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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.43 no.72 São Paulo jul./dez. 2021
LANÇAMENTO
O passeio de Ulisses entre o mítico e o profano
(Ou "O tour de Ulisses por Dublin, ciceroneado por James Joyce e escoltado por um drone psicanalítico")
Ulysses' stroll between the mythic and the profane
Luiz Carlos Uchôa Junqueira Filho
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP) - São Paulo / mr.junqueira@uol.com.br
RESUMO
O intuito deste trabalho é explicitar porque o Ulisses homérico era o herói preferido de James Joyce, permitindo que seu Ulisses estabelecesse um contraste entre o mítico e o profano. Como um benefício ao vértice psicanalítico, apresentamos exemplos coloquiais de fluxos de consciência.
Palavras-chave: James Joyce, Ulisses, mítico, profano
ABSTRACT
The aim of this paper is to elucidate why the Homeric Ulysses was James Joyce's chosen hero, allowing his Ulysses to engender a contrast between the mythic and the profane. As a sound benefit to psychoanalytical vertex, some colloquial examples of consciousness flow are given.
Keywords: James Joyce, Odysseus, mythical, profane
Neste pequeno ensaio, pretendo considerar o contraste entre o Ulisses homérico e o Ulisses joyceano. James Joyce (1882-1941), como sabemos, escolheu como persona central de seu work in progress uma paródia, atualizada pelas circunstâncias históricas de sua Irlanda natal, do famoso herói homérico. Este sobrevivente da Guerra de Troia destacou-se não tanto por suas façanhas guerreiras, mas como um herói paradigmático do desafio existencial, aquele que, iniciando-se no nascimento, transporta o indivíduo ao longo da vida, testando diuturnamente suas habilidades e suas limitações.
Ulisses (ou Odisseu) era um indivíduo poly-tropos, um exemplo acabado de trickster (ou multitruques), aquele personagem multicultural que é tanto vilão quanto herói civilizado, que é embusteiro, velhaco e cômico, destruidor e curativo, o espírito ousado que viola magicamente os tabus (Junqueira Filho, 2021, pp. 38-39). Suas habilidades granjearam-lhe fama, difundindo-se desde a elaboração da Odisseia (ao redor do século XII a.C.) até os nossos dias, como atestado, por exemplo, pelo belíssimo ensaio de Pietro Citati (2005), que descreve com elegância as características de sua "mente colorida". Por possuir uma mente sensível resiliente, sabe ser outro como ninguém, compreende que o choro dos vencidos é o mesmo que o choro dos vencedores, tem um poder malicioso de persuasão, exprimindo verdades como mentiras e mentiras como verdades. Seu estilo de artesão escrupuloso revela-se até nas etapas de elaboração das mentiras: ordem, coerência, verossimilhança, analogia e construção. É um exímio "contador de causos" e um errante figadal ou até um flâneur avant la lettre. Por essas linhas, temos ideia de seu extraordinário poder metamórfico, enquanto, por outro lado, a história de suas peregrinações pode ser vista como busca de autoconhecimento, que se completa com o retorno ao lar ou com o resgate de uma identidade por meio da reinserção num casamento de homofrosine, o enlace de almas gêmeas (Williams, 2006, pp. 219-235).
Os poemas homéricos tratam seus personagens como exemplos-tipos, generalizando seus comportamentos e sentimentos e encaixando-se na categoria de macro-história; já na narrativa joyceana, os personagens são um mix de ficção e autobiografia, algo que se aproxima da micro-história (ou história das mentalidades). Um historiador como Elias Saliba assinala que no poema homérico não existe monólogo interior pela falta das noções de subjetividade e de inconsciente, ao passo que em Joyce, sua estapafúrdica narrativa do inconsciente acaba sendo uma "descrição do mundo". Martin (2014, pp. 51-54) nos explica que a ideia do herói como alguém entre homem e deus é uma invenção especificamente grega. O poder de amaldiçoar ou causar dano a outros marcava o status de herói, tanto quanto a coragem em prol da sociedade: este seria o lado escuro do poder de fazer o bem ou curar. Em termos civis, as figuras heroicas eram muitas vezes pioneiras, fundadoras de uma cidade ou colônia, constituindo assim epítomes da história e das ambições de uma comunidade. No geral, Ulisses sempre zelou por sua inserção no padrão social, seja como rei, guerreiro, aristocrata, pai, marido e filho: ao final três gerações se reencontram, perfazendo uma imagem ideal de continuidade e regeneração.
