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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo jul./dez. 2021
O OLHAR DE ULISSES
Olhares de Ulisses
Ulysses' eyes
Mário Sérgio de Moraes
Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é pesquisador da usp no Núcleo de Estudos, Diversidades e Intolerâncias (Diversitas). Professor titular em Cultura Brasileira na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC). Autor de diversos livros, atua no campo da cidadania e dos direitos humanos - Mogi das Cruzes / memoraes@hotmail.com
RESUMO
Trata-se de uma interpretação da Odisseia, de Homero, através do diálogo entre duas ciências, a história e a psicanálise, centrada na importância da memória como construção de identidade pessoal e coletiva. Busca-se entender a relação entre lembranças, esquecimentos e silêncios coletivos produzidos e impostos por manipulações dos poderes oficiais.
Palavras-chave: memória, lembranças, esquecimentos, manipulações
ABSTRACT
This is an interpretation of Homer's Odyssey, through the dialogue between two sciences, history and psychoanalysis, focused on the importance of memory as a construction of personal and collective identity. It seeks to understand the relationship between memories, forgetfulness and collective silences produced and imposed by manipulations of official powers.
Keywords: memory, memories, forgetfulness, manipulations
A vida perdeu para a morte,
mas a memória ganha
sua luta contra o nada.
(Tzvetan Todorov)
Inúmeros analistas e historiadores, como Adorno e Horkheimer (1985) e Jeanne Marie Gagnebin (2018), leem a tragédia grega do personagem Ulisses, na Odisseia, em dois planos: a coletiva e a pessoal.
A primeira leitura é a sobrevivência do herói e sua trajetória ao percorrer um mar sem caminhos, enfrentando a provação contra monstros, animais e deuses superados pela astúcia ou força de Ulisses. É uma experiência que mostra as adversidades do protagonista em seu retorno a Ítaca, onde os aqueus reafirmavam o ideal civilizatório: o lar, família e pátria.
O herói luta para manter o que é fundamental na narrativa trágica: contar aos outros o que vivenciou através da pá-lavra, decantando e depurando a busca de si mesmo e a história de todos. Reforça um passado que não pode passar. Poderia até dizer: somos aquilo que somamos com tantos.
Na segunda leitura, num foco mais individual, esses autores - seguindo o diagnóstico de Freud - põem ênfase no custo dessa Odisseia: a transição das agruras míticas da infância para a idade racional do adulto. Fazem-no pela repressão da libido mais originária, o enrijecimento do eu prazeroso dos instintos que precisavam ser recalcados. A imagem mais notável é o corpo de Ulisses atado ao mastro de seu barco, reprimindo sua própria vontade e protegendo-se dos encantos das sereias.
Nas duas situações a vitória de Ulisses se dá pela rememoração oral, assegurando o domínio sobre a natureza externa e interna do que experimentou e construiu sobre si mesmo.
É sempre um relato de ambiguidades, por vezes insólito, vago e, ao mesmo tempo, único e singular, mas que revela vestígios do que viu com olhar detalhista, evidenciando o todo. Como Italo Calvino, em seu livro As cidades invisíveis (1999), quando o aventureiro Marco Polo narra ao soberano tártaro Kublai Khan as ambiguidades que presenciou em regiões distantes. O veneziano recorda a cidade de Zaira dizendo para o imperador:
Poderia falar de quantos degraus são feitas as ruas em formas de escada, da circunferência dos arcos dos pórticos, de quais lâminas são recobertos os tetos; mas sei que seria o mesmo não dizer nada. A cidade não é feita disso, mas das relações entre as medidas de seu espaço e os acontecimentos do passado: a distância do solo até um lampião e os pés pendentes de um usurpador enforcado... (Calvino, 1999, p. 14)
Viajantes, Ulisses e Marco Polo relatavam a importância do percurso pelos detalhes: a voz dos oráculos, amores desprezados, a hospitalidade ou não nas diversas ilhas que teciam o todo. Do pormenor ao ponto central. E como afirma o crítico literário Harold Bloom (2005), na Odisseia inexiste qualquer receita mágica que chega aos homens. Ao contrário, ilumina-se o flash de deuses desconhecidos e contraditórios que habitam dentro de nós.
No entanto, na viagem de Ulisses existiu um ponto fundamental, a grande ameaça que imporia ao herói uma regressão se ele houvesse sucumbido. O maior perigo não foi atravessar a ilha dos monstros Ciclopes que devoraram seus amigos, nem ir contra o deus do mar, Posseidon, e sua fúria, tampouco ficar encantado pelas sereias. A mais dramática ameaça foi a ancoragem na ilha do povo "pacífico" dos Lotófagos, que ofereciam aos visitantes um fruto tentador e perigoso, "doce como mel": o loto.
Seus habitantes não venciam os estrangeiros através da violência física, não os prendiam em cavernas, nem os seduziam com suas belezas femininas, mas provocavam um aprisionamento mais eficaz: a tentação do esquecimento.
Eis a passagem de Homero:
Desde ali, durante nove dias, fui levado por ventos funestos sobre o piscoso mar; no décimo, desembarcamos na ilha dos Lotófagos, que se nutrem de flores. Aí penetramos no continente, fizemos aguada e logo meus companheiros tomaram uma refeição, junto das rápidas naus. Depois de ter comido e bebido, tendo escolhido dois homens e dando-lhes um terceiro como arauto, mandei-os colher informações sobre quais eram os comedores de pão que na terra habitavam. Eles partiram ato contínuo e entraram em contato com os Lotófagos. Estes não pensaram em matá-los, senão que lhes deram loto para comer. Ora quem quer que saboreava este fruto doce como mel não mais queria trazer notícia nem voltar, mas preferia ficar ali, entre os Lotófagos comendo loto e esquecido do regresso. Tive que os reconduzir a força, debulhados em lágrimas para as naus... (1981, pp. 82-83)
No esquecimento - apagar, ocultar, silenciar - Ulisses perderia sua jornada heroica: descobrir o que outros procuravam, desistir de se tornar um porta-voz do desconhecido para a elucidação dos aqueus.
A Odisseia nos habilita o tempo todo que para não se perder é preciso não esquecer, ou melhor, não apenas memorizar, mas lutar contra o esquecimento para o fortalecimento de um ideal civilizatório. Rememorar continuadamente as glórias e os sofrimentos para as futuras gerações.
Porém, essa jornada em busca da elucidação é contraditória: por um lado, pode representar ou não riqueza a quem ouve, mas é uma dor constante para quem conta. Como Temístocles, segundo Cícero, famoso por sua capacidade de rememorar, dizia: "Eu retenho até mesmo o que não desejo reter, e não consigo esquecer o que desejo esquecer".
O rememorar para Ulisses tem um custo, cargas a guardar dos vivos e mortos. É exemplar o luto de Ulisses ao perder seu melhor amigo, Pátroclo, na guerra de Troia. Conseguiu expurgar toda a sua dor? Qual trauma/silêncio carregou? E como transformar em palavras o inenarrável? Decerto, a lembrança das intensidades não seria insuportável?
No conto de Jorge Luis Borges, "Funes, o memorioso", o protagonista é um personagem atormentado em razão da sua própria condição: ser uma enciclopédia ambulante, recordando incontáveis textos mas não sabendo como elaborar seu conhecimento: "Havia aprendido sem esforço o inglês, o francês, o português, o latim. Suspeito, contudo, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer diferenças, é generalizar, abstrair" (1986, p. 97).
No entanto, para Ulisses: silenciar; emudecer, jamais. Apesar do sofrimento, deu formas ao que viu e ressignificou sua existência em outro patamar: não somente na memória aos que conseguiram ouvi-lo, mas impulsionou outro discurso, isto é, a escuta pública no esclarecimento contínuo das identidades que uma sociedade ou um grupo refletem sobre si mesmos.
Comparativamente, é semelhante ao comportamento de uma testemunha e do ofício do historiador. A primeira reconstrói sua imagem num duplo movimento de lembranças e esquecimentos. São rastros de revelação e restos de retenção, que constituem uma pequena parte da memória pessoal. Ponto. Mas que sob o viés do historiador será reconfigurado num outro significado no coletivo.
A testemunha trágica
Para quem conta, no caso de Ulisses, sua memória relatada aos outros constitui-se em dissabores e frutos de experiências sofridas de um sobrevivente. Presenciou seus companheiros serem devorados pelo monstro Ciclope ou transformados em porcos na morada de Circe. A missão heroica é cuidar da voz dos mortos para que os vivos escutem.
Porém, não completou enterros em homenagem aos amigos que se foram. Depois chegando à terra dos Cimérios, na entrada do mundo subterrâneo, encontra a alma do seu amigo Elpenor, que reclama sepultura a tantos outros:
Vindas do fundo do Érebo, juntaram-se as almas dos mortos: jovens desposadas, mancebos, anciãos experimentados na vida, delicadas jovens de coração alanceado por penas recentes, e guerreiros sem conta feridos por lanças de bronze, vítimas de Ares com suas armaduras ensanguentadas! (Homero, 1981, p. 102)
Contar o trágico, presenciar o horror, observar o que não se quer ver, é doloroso. Via de regra, os sobreviventes voltam mudos porque o vivido não pode ser assimilado por palavras. Causa traumas, fere, separa, corta ao sujeito o acesso ao simbólico, em particular a linguagem. Rompe a consciência e faz adormecer o inassimilável.
Mas não perde, não apaga. O registro fica depositado no inconsciente. É como Freud constatou no seu texto "Uma nota sobre o bloco mágico", comparando o brinquedo da lousa mágica à memória:
O bloco mágico é uma prancha de resina ou cera castanha escura, com uma borda de papel... essa folha transparente constitui a parte mais interessante do pequeno dispositivo... Estando algo escrito sobre o bloco mágico, se levantarmos cuidadosamente o celuloide do papel encerado podemos também ver a escrita de modo claro na superfície do último e a questão de saber por que haveria necessidade da parte de celuloide da cobertura... O celuloide constitui um "escudo protetor contra estímulos"... Ele soluciona o problema de combinar as duas partes ou sistemas componentes separados ou inter-relacionados. Essa é exatamente a maneira pela qual, segundo a hipótese que acabo de mencionar, nosso aparelho mental desempenha a sua função perceptual.
A camada que recebe os estímulos não forma traços permanentes; os fundamentos da memória ocorrem em outros sistemas contíguos... Tive ainda a suspeita de que esse método descontínuo de funcionamento jaz fundo da origem de tempo. (1976, p. 287)
Assim, também, o esquecimento é necessário e gera uma situação paradoxal. De um lado, como fez Ulisses, não esquecer os mortos, não calar e testemunhar a dor do passado para que todos superem os descaminhos do percurso. Por outro lado, há que esquecer! Absorver todos os impactos sofridos seria o mesmo que arregalar os olhos diretamente à luz do sol. Ficaríamos cegos. Diante dessa ambiguidade, como permanecer vivo ou morto ao mesmo tempo?
Quais ouvidos escutam?
Aos que narram ocorre na relembrança o expurgo da dor. Libertam-se da fala anteriormente aprisionada. E, para os ouvintes, o aprendizado ou não na absorção de resistências contra passados cruéis.
A terapêutica do trauma não consiste em apagá-lo, mas, ao contrário, lembrá-lo melhor. Vale afirmar que diante das tragédias não existem propriamente superações, mas adaptações. Como aquele que perdeu a perna e, consciente da ausência do membro, sente cócegas inexistentes.
Porém, nos espaços públicos, o ouvido coletivo torna os dramas mais contraditórios, visto que a memória do presente é uma constante polifonia entre grupos dominados e dominadores, a história oficial e a outra, subalterna e silenciada.
Mas serão as recordações e esquecimentos entre grupos distintos as mesmas narrativas? Como elaboram seus autoritarismos os mandantes de assassinatos, torturas, castigos? E, de outro lado, as vítimas? Qual o apagamento que a crueldade ou impunidade promove nos responsáveis pelos crimes? E qual esclarecimento aos perseguidos?
É preciso afirmar que em meados do século XX o conceito de memória social se ampliou, passando a incluir o direito à memória e à contramemória de vítimas da violência política, étnica ou religiosa oprimidas pela história oficial. Evidentemente que o predomínio social de determinada lembrança não impede a existência de outras subterrâneas ou marginais ao discurso hegemônico.
Porém, no sentido da construção da memória o fundamental no texto da Odisseia - e creio o mais importante do conjunto trágico - está contido no diálogo entre o herói e o oráculo Tirésias, que aparece no meio dos mortos:
Ulisses: - Tirésias, os deuses teceram este destino, como lhes aprouve. Mas dize-me e responde sem nada ocultar. Vejo aqui a alma de minha defunta mãe, silenciosa junta do sangue, sem se atrever a encarar de frente seu filho nem a dirigir a palavra. Dize-me, senhor, como poderá ela conhecer que sou seu filho?...
Tirésias: - Vou declarar-te uma coisa muito simples, que deves gravar no espírito: aquele dos mortos, a quem deixares aproximar-te do sangue, dir-te-á a verdade, a quem o recusares, esses retirar-se-ão. (Homero, 1981, p. 103)
Entre os mortos e os vivos e no diálogo público dos atuais personagens em disputa pela memória, se desejam construir harmonias, não pode haver recusas, silêncios de abafamentos, manipulações feitas por hierarquias de poder. Tanto na memória pessoal quanto na escuta pública. Caso contrário, os corpos reaparecerão insepultos ou em sombras pressionadas pela memória coletiva dos resistentes ou se retirarão em crises permanentes dos aparelhos de Estado.
Estabelece-se a zona do não dito (Pollak, 1989) diante do inconsciente reprimido ou através da indústria do esquecimento no viver coletivo que, ao se constituírem em contínuos deslocamentos internos e externos moldados pela angústia da não escuta, promovem distanciamentos sociais naquilo que não pode ser posto a distância.
No último caso, a história brasileira está repleta dessas tentativas de apagamentos. Um caso exemplar desse tipo de situação foi exposto no século XIX por Joaquim Nabuco, em seu livro O abolicionismo, denunciando dissimulações dos proprietários escravocratas no silenciamento da voz do oprimido:
Encontram-se, por fim, declarações repetidas de que a escravidão entre nós é um estado muito brando e suave para o escravo, de fato melhor para este do que para o senhor, tão feliz pela descrição, que se chega a supor que os escravos, se fossem consultados, prefeririam o cativeiro a liberdade; o que tudo prova, apenas, que os jornais e os artigos não são escritos por escravos. (2000, pp. 87-88)
Para os executores da dominação existe uma forma duvidosa de esquecimento, isto é, o saber, mas fazendo de conta que não se sabe. É um movimento dissimulado, próprio de grupos que desejam apagar o passado. Tentam ocultá-lo afirmando que tais questões pouco interessam aos dias de hoje. Ou os acusam de revanchistas. E por que agem assim? Se disserem o que sabem elucidarão os fatos? Contribuirão para a dissolução de tantos privilégios atualíssimos?
O caso mais lamentável é a forma como foi aceita e aprovada a Lei da Anistia de 1979 dentro de uma ótica conciliadora entre ditadores e oposicionistas. Reparar a injustiça sobre os torturados e, ao mesmo tempo, não punindo os assassinos? Como se a vítima tivesse responsabilidade pelo seu próprio martírio ou concordasse com a sentença do algoz.
Os perseguidos para reinserir-se socialmente tiveram, muitas vezes, que silenciar sobre seu passado e direitos violados. A redemocratização pactuada impôs uma espécie de tabu social, um interdito, um silêncio imposto.
Mas por que esse ocultamento ao longo de nossa história?
Brasil: a visão do paraíso
Se a Odisseia é uma ode à memória revelada, qual mito explicaria o Brasil onde o esquecimento autoritário é imposto? Quem seria o Ulisses ou o anti-Ulisses de nossa mudez? Ou como interpretar o silêncio que se perpetua, desde a chegada dos colonizadores portugueses, num país que valida a paz dos cemitérios? Por que impedimos o luto de nossos corpos torturados?
E qual Freud analisaria nossas contradições? Sintetizando: qual Homero juntaria as percepções imaginárias? Qual Ulisses as vivenciaria? E qual Freud as explicaria?
Entre o falado mas não revelado sedimenta-se o mito fundador da nossa sociedade através da visão do paraíso. Conforme afirmou Sérgio Buarque de Holanda (1994), o nome Brasil não deriva somente da exploração do pau-brasil ensinada até hoje a nossas crianças, mas sobretudo veio de escritos medievais, entre 1325 e 1482, com o nome Insula de Brazil ou Isola de Brazil. A lenda consagrava a existência de um lugar no Oriente (do verbo orientar, direcionar) que era procurado e almejado como região de eterna juventude, abençoado, onde homens e animais viviam em paz. Um jardim do Éden.
Essa terra afortunada e bem-aventurada foi batizada na certidão de nascimento do nosso país através da carta de Pero Vaz de Caminha dirigida a El Rei D. Manuel em 1500:
De ponta a ponta, é tudo praia-plana, muito chã e formosa... a estender os olhos, não podemos ver senão terra com arvoredos que nos parecia muito longa... Nela até agora não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares... águas são muitas; infindas. E em tal maneira graciosa que, querendo-se aproveitar, dar-se-á nela tudo... porque, certo, essa gente é boa e boa simplicidade... E, Nosso Senhor, que lhes deu bons corpos e rostos, como a bons homens, por aqui nos trouxe, creio que não foi sem causa. (Ministério da Cultura, s.d.)
O texto dos navegantes dos séculos xvi e xvii também carrega as mesmas imagens de signos paradisíacos: abundância das águas (dizendo claramente que a terra é cortada pelos rios de que fala o Gênesis); a temperatura amena (a primavera eterna) e as qualidades das gentes que são belas, altivas, simples e inocentes (dizendo tacitamente que são as criaturas descritas pelo profeta Isaías). É o almejado Novo Mundo com frutos imensos, aves que se assemelhavam aos anjos do céu, opostas à velhice e decadência do Velho Mundo.
Essa visão do paraíso, Insula de Brazil ou Isola de Brazil, é constitutiva da imagem mítica fundadora do Brasil que se reproduz ao longo de nossa história por cinco séculos. Por aqui, os conflitos são diluídos pela temperança de gente amistosa, acolhedora, vivendo num país tropical "bonito por natureza".
No período escravista, foi descrito como "estado muito brando e suave para o escravo"; no século XIX, nas poesias nativistas e românticas; na letra do Hino Nacional, como "és belo, és forte, impávido, colosso"; nas poesias cívicas escolares; na ditadura militar, como "Brasil Potência"; e, ao longo dos tempos, como um "país pacífico". Ainda hoje, para algumas autoridades sequer existe o racismo.
Mas como aceitar a escravidão no paraíso? O Brasil foi o maior território escravista do hemisfério ocidental, recebendo, sozinho, quase 5 milhões de africanos, 40% do total de 12,5 milhões embarcados para a América. Como entender o genocídio da etnia indígena praticado continuadamente por cinco séculos? Quando os exploradores chegaram havia calculadamente 6 milhões de pessoas no litoral, e hoje, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ibge), 897 mil pessoas. Como aceitar natural que possuímos a terceira população carcerária do mundo, com 758 mil torturados, pois as condições da prisão não se assemelham a campos de concentração? Sabemos que os 10% mais ricos do país, segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano da Organização das Nações Unidas (rdu-onu), concentram 41,9% da renda nacional. O Brasil está em segundo lugar em má distribuição de renda no mundo, logo atrás do Catar, no Golfo Pérsico.
Esse mito do paraíso impõe um vínculo acorrentado com o passado que não cessa nunca, conserva-se perene, e por isso não permite a compreensão do retrato mais evidente: a existência de um país que ainda hoje se estrutura na naturalização da casa-grande e da senzala. Por isso nos escondemos nas formações reativas do esquecimento apressado, tão característico da pressa de perdoar os algozes. Acobertamos debates que seriam políticas de reparação de injustiças.
Nesse sentido, o mito da Odisseia difere da visão do paraíso, porque o primeiro é o próprio feito lendário da solução imaginária de tensões e conflitos da comunidade (no sentido grego da palavra mythos). Realiza o luto e cicatriza as feridas. O nosso, ao contrário, é uma representação que oculta - é uma ideologia - o conflito para adequá-la a quadras históricas que se repetem eternamente de forma recalcada.
Falamos no mito brasileiro também na acepção psicanalítica, ou seja, como impulso a repetição de algo que parece transformar-se de tal forma que, quanto mais parece outra coisa, tanto mais é a repetição do mesmo. No entanto, sua eficiência é notória ao criar um bloqueio à percepção da realidade impedindo de lidar com ela.
O Isola de Brazil é o gozo da aclamação de um espírito que agasalha e ao mesmo tempo castiga os que têm a coragem de subvertê-lo. Como consagração e punição ao que Freud explicou em "Totem e tabu":
O totem é, em primeiro lugar, o ancestral comum do clã, mas também seu espírito protetor e auxiliar, que lhe envia oráculos e, mesmo quando é perigoso para outros, conhece e poupa seus filhos...
O significado de tabu, se divide para nós, em duas direções opostas. Por um lado quer dizer "santo, consagrado"; por outro "inquietante, perigoso, proibido, impuro. (1912-1913/2012, p. 73)
Creio que em nosso caso o totem (espírito protetor) é acreditar que precisamos de um pai forte e amoroso, como órfãos, buscando figuras autoritárias e protetoras. Isso resulta numa permanente submissão à autoridade de governantes abusados, violentos. E no recalque, suspiramos como vítimas num outro idealizado e alheio a nossa história. Contentamo-nos em ser reconhecidos internacionalmente a partir da imagem de povo alegre, despreocupado e sensual que o colonizador fez de nós, desde a carta de Caminha.
O tabu é o recalque consagrado no cumprimento diário do "deixa pra lá", "vamos levando", "Deus protege", "tô muito bem", "deixar barato", "último povo feliz do planeta". É a repetição neurótica de um prejuízo cuja responsabilidade recai nas costas do outro, e ao se deslocar politicamente nas engenharias da classe dominante - ora na conciliação de classes, ora no autoritarismo mobilizador ou na ditadura explícita - petrifica a plateia a assistir "bestificados a proclamação da República", no afirmar de Aristides Lobo.
Como afirmou Maria Rita Kehl: "O que faltou ao Brasil Republicano não foi um pai/fundador cuja imagem pudesse sustentar nossa autoestima, mas a criação de mecanismos de incorporação de todas as classes sociais a vida da recém-proclamada República" (2004, p. 239).
E qual Freud poderia nos elucidar? Seria pretensão da minha parte responder a esta questão. Joaquim Nabuco? Abdias Nascimento? Florestan Fernandes? Darcy Ribeiro? Qual literato: Machado de Assis, Lima Barreto, Graciliano Ramos, Oswald ou Mário de Andrade, Guimarães Rosa? Sinceramente, não sei, mas entendo que não será a voz de nenhum iluminado por si mesmo que nos dará a bússola, mas o debate pelo não esquecimento. É como afirma o psicanalista Renato Mezan (1993), ao criar a palavra inquecer, isto é, incorporar a memória dolorida ao presente para evitar os fantasmas do inconsciente recalcado.
E qual reconciliação do passado ao presente? Na ótica dos direitos humanos, a paz só é reconquistada com quatro referências: direito à memória, reparação material às vítimas e seus familiares, criação de organismos de debate e divulgação dos fatos históricos e condenação judicial para os crimes cometidos contra a humanidade.
Finalmente, a Odisseia traz um trecho exemplar da epopeia de Ulisses ao atingir seus objetivos: revelar as suas lembranças a si mesmo e aos outros. Quando disfarçado de mendigo, e ainda não revelada sua identidade, mostra-se a uma velha escrava que, apalpando sua perna, reconheceu uma ferida cicatrizada, e disse: "Sem dúvida, tu és Ulisses, meu filho querido! E eu não te reconheci! foi preciso primeiro ter tocado no corpo do meu amo" (Homero, 1981, p. 102).
A ferida cicatrizada é o fecho de uma memória recomposta pelo ganho da escuta daquela que o amava, e tocando seu corpo sua tragédia pode ser revivida. Seus amigos, como Elpenor, disseram-lhe: "Não te afastes, deixando meu corpo sem lágrimas e sem sepultura, para que eu não suscite contra ti o ressentimento dos deuses..." (Homero, 1981, p. 102).
História pessoal ou coletiva que não cicatriza, como na perna de Ulisses, corre o risco de permanecer infeccionada por muito tempo, mas que no escamoteamento do não dito elabora a própria destruição.
Contar é preciso; recontar, ainda mais - para avaliarmos os limites da história e democracias do presente.
Referências
Adorno, T. W. e Horkheimer, M. (1985). Dialética do esclarecimento. Zahar. [ Links ]
Bloom, H. (2005). Onde encontrar a sabedoria? Objetiva. [ Links ]
Borges, J. L. (1986). Funes, o memorioso. In J. L. Borges, Ficções. Globo. [ Links ]
Calvino, I. (1999). As cidades invisíveis. Companhia das Letras. [ Links ]
Freud, S. (1976). Uma nota sobre o bloco mágico. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 19). Imago. [ Links ]
Freud, S. Totem e tabu. In S. Freud, Obras completas (P. C. Souza, Trad., Vol. 11, pp. 13-244). (Trabalho original publicado em 1912-1913) [ Links ]
Gagnebin, J. M. (2018). Lembrar, escrever, esquecer. Editora 34. [ Links ]
Holanda, S. B. (1994). Visão do paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colonização do Brasil. Companhia das Letras. [ Links ]
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Kehl, M. R. (2004). Ressentimento. Casa do Psicólogo. [ Links ]
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Pollak, M. (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 2(3),3-15. https://bit.ly/2Tnqm4U [ Links ]
Todorov, T. (2002). Memória do mal, tentação do bem. Arx. [ Links ]