém bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu te amo mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher. (Gorz, 2008, p. 5)
II
Quem me falou desse livro foi uma jovem analisanda de trinta e poucos anos que se encontrava às voltas com questões sobre o amor, casamento e separações. Ela me disse, enfática: “Gostaria que você lesse esse livro, Vera, e depois gostaria de conversar com você sobre ele, fiquei tão impactada... mas não vou falar mais nada, se você puder ler... e depois a gente conversar...”. Na sessão seguinte ela me trouxe um exemplar: “Leia, e depois a gente conversa”.
Confesso que estava meio incrédula quanto àquela história de amor. Quando dei uma olhada nas primeiras linhas, achei que possuía um tom açucarado demais, imaginei que versaria em torno de uma narrativa melancólica sobre a perda de um grande amor.
Levei adiante a leitura, mais curiosa pelo que poderia ter intrigado tanto a minha analisanda do que pelo livro em si. A primeira impressão sobre o texto ser uma escrita açucarada demais foi cedendo. Ao longo das páginas André vai reconstituindo a história da união entre eles, o porquê de estarem juntos, suas diferenças, suas similitudes, seus ajustes: “Preciso reconstituir a história do nosso amor para apreender todo o seu significado. Ela foi o que permitiu que nos tornássemos o que somos; um pelo outro. Eu lhe escrevo para entender o que vivi, o que vivemos juntos” (p. 6).
Ele fala de sua resistência para se casar e de como Dorine foi lhe cativando e se tornando a primeira mulher a quem conseguiu amar de corpo e alma, com quem se sentiu em ressonância profunda; seu primeiro amor verdadeiro, a mulher que deve ter trabalhado anos a fio para fazê-lo assumir sua própria existência, trabalho esse, segundo André, que nunca se completou.
Nós éramos, eu e você, confessou, “filhos da precariedade e do conflito, fomos feitos para nos proteger mutuamente contra ambos, e precisávamos criar juntos, um pelo outro, o lugar no mundo que originalmente nos tinha sido negado” (p. 15).
André vai assim me passando uma noção do amor como um lugar no mundo, o fundador de um mundo particular, com uma linguagem própria, um modo específico de habitar determinado espaço e tempo. Fiquei pensando que, talvez, uma grande história de amor se constitua assim: a criação conjunta de um pedaço de mundo originalmente negado para ambos.
III
Não consegui compreender o que havia em Carta a D. que impactara tanto a minha analisanda até chegar ao posfácio elaborado por Josué Ferreira da Silva, professor de sociologia da Unicamp e estudioso da obra de André Gorz: “É possível que muitos dos leitores terminem a leitura deste livro com um sentimento semelhante ao meu, o suicídio de André e Dorine, em 22 de setembro último, evento que chocou a mim e a muitas outras pessoas. Foi um puro ato de amor” (Silva, 2008, p. 76).
O casal cometeu suicídio em 22 de setembro de 2007, um ano após o término da escrita de Carta a D. Os corpos foram encontrados um ao lado do outro. Havia também, um cartaz, na porta da casa, pedindo que a polícia fosse avisada.
À noite eu vejo, às vezes, a silhueta de um homem que, numa estrada vazia e numa paisagem deserta, anda atrás de um carro fúnebre. Eu sou esse homem. É você que esse carro leva. Não quero assistir à sua cremação; nem quero receber a urna com as suas cinzas. Ouço a voz de Kathleen Ferrier cantando: “o mundo está vazio, não quero mais viver”, e desperto. Eu vigio sua respiração, minha mão toca você. Nós desejaríamos não sobreviver um à morte do outro. Dissemo-nos sempre, por impossível que seja, que, se tivéssemos uma segunda vida, iríamos querer passá-la juntos. (Gorz, 2008, p. 71)
IV
Na sessão seguinte conversei com a minha analisanda sobre o suicídio compartilhado de André e Dorine, e me lembrei, em um contraponto, de alguns testemunhos dolorosos da morte de pessoas amadas, que porém são acompanhados de uma espécie de pacificação em relação à ideia da própria morte: “Agora alguns estão ali, nas pastagens do céu, e nos esperam e logo correrei em direção a eles”, escreveu Tonia Cancrini (2006, p. 159) em Um tempo para a dor. Às vezes, disse, gosto de fantasiar uma carta imaginária, para deixar a quem amo, e gostaria de dizer a eles que nunca permaneçam nos escuros meandros da depressão e da apatia, mas que reajam cada vez que o mundo lhes pareça ser hostil e negativo, e, para fazer isso, gostaria de aconselhá-los a pular na garupa de um cavalo e galoparem em direção ao sol, não para conquistar o Olimpo, como Bellerofonte, que arrastou Pégaso e a si mesmo em direção à morte, mas para reencontrar aquele entusiasmo que torna a vida maravilhosa. “Se há um tempo para a dor”, enfatizou Cancrini, “há um tempo para a vida, para a felicidade, para ir a galope em direção ao sol” (p. 159).
Clare Winnicott (1994) fala de sua pacificação perante a perda, através do relato de um sonho, ocorrido um ano após a morte de seu marido Donald Winnicott. No sonho eles estavam em Londres, na loja favorita deles, onde há uma escadaria circular que leva a todos os andares. Estavam subindo e descendo essa escada, apanhando coisas aqui e acolá, comprando presentes de Natal para seus amigos. Estavam realmente fazendo uma orgia de compras, sabendo que, como de costume, acabariam guardando muitas das coisas para eles. De repente Clare se deu conta de que Donald estava vivo e pensou com alívio: “Agora não vou ter que me preocupar com o cartão de Natal”. Depois estavam sentados no restaurante tomando café da manhã, como era habitual, de frente um para o outro, cotovelos sobre a mesa, e ela o olhou em cheio no rosto e disse: “Donald, existe algo que temos de dizer um ao outro, alguma verdade que temos de dizer, o que é?”. Com seus olhos muito azuis, olhando resolutamente nos de Clare, ele respondeu: “Que isto é um sonho”. E Clare lentamente replicou: “Oh, sim, é claro, você morreu, você morreu um ano atrás”. E ele reiterou as palavras de sua mulher: “Sim, eu morri um ano atrás”.
E Florentino Ariza, personagem de Amor nos tempos do cólera, do escritor Gabriel García Márquez (1985), teve de esperar exatamente cinquenta anos, nove meses e quatro dias para realizar sua paixão por Fermina Daza. Na cama, entrelaçados, ele pensa: “Agora me sinto preenchido, mas o mais importante é que eu descobri que infinita é a vida e não a morte” (p. 429).
V
A psicanálise tem nos mostrado que capacidade de luto e desenvolvimento mental estão indissoluvelmente ligados. A capacidade de elaboração de lutos abre para as possibilidades de novos espaços mentais e para novas e intensas emoções. A perda do objeto, a princípio, pode retirar o interesse no mundo, de modo que o sujeito se concentra em sua própria dor, amplia o apego ao objeto perdido, torna-se melancólico e enterra-se com o próprio morto. A melancolia é menos a reação regressiva à perda do objeto do que a capacidade fantasmática (alucinatória) do sujeito, de manter vivo o objeto perdido (Fédida, 1999).
Porém, através de um trabalho de luto (Freud, 1915/1980), o sujeito pode elaborar o desapego, por meio de ódio ao objeto perdido ou por novas ligações, e se abrir para a possibilidade de novos espaços mentais. Um longo processo entremeado por culpa e angústias esmagadoras e por sonhos. Sonhos com a pessoa amada ainda viva. Não havia, de fato, morrido, fora apenas uma viagem longínqua, e agora a pessoa amada estava de volta; às vezes, no próprio sonho, constata-se que aquilo é só um sonho.
Diante da inevitabilidade da perda da mulher que amava, André também sonhava. À noite, às vezes ele via a silhueta de um homem que, em uma estrada vazia e em uma paisagem deserta, andava atrás de um carro fúnebre. Esse homem era ele, e era Dorine que o carro levava. Não queria ir à sua cremação, não queria receber a urna com as suas cinzas; ouvindo a voz de Kathleen Ferrier cantando “o mundo está vazio, não quero mais viver”, ele despertava.
Através de sonhos somos capazes de brincar com a vida e com a morte e experienciá-las como realidade. Tudo aquilo que parecia impensável, inexprimível, indizível, adquire uma imagem, uma música, uma realidade.
Talvez André e Dorine tenham sonhado, na morte conjunta, encontrar um lugar onde todas as culpas fossem canceladas e não houvesse mais abandono, nem separações, nem perdas, nem rejeições, somente afeto, amor, acolhimento. Quem sabe não tenham dado conta de tamanha dor, de uma perda insuportável, em que a vida perdia o sentido e não tinham no que se agarrar.
Talvez tenham escolhido se suicidar a partir de uma profunda elaboração da mais dolorosa de todas as perdas: a perda da própria vida.
Costuma-se dizer que envelhecemos e morremos como vivemos, e uma vida plena e rica levaria com mais tranquilidade ao envelhecimento e à morte. Mas isto está longe de ser a regra. Não se renuncia facilmente à vida.
Em um livro escrito logo após a morte de seu marido Otávio, Maud Mannoni (1995) conta que Françoise Dolto dizia tranquilamente que se morre quando se termina de viver, e que viver, para ela, era sinônimo de atividade.
Ligada por tubos e balões de oxigênio, continuou assim, durante os últimos meses de sua vida, a receber no leito alunos e colegas, temendo que a evolução da doença não lhe deixasse tempo para transmitir a gerações futuras o essencial de uma luta que foi sua razão de viver: a defesa dos direitos das crianças. Segundo Mannoni, a morte surpreendeu Dolto em plena atividade, aos oitenta anos de idade. Morreu em serviço, como morrem os combatentes, oscilando, no entanto, entre o desejo de não faltar a uma tradição de ensinamento e a vontade de reencontrar Boris, seu marido, cujo luto fora difícil de elaborar. A perda de seu amado deixou-a amputada de uma parte de si mesma. Assim, enfrentou a própria morte de forma serena, embora cedo demais, deixando a realização de uma obra inacabada (a carta de declaração dos direitos infantis ainda não estava totalmente finalizada), mas Françoise se persuadia de que em breve iria reencontrar Boris. Morreu aceitando que fosse assim.
Segundo o relato de Mannoni (1995), o mesmo não ocorreu com Fedor, seu amigo, que se aposentou compulsoriamente acometido por sérios problemas cardíacos e isolou-se: por pudor, não dividia o drama de sua solidão com os que o cercavam. Por mais que parentes e amigos assegurassem sua presença, Fedor, em certos momentos, rompia o contato com eles. Os aspectos invalidantes de sua doença foram assimilados, por ele, como a própria morte. E, nos conta Maud, que seu marido Otávio queria viver. A última palavra de sua vida foi um grito de revolta esconjuratória, muitas vezes repetido: “O diabo não me terá!”. A morte não foi sua escolha.
Carta a D., introduzida na sala de análise, nos levou longe.
Alguns escritos, assim como certos sonhos, têm esse poder de ativar em nosso interior uma necessidade de conversar com eles, sintetizá-los, escrever sobre eles, buscar um ponto de ligação entre o que mostram e o que reconhecemos de nós mesmos naquela música, imagem, ficção.
Albert Dines, em ensaio publicado na Folha de S.Paulo em 20 de dezembro de 1997, diz que arte é o que toca o destinatário e o transforma em artista. Se aquele verso, melodia, imagem, emoção e experiência conseguem despertar outros versos, melodias, imagens e experiências armazenadas em nosso repertório, o esforço estético ou intelectual do autor deu resultado.
Na profusão de definições sobre arte, esta concebida por Dines serve também para definir, de forma simples, palpável, quase pragmática, o que se espera de um encontro analítico: afinação entre dois artistas, a criação “batendo” na sensibilidade do receptor para convertê-lo em participante ativo do processo, uma via de mão dupla entre o processo interior de um e sua capacidade de extravasar e mobilizar o processo interior do outro.
Referências
Cancrini, T. (2006). Um tempo para a dor. São Paulo: Departamento de Publicações da Sociedade Brasileira de Psicanálise. [ Links ]
Fédida, P. (1999). Depressão. São Paulo: Escuta. [ Links ].
Freud, S. (1980). Luto e melancolia. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 14, pp. 275-291). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1915). [ Links ]
García Márquez, G. (1985). O amor nos tempos do cólera. Rio de Janeiro: Record. [ Links ]
Gorz, A. (2008). Carta a D. São Paulo: Cosac Naify. [ Links ]
Mannoni, M. (1995). O nomeável e o inominável. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. [ Links ]
Silva, J. F. (2008). Posfácio. In A. Gorz, Carta a D. (pp. 73-76). São Paulo: Cosac Naify. [ Links ]
Winnicott, C. et al. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Endereço para correspondência
Vera L. C. Lamanno-Adamo
Av. João Mendes Jr., 180/17
13024-030 – Campinas – SP
E-mail: vera.adamo@ig.com.br
Recebido: 15/03/2010
Aceito: 30/03/2010
* Membro efetivo e analista didata da SBPSP, membro do Núcleo de Psicanálise de Campinas e Região.