É interessante que a raiz verbal do substantivo nostos tem a conotação de voltar são e salvo para casa e também de sair da escuridão para a luz, ou até de retornar da morte para a vida. Este talvez tenha sido um elemento fundamental para Joyce articular o drama do seu "herói anônimo" Leopoldo Bloom, o marido que sai de casa de manhã em busca de algum alívio na vida agitada de Dublin, para apaziguar sua dor de saber que, às cinco da tarde, sua amada mulher deverá encontrar-se com o amante. Note-se aqui um contraste interessante, já que o Ulisses homérico é um "herói identificado", seja em toda a Grécia, seja na posteridade, como o maquinador de um dos maiores episódios de fraude da história, a entrada dos guerreiros gregos em Troia, dentro de um cavalo de madeira.
Por seu turno, Leopoldo Bloom, o herói de Joyce, foi artesanalmente construído para representar "enfim um homem comum", para parodiarmos o título do livro que Anthony Burgess (1994) escreveu para introduzir James Joyce ao "leitor comum". Declan Kiberd (2012, pp. 13-92), em sua introdução que consta da tradução de Caetano Galindo do Ulisses, assinala que Joyce, indignado com a estupidez da Primeira Guerra Mundial, onde os homens mutilavam seus corpos em nome de virtudes abstratas, resolveu escrever um "épico materialista do corpo", lembrando ao mundo que se Ulisses fosse um deus, decerto seria um deus coxo.
Numa carta a seu irmão em 1905, ele já vaticinava que a busca por heroísmo seria uma tremenda vulgaridade, acreditando que a força motriz de tudo estaria concentrada na paixão individual. Assim Bloom encarna o antídoto do heroísmo militar antigo, contentando-se em ser lembrado pela posteridade por aquilo que vivenciou infinitesimalmente em 16 de junho de 1904, um dia-tipo de sua vida. Através de uma despretensão moderna, Joyce afirmava que a vida comum era o verdadeiro domínio do artista, argumentando que o sensacionalismo e o heroísmo poderiam ser deixados para os jornalistas. Uma maneira de caracterizar isso foi atribuir a seu personagem o apelido de "Poldy", uma forma de suavizar o "poldo" final; já Odisseu, como os demais heróis homéricos, tinha o nome engalanado por epítetos como "o muito-truque", "o contador de histórias", "o homem das dores", "o bom de mira" etc.
Joyce era fã da humanidade calorosa de Odisseu, preferindo-o a Fausto e a Jesus, já que Bloom deveria abster-se dos controles sexuais do primeiro e do celibato autocontrolado do segundo: a odisseia crucial para um homem seria conseguir conviver com uma mulher, coisa que Jesus nunca fez. Na visão de Ezra Pound, Bloom encarnava L'homme moyen sensuel, título de um de seus poemas mais famosos e que, no meu entender, encarnava "o homem de sensualidade apagada", "o homem de poucos apetites", ou mesmo "o homem de libido medíocre", mas que, podendo administrar sua vida de um modo rico e vibrante sem lamúrias, teria aí a essência de sua grandeza.
O Ulisses joyceano representa também, tangencialmente, uma desconstrução da originalidade ou da autoria; conformando-se perfeitamente com a definição de tipo mítico, feita por Victor Hugo, que "não pode encaixar-se por inteiro num indivíduo, mas que concentra sob uma forma humana, toda uma família de personagens e de ideias" (Kiberd, 2012, pp. 29-30). Nas palavras de Joyce, "O desejo universal de ser original não consegue encobrir a realidade de que cada pessoa é uma espécie de 'cópia' de vidas passadas" (Kiberd, 2012, p. 30), frase que ele termina dizendo que aqui as aspas (inverted commas, em inglês) melhor seriam perverted commas. Esta postura de Joyce foi elogiada por Yeats ao questionar a bravura militar e entendendo que cada um poderia demonstrar maior coragem "penetrando no abismo de si próprio" (Kiberd, 2012, p. 31).
T. S. Eliot reconhece que Joyce substituiu o método narrativo pelo mítico, para poder "controlar, ordenar e dar uma forma e um significado ao imenso panorama de futilidade e anarquia da vida contemporânea" (Kiberd, 2012, p. 33), percepção totalmente ausente do personagem Bloom, que não tem a menor suspeita de poder comparar-se com o herói grego, pois, como nos lembra o próprio Joyce, "o heroísmo real, como a verdadeira santidade, nunca é consciente de si mesmo" (Kiberd, 2012, p. 34).
A mais famosa criação de Joyce é o monólogo interior ou fluxo de consciência, que, no entender de Kiberd:
Permitiram a Joyce contrastar a riqueza da vida imaginativa de um indivíduo com a pobreza de suas relações sociais. Comparadas ao tour de force dos monólogos, as conversas ali escritas são na maior parte insatisfatórias, uma ilustração apagada dos chistes de Oscar Wilde, de que todo mundo é bom até aprender a falar. As palavras no Ulysses são faladas tanto para velar como para revelar. (2012, p. 491)
Bloom nunca perdoa a infidelidade de sua esposa numa troca de palavras, mas já a perdoou em sua mente. Este aspecto já aparece embrionariamente em suas duas obras iniciais, Dubliners e A portrait of the artist as a young man, onde aqueles que sabem sentir muitas vezes não têm capacidade de se expressar, e depois que adquiriram a capacidade expressiva desaprendem a sentir.
Os três personagens principais do Ulisses são autobiográficos: Stephen Dedalus representa Joyce aos 22 anos, debatendo-se para firmar-se como artista; Leopoldo Bloom seria Joyce como artista maduro, que aos 38 anos publica sua obra-prima; Molly Bloom foi inspirada em Nora Barnacle, o amor da vida de Joyce. Burgess (1994, pp. 89-90), no entanto, os reconhece como personagens miméticos da narrativa homérica: Bloom é Ulisses, ressurgido em Dublin; Stephen Dedalus é Telêmaco em busca de um pai; Molly Bloom é, ao mesmo tempo, a iludida Calipso e a fiel Penélope. Considerando que o fluxo de consciência é pré-verbal, como expressá-lo num tom característico para cada personagem? Joyce resolveu o problema determinando um ritmo específico para o pensamento de cada um: o de Stephen é lírico, sutil, algo coagulado e, por ele ser poeta, mais consciente das palavras; o de Bloom é rápido, vivo, compulsivo, agudo e cortante, compatível com um corretor de anúncios sem grande instrução; o de Molly combinaria o prático e o poético, palavras curtas organizadas em frases longas e fluentes, que se aglutinam numa única oração gigantesca, que termina, ao final do livro, com um grito de autoafirmação: "Sim! Eu digo sim!".
A estrutura preliminar do Ulisses encampa os Cantos de Homero reduzindo-os a dezoito capítulos que pretendem funcionar como um fichário classificatório da anatomia, da estética, dos desatinos vitais por liberdade e autonomia. Esta dimensão enciclopédica acaba gerando um problema prático para o "leitor comum", já que ele, ainda impregnado da linearidade da narrativa clássica, fica "caçando" Bloom ao longo das páginas e se frustrando por deparar-se com o cotidiano de uma comunidade, um país e, num certo sentido, de toda a humanidade.
O que precisamos entender é que Bloom, como Ulisses, também é um personagem furta-cor, encarnando o mito moderno do homem da multidão, caracterizado pela sigla HCE. (Here Comes Everybody - Homem Comum Enfim, na tradução do livro de Burgess [1994], mas que eu traduziria por "Está Chegando o João-Ninguém"), uma espécie de coringa disfarçado que utiliza esta abreviatura de modo camaleônico no Ulisses e ressurge magnânimo como personagem principal no Finnegans wake, apresentando-se como um anônimo Humphrey Chimpdem Earwicker (hce) quem, ao longo do livro, se metamorfoseia numa série de personagens improvisados e travestidos. Em resumo, esse Ulisses moderno seria "Um Qualquer", fraco e forte, cauteloso e precipitado, herói e covarde, além de um pacato e versátil homem de família (Kiberd, 2012, p. 19).
Joyce, ao aproximar o sagrado do profano, contamina de prosaísmo e contemporaneidade o registro mítico e épico da Odisseia. Mas se o conteúdo exala modernidade, a forma explora com total ousadia a iconoclastia da pós-modernidade. Sua história não é contada, já que o fluxo de consciência tem ligação direta com o inconsciente, trazendo à tona a vivência on-line ou, se preferirmos, "sendo o O de Bion". Em termos fenomenológicos, Joyce ousou desconstruir palavras, reduzi-las a letras alusivas, associá-las por assonância, brincar com as regras gramaticais, tentando, enfim, "devolver a economia selvagem dos hieróglifos", como Beckett uma vez denominou suas transmutações. Não esqueçamos, porém, que isto tudo estava a serviço de um projeto grandioso, o de "descrever o mundo", como lembrou Saliba, a partir dos conflitos religiosos, nacionalistas e artísticos que atormentaram conterrâneos como Beckett, Swift, Keats, Oscar Wilde, Bernard Shaw, Bram Stoker, Laurence Sterne e muitos outros, além de ressuscitar o gaélico ancestral sepultado imperialisticamente pelo invasor britânico (lembremos que o braço político do ira, o Sinn Féin, era uma expressão gaélica, referindo-se a "uma cultura para nós próprios").
Como fringe benefit, Joyce se ofereceu para ressuscitar o homem comum (os Blooms da vida) de seus anonimatos e, para tanto, concebeu para si um Deus com a sem-cerimônia profana, denominando-o com o neologismo abusado de "Nobodaddy", uma espécie de "paizinho decadente", que teria criado Bloom à sua imagem e semelhança como um "Nobodyhusband", produtor de um fluxo de consciência deste teor:
Bloom enlaçava, desenlaçava, enrolava, desenrolava. Bloom. Influxo de cálido segredo lambível, maravilha fluía por fluir canção afora, em desejo, escuro por lamber fluía invadindo. Um som, um sim, unção um seio. Cio. Poros por se dilatar dilatando. Cio Amor ardor calor o. Cio. Escorrer por eclusas jorrando seus fatos. Reflui, jorra, flui, jorramos, ciosseio. Agora! Linguagem do amor.
(Joyce, 2012, p. 455)
Cabe a nós, leitores, decifrarmos a complexidade do amor de Bloom por Molly: alguns o vislumbram se excitando ao imaginar a mulher se entregando a outros homens; outros percebem que o casal compartilha a teoria de que o adultério não é o maior dos males da vida; e há, naturalmente, os adeptos do schadenfreude, que se deleitam com a desgraça do cornudo, como Joyce descreve com maestria:
Pat é um garçom que só serve para servir ... Servir como um servo. Bloom é um marido que só serve para servir ... Até o fim do bar (a garçonete Lydia) até que ela leve de leve o corno marinho de aguilhões convoluto porque ele George Lidwell [seria este personagem um sucedâneo de Bloom?], que ouviria o som lancinante do adultério que ecoa na concha convoluta?1 (Joyce, 2012, p. 463)
Já ao final das dezoito horas que Bloom se concedeu para afastar-se da cena do crime, ele cria coragem para voltar para casa cego de ciúmes e amparado por uma bengala tateante:
Tap. Tap. Um rapazote, cego, com uma bengala tateante, vinha taptaptapeando (a dor do ciúme?) pela vitrine da Daly's, onde uma sereia, cabelo todo em ondas (mas ele não podia ver), soprava baforadas de um Sereia (cego não podia), Sereia, a mais refrescante tragada (teria ele cheirado o Cio?). (Joyce, 2012, p. 475)
Nosso anti-herói Leopoldo Bloom, um judeu irlandês, sofreu naturalmente os percalços do estereótipo do interesseiro sovina (ele era o único do grupo de amigos que não lhes pagava rodadas de bebida), mas, em compensação, sua veia de humor judaico não o abandonou, permitindo a Joyce homenageá-lo com muitas passagens de comicidade inteligente. Vejamos algumas:
- Mesmo em situações sublimes, o grotesco pode insinuar-se sem pedir licença: um respeitável professor teve sua fala de um discurso clivada por um arroto surdo de fome. Quando Homero interromperia uma fala de Agamenon para interpolar este detalhe grotesco?
- Alguém lembra que Hamlet definia o homem como "quintessência de Jó", merecendo assim o epíteto de "vertebrado gasoso".
- Num diálogo hilário, alguém relata ter encontrado um amigo na rua, mas é interpelado com a notícia de que ele morrera pela manhã. O questionado, então, relata que o suposto fantasma lhe contara, inclusive, que perguntara aos moradores do Além sobre suas condições de vida e eles responderam que possuíam todos os confortos dos lares modernos como talafana, alavadar, aqaçadar e pravada, obrigando-nos, por nossa conta, a concluir que algum espírito gozador tinha substituído todas as vogais pela letra a para designar telefone, elevador, aquecedor e privada. Indagando se tinha alguma mensagem para a terra, a resposta foi: "Eu vos saúdo, amigos da terra, que ainda estão na carne. Mas cuidado, não deixem o CK vos empilhar" (Joyce, 2012, p. 491). Somos então informados de que ck era o agente funerário que tinha providenciado seu enterro.
Numa passagem, Bloom observa a estátua do Almirante Nelson, que o retrata sem a mão que perdeu numa batalha, e é dita como representando o "adúltero monomãoníaco", pois, de fato, ele tivera um caso extraconjugal.
Mas Bloom, em 16 de junho de 1904, é retratado como portador de uma bondade que se espraia dos animais para os humanos. Ao acordar alimenta seu gato, depois umas gaivotas e, no episódio Circe, um cachorro. Recorda-se de seu pai e de seu filho, ambos mortos, preocupa-se com sua filha Milly, ainda viva, sem se esquecer por um instante da mulher. Ajuda um cego a atravessar a rua e contribui generosamente para um fundo, visando amparar os filhos de seu amigo Dignam, que acabara de morrer. Ao encontrar-se com Stephen Dedalus, o grego-cristão-irlandês, irmana-se com ele solidário tentando impedi-lo de beber, evita que seja roubado, alimenta-o e leva-o para casa, no que Joyce chama, jocosamente, de "modo samaritano ortodoxo" (Ellmann, 1989, p. 463).
Como vemos, o tema do Ulisses é simples, a bondade casual domina o poder inescrupuloso, erguendo-se numa quintessência de pureza, acima da bolorenta vida cotidiana, nas lindas palavras de Richard Ellmann (1989, p. 471), o consagrado biógrafo de Joyce. Caetano Galindo (2016, pp. 351-353), em sua visita guiada ao Ulisses de Joyce, refere-se ao famoso monólogo final de Molly condensado pelo final apoteótico: "Sim! Eu digo sim!" como um dos trechos mais citados, lidos e antologizados de toda a história da literatura. Para mim, trata-se de um "monólogo dialógico", uma espécie de confissão livremente associativa que ela faz ao marido sobre sua vida, e que me evoca a narrativa panorâmica que visita pacientes terminais na antessala de suas despedidas da vida.
Seria interessante nos colocarmos no lugar de seu marido para sentirmos o impacto deste dilúvio associativo e, assim, experimentarmos a interação de Bloom-continente com Molly-conteúdo, bem como estabelecermos um paralelo entre Penélope e Molly. Se, por um lado, é verdade que Penélope resistiu virtuosamente ao assédio dos pretendentes, por outro suas serviçais se divertiram com as presenças masculinas; Molly, porém, foi mais condescendente com seus inúmeros pretendentes, "abatendo-os sexualmente" em seus encontros sem derramar o sangue que o Ulisses homérico produziu. Se acompanharmos seu jorro associativo, é difícil reduzi-la a uma adúltera venal, já que ela mais se parece com uma investigadora descolada do autoengano infantilizado dos homens.
Vejamos, por exemplo, um recorte típico:
aquele grandão com cara de nenê esse eu vi e ele casado de pouco flertando com uma moça no miriorama Pooles e dei as costas pra ele quando ele escapuliu com uma cara bem de quem sabia que mal há, mas ele teve a senvergonhice de dar em cima de mim uma vez bem feito pra ele todo cheio de si e aquele olho de ovo cozido de tudo quanto é palerma que eu já conheci e chamam aquilo adevogado e só porque eu odeio ficar batendo boca na cama senão se não for isso é alguma cadelinha que ele arrumou por aí ou cantou escondido ah se elas conhecessem esse aqui que nem eu conheço sim porque anteontem ele estava escrevinhando uma carta e ele cobriu com o mata-borrão fingindo que era sobre negócios tudo quanto é home fica um pouco assim na idade dele nenhum bobo é mais bobo que um bobo velho ... Eu sabia mais de homem e da vida quando tinha 15 anos do que elas todas vão saber quando tiverem 50. (Joyce, 2012, p. 1039)
Se Horácio lamentou os heróis anônimos que não tiveram um Homero para cantar suas glórias, Joyce nos criou Molly Bloom para exaltar o anonimato modesto do marido. Malgrado o jorro de vitupérios que ela lança contra os homens em seu monólogo final, incluindo várias vezes o próprio marido, o fato é que ela acaba justificando suas incompetências por uma incompreensão medíocre do amor e da sexualidade. Todos os seus desabafos contra a grosseria dos machos desgovernados poderiam ser resumidos por ignorarem a naturalidade do desejo, como vemos nesta passagem:
Claro que o homem nunca para nem pra pensar 1 minuto no marido nem na mulher é a mulher que ele quer e ele consegue ela e pra que foi que deram esses desejos todos pra gente isso eu queria saber eu não posso fazer nada se eu ainda sou nova né me diga é de espantar que eu não seja uma velha megera encarquilhada antes da hora. (Joyce, 2012, p. 1097)
A competência feminina, por outro lado, é afirmada sem falsa modéstia:
Ia ser muito melhor pro mundo ser governado pelas mulheres do mundo você não ia ver as mulheres saindo se matando e chacinando quando é que a gente vê uma mulher rolando por aí de bêbada que nem eles fazem? (Joyce, 2012, p. 1099)
Após 1.104 páginas, o veredito final para o réu Leopoldo Bloom: um homem comum absolvido por ter feito um pedido de casamento amoroso, fato confirmado pela própria vítima da seguinte forma:
No dia que eu fiz ele me pedir em casamento depois daquele beijo comprido eu quase perdi o fôlego sim ele disse que eu era uma flor da montanha sim e a gente é flor mesmo nós todas o corpo de uma mulher sim taí uma verdade que ele disse na vida e o sol brilha por você hoje sim foi por isso que eu gostei dele porque eu vi que ele entendia ou sentia o que uma mulher é eu sabia que sempre ia poder passar a perna nele e fui dando corda até ele pedir pra eu dizer sim aí eu pedi com os olhos pra ele pedir de novo primeiro passei os braços em volta dele sim e o puxei pra perto de mim pra ele sentir os meus peitos só perfume sim e o coração dele batia que nem louco e sim eu disse sim eu quero Sim. (Joyce, 2012, p. 116)
Referências
Burgess, A. (1994). Homem comum enfim. Companhia das Letras. [ Links ]
Citati, P. (2005). Ulisses e a Odisseia: a mente colorida. Cotovia. [ Links ]
Ellmann, R. (1989). James Joyce. Globo. [ Links ]
Galindo, A. (2016). Sim, eu digo sim. Companhia das Letras. [ Links ]
Homero. (2014). Odisseia (C. Werner, Trad.). Cosac Naify. [ Links ]
Homero. (2018). Ilíada (C. Werner, Trad.). Sesi; Ubu. [ Links ]
Joyce, J. (2012). Ulisses (C. Galindo, Trad.). Penguin; Companhia das Letras. [ Links ]
Junqueira Filho, L. C. (2021). Adiar ou abreviar: o dilema do autor na esteira das odisseias de Aquiles e Ulisses. Ide, 43(71),31-43. [ Links ]
Kiberd, D. (2012). Introdução. In J. Joyce, Ulisses (C. Galindo, Trad., pp. 13-92). Penguin; Companhia das Letras. [ Links ]
Martin, R. P. (2014). Apresentação. In Homero, Odisseia (C. Werner, Trad., pp. 7-58). Cosac Naify. [ Links ]
Williams, M. H. (2006). Conversations with internal objects: family and narrative structure in Homer's Odyssey. British Journal of Psychotherapy, 20(2),219-235. [ Links ]
1 Os familiarizados com a biologia marinha conhecerão o famoso crustáceo "Bernardo Paguro, o Ermitão", mas que, neste contexto, bem poderia ser o esconderijo de "Bloom, o Enganadão".