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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.46 no.84 São Paulo jun. 2013

 

FORMAÇÃO: ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO

 

A questão da liberdade, entre o público e o privado. A formação do psicanalista a partir da perspectiva de Sonia Azambuja

 

The freedom issue: among the public and the private. The analyst formation according to Sonia Azambuja's perspective

 

El tema de la libertad, entre lo público y lo privado. La formación del psicoanalista desde la perspectiva de Sonia Azambuja

 

 

João Frayze-Pereira

Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP. Professor livre docente do Instituto de Psicologia da USP

 

 


RESUMO

A partir da entrevista concedida por Sonia Curvo de Azambuja à Biblioteca Pública "Mario de Andrade", em São Paulo (2010), este artigo realiza uma reflexão sobre os fundamentos filosóficos que embasam a ideia de liberdade na formação do indivíduo/psicanalista em suas relações com a cultura em seus dois aspectos - público e privado. Sartre, Merleau-Ponty e Espinosa são os filósofos que fundamentam a reflexão.

Palavras-chave: liberdade, psicanálise, filosofia


ABSTRACT

Based in the interview with Sonia Curvo de Azambuja at the Public Library "Mario de Andrade" in São Paulo (2010), this paper develops a reflection on the philosophical foundations that support the idea of freedom in the individual / psychoanalyst formation in its relations with culture considering public and private aspects. Sartre, Merleau-Ponty and Espinosa are the philosophers that give support to the reflection.

Keywords: freedom, psychoanalysis, philosophy


RESUMEN

A partir de la entrevista realizada por la Biblioteca Pública "Mario de Andrade" a Sonia Curvo de Azambuja, en San Pablo (2010), este artículo desarrolla una reflexión sobre los fundamentos filosóficos que sostienen la idea de libertad en la formación del individuo / psicoanalista en sus relaciones con la cultura en sus dos aspectos - público y privado. Sartre, Merleau-Ponty y Espinosa son los filósofos en los cuales se fundamenta la reflexión.

Palabras clave: libertad, psicoanálisis, filosofía


 

 

Este artigo tem como ponto de partida a longa entrevista concedida por Sonia Curvo de Azambuja,1 na Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo, no ano de 2010. Nessa entrevista, são retomados alguns temas desenvolvidos pela entrevistada no livro Presenças e Ausências, parceiras na simbolização (Azambuja, 2006). São temas que interessam aos psicanalistas preocupados com a formação psicanalítica, temas que articulam o indivíduo e a cultura, os espaços público e privado. E essa articulação aparece com clareza por intermédio de uma ideia específica, formulada várias vezes e de diversas maneiras, sintetizada nos seguintes termos: a autonomia doindivíduo passa pela cultura ou o desenvolvimento individual se faz no espaço coletivo. Qual o sentido dessas afirmações? O que significa dizer, quando se pensa na clínica, que a autonomia do psicanalista, por exemplo, é mediada pela cultura? Significa que a erudição seria uma condição para o exercício da clínica? Essa seria uma interpretação possível, posto que Sonia Azambuja era uma psicanalista bastante culta, sem ser pedante, como às vezes costuma acontecer com algumas pessoas. Mas, do meu ponto de vista, a questão não é essa. O significado da mediação cultural caminha em outra direção. E abre portas para uma reflexão que pretendo realizar neste breve escrito.

Inicialmente, é preciso lembrar que Sonia Azambuja foi uma psicanalista com sólida formação filosófica. E quando eu digo sólida, estou me referindo à formação que ela recebeu no curso de graduação em Filosofia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP - da Rua Maria Antônia. O curso de filosofia era e ainda é um lugar privilegiado para a formação de qualquer pessoa, sobretudo para aquelas dedicadas às Ciências Humanas, como foi o caso de Sonia. Ela fez a sua formação filosófica antes de pensar em se tornar psicanalista, nos tempos áureos da Faculdade - os anos 1950 e começo dos 1960 - que precederam os anos de chumbo em São Paulo, no Brasil e na América Latina, os anos de ditadura militar. Eu mesmo que também estudei na USP, na Faculdade da Rua Maria Antônia, não tive essa mesma sorte, posto que o meu percurso se fez na segunda metade dos anos 1960 até 1968, quando fomos transferidos para a Cidade Universitária. Mas, voltemos à Sonia.

Durante o seu percurso na USP, ela se beneficiou não apenas dos conhecimentos transmitidos por seus professores, como também das leituras na Biblioteca Mario de Andrade que a amparavam em seus escritos, pois muito cedo começou a trabalhar como jornalista. Seus interesses centravam-se em Santo Agostinho e Sartre, Simone de Beauvoir e Rimbaud, Nietzsche e Freud; mas também nos poetas surrealistas, nos escritores americanos e sulamericanos, em Melanie Klein e Ferenczi, em Joyce McDougall, Piera Aulagnier e Armando Ferrari, em Canevacci e Virginia Woolf - a lista é imensa, os autores foram muitos e, aqui, cabe lembrar apenas alguns. E não eram apenas a literatura e a filosofia que constituíam o campo cultural das suas afinidades eletivas. Estas também se expandiam pelas artes - artes visuais, cinema, música e teatro. E penso que a razão mais profunda dessas afinidades funda-se na sua curiosidade por tudo o que é humano e, sobretudo, na sua convicção que, ao longo da entrevista e nos seus escritos, ganha a consistência de uma tese resumidamente formulada nos seguintes termos: a autonomia de uma pessoa só pode ser elaborada no contato com a cultura, isto é, com todas as formas de alteridade, concebida a autonomia no sentido da liberdade de pensar e de ser. Então, alcançar a autonomia por intermédio da cultura poderia ser entendida como conquista da própria liberdade. Entretanto, a partir dessa posição, como definir a liberdade?

O conceito de liberdade na filosofia é variado e surge desde os primórdios com os antigos gregos. Ora, no pensamento de Sonia, expresso em seus escritos e em seus depoimentos pessoais, é possível perceber certa ideia de liberdade presente na sua maneira de entender a psicanálise e de trabalhar na clínica, notando-se certa afinidade entre essa maneira e a ideia sartreana de liberdade. Trata-se da ideia da liberdade como o estado para o qual o homem tende necessariamente como projeto. Quer dizer, o ser humano, definido como projeto existencial, é condenado a ser livre. Pode-se dizer que o existencialismo de Sartre foi assimilado por Sonia, uma vez que ela pensava ser a liberdade a potência humana para ultrapassar qualquer obstáculo natural, qualquer adversidade que pudesse impedir o seu desenvolvimento pessoal. Essa ideia cabe como uma luva na clínica psicanalítica - pensava Sonia, que tinha plena consciência da sua afinidade com os existencialistas. Para ela, inspirada em Sartre, a consciência precisa estar no mundo para poder ser consciência, e o mundo presente à consciência é o que aparece a ela como sentido imediato, considerando que, desde a Fenomenologia de Husserl, a consciência é sempre "consciência de..." alguma coisa. Ou seja, subjacente à experiência da evidência do sentido imediato está a experiência da intencionalidade e é por meio desta que se formam os conteúdos da consciência. Ou seja, a existência precede a essência, isto é, o homem surge no mundo, se descobre e só depois se define. Nesse sentido, escreve Sartre, "o homem é não só como ele se concebe, mas como ele quer ser; como ele se concebe depois da existência, como ele se quer após o impulso para a existência, o homem não é mais do que o que ele faz de si mesmo". (Sartre, 1943, p. 29).

Cabe lembrar que, para o senso comum, muitas vezes, liberdade significa poder. É livre quem não encontra obstáculo para a realização do que quer. Não é nesse sentido que Sartre pensa a liberdade e também não é nessa direção que caminha o pensamento de Sonia Azambuja.

A experiência da liberdade situa-se no corpo, pensava Sartre. Porém,

a massa do meu corpo não interfere no absoluto da liberdade. Assim, posso estar cansado, doente, ferido, ou, ainda, apenas com mal-estar, mas minha liberdade permanece intacta, essa operação de não coincidência nada sofre com minhas dores físicas; pelo contrário, como sou livre, posso desafiá-las, ultrapassá-las ou mesmo negá-las. Porque o que fizer, independente da minha situação, (não só física, mas... psicológica, social...), faço absolutamente, isto é, o fundamento do ato é um absoluto incondicionado que decorre da estrutura do para si - este é o nome dado por Sartre à consciência... (Carrasco, 2011, p. 40)

Ou seja, resignar-se é uma decisão livre, tanto quanto não se resignar quando há luta contra as circunstâncias. Não é por acaso que Merleau-Ponty, paralelamente a Sartre, se interessa pela experiência da doença, pois na doença, mais do que em qualquer outra situação, sentimos que temos um corpo, que este nos dá limites, mais limites do que supomos ter. Nesse sentido, na Fenomenologia da percepção (1945), Merleau-Ponty considera que a doença não nos reduz a um pedaço de natureza, pois a doença reinventa o humano em nós. Mesmo subjugados pela doença, não renunciamos a dar-lhe um sentido humano, a vivê-la como experiência humana. Na doença, somos capazes de exercitar a nossa liberdade ao não aceitarmos sermos parte inerte da Natureza.

Mas, então, resumidamente, como entender a liberdade à luz de Sartre?

A liberdade absoluta é um valor que funda o humano, e a radicalidade da liberdade está justamente nessa condição de que não há nada que me reduza à matéria senão a morte. "À parte a morte somos absolutamente livres" (Carrasco, 2011, p. 41). Ou seja, até a morte somos livres para decidir o nosso destino. Até o advento da morte no curso de uma doença, somos livres para querer viver com tratamentos ou morrer. O primeiro romance de Sartre, A Náusea (1938), é exemplar nesse sentido. E também As palavras (1964), autobiografia de Sartre que aborda o período dos 4 aos 11 anos, dividida em duas partes - "ler" e "escrever". Esse era um livro muito caro à Sonia. É um livro que recebeu um belo comentário de Pontalis, um psicanalista-escritor - aluno de Sartre, amigo de Merleau-Ponty - que Sonia também dizia apreciar muito.

Acredito que ela concordaria com esse esclarecimento que tento fazer do conceito de liberdade subjacente à sua prática clínica, como também suponho que aceitaria uma ampliação desse conceito por intermédio da colaboração dos pensamentos de outros autores com os quais ele ganharia mais determinações. O que eu quero dizer é que essa concepção do homem como projeto existencial é necessária, mas não suficiente para dar conta da questão da liberdade no âmbito do seu pensamento clínico-psicanalítico, posto que, como projeto, o homem é lançado no indeterminado e é essa indeterminação existencial que demanda mais reflexão no tocante ao seu estar no mundo. Então, para amplificar essa concepção, penso não exclusivamente em Freud e nos autores-psicanalistas, que poderiam contribuir para o aprofundamento da temática, mas no conceito filosófico de liberdade tal como proposto por Merleau-Ponty e, antes dele, por Espinosa. Não seria o caso de nos alongarmos muito sobre essas concepções. Meu propósito é apenas dar uma ideia da profundidade filosófica do pensamento de Sonia, profundidade que pode fundamentar a psicanálise singular na qual ela acreditava e que defendia, plural e aberta a todas as tendências teórico-clínicas, desde Freud, para uma ampla formação do psicanalista, articulada entre os espaços público e privado.

Então, resumidamente, o que seria a liberdade para Merleau-Ponty?

Para Merleau-Ponty, grosso modo, a liberdade é a experiência que se dá no campo formado entre a consciência e a natureza. Para esse filósofo, pode-se comparar a experiência de nascer e a experiência da doença. Diz Merleau-Ponty:

Nascer é simultaneamente nascer do mundo e para o mundo. Sob o primeiro aspecto, o mundo já está constituído e somos solicitados por ele. Sob o segundo aspecto, o mundo não está inteiramente constituído e estamos abertos a uma infinidade de possíveis. Existimos, porém, sob os dois aspectos simultaneamente. Nunca há, então, necessidade absoluta e escolha absoluta; nunca sou como uma coisa, nunca sou uma pura consciência... é impossível delimitar a parte que cabe à situação e a parte que cabe à liberdade. (Merleau-Ponty, 1945, p. 517)

Então, há fatos que dispensam a nossa vontade para ocorrer, mas que só podem ser aceitos nos nossos termos. Por exemplo, não dependeu da nossa vontade a geração do nosso ser; e nascer é um dado natural, não deliberado pela nossa consciência. Ao sermos colocados no mundo, entretanto, podemos ir além do que somos, podemos nos inventar. A vida pode deixar de ser anônima para se tornar vida vivida e esta passa pela cultura, pela liberdade. Porque somos livres, nosso destino, implicado pelo fato de ter nascido, faz-se história, nossa história, que Merleau-Ponty entende como a passagem do natural para o humano. A liberdade é então a capacidade para darmos um sentido novo ao que parecia fatalidade, transformando a situação de fato numa realidade nova, criada por nossa ação e nosso pensamento. Nesse sentido, a liberdade não é uma condenação à qual está sujeito o ser humano (como pensava Sartre), mas uma conquista feita por ele (como pensava Merleau-Ponty).

Percebe-se na reflexão de Merleau-Ponty que a questão da liberdade se articula com facilidade a uma outra problemática, igualmente cara a muitos pensadores, incluídos alguns psicanalistas: a questão do destino. Na verdade, ela é uma das questões-chave no pensamento da maioria dos filósofos, desde a antiguidade clássica. Por exemplo, Alexandre de Afrodisias, comentador de Aristóteles, entre os séculos II e III, escreve o Tratado do Destino no qual indaga em que medida "o indivíduo é submetido ao destino a ponto de não ser mais livre" (Sousa, 1999, p. 91). E, com efeito, a interrogação do relacionamento entre liberdade e necessidade, relação que a figura do destino implica, é tão velha quanto a humanidade e é por si só um capítulo antropológico cujo desenvolvimento exigiria uma longa passagem não apenas pela história da filosofia, mas também pela mitologia e pela arte, antes de chegarmos à psicanálise. Porém, não indo muito além do que é possível apresentar neste escrito, é interessante considerar, no campo da psicanálise, apenas um exemplo de como essa temática, mantido o estilo filosófico de reflexão que vimos desenvolvendo, pode ser abordada.

Nesse sentido, pode ser considerada a distinção feita por Christopher Bollas (1992) entre "destino" e "fado",

"Fado" deriva do latim fatum que é o particípio passado de fari, que significa falar. Fatum é uma declaração profética e fatus é um oráculo. Se fizermos uma revisão da literatura clássica, descobriremos ser o fado geralmente anunciado por meio de um oráculo ou pelas palavras de uma pessoa, como por exemplo, quando o fado de Édipo é revelado pelo oráculo de Apolo em Delfos. No entanto, o destino de Édipo é determinado pela sequência de acontecimentos que o oráculo anuncia. "Destino", do latim destinare, significa fixar, segurar, tornar firme e a palavra "destinação" é derivada dessa raiz. Assim, destino está vinculado mais à ação do que às palavras. Se fado surge das palavras dos deuses, destino é então um caminho pré-ordenado que o homem pode preencher. (Bollas, 1992, p. 46)

Que lugar esses termos podem ocupar numa psicanálise?

Considerando que a pessoa que chega numa análise está sofrendo e diz o que sente, ainda que de maneira vaga e imprecisa, pode-se dizer que essa pessoa está fadada, isto é, pode interferir em seu campo de relações por intermédio do fluxo associativo e de interpretações, vindo a se livrar da maldição que a faz sofrer cujo responsável foi o seu desconhecimento. Porém, simultaneamente ao fado, tal pessoa traz um destino, isto é, um potencial cuja realização depende menos de uma pesquisa reveladora do sentido da "sintomatologia oracular", do que do movimento para o futuro através do uso do objeto, um desenvolvimento articulado à transferência (Bollas, 1992, p. 47). Em outras palavras, Bollas associa o sentido do fado ao conceito de falso self e à concepção winnicottiana do viver reativo, assim como articula a ideia de destino ao desenvolvimento do self verdadeiro da pessoa por intermédio do seu idioma pessoal que faz parte do "conhecido não-pensado" (1992, p. 56). Segundo essa concepção, sintonizada com a etimologia e a literatura clássica rastreadas pelo autor, destino refere-se a um potencial na vida de alguém, potencial que uma análise pode contribuir para fazer eclodir e facilitar ao indivíduo desenvolver. Nessa medida, uma das perspectivas de uma psicanálise é pensar o conhecido ainda não-pensado, por intermédio do uso do objeto e da pulsão para revelar o self através do espaço e do tempo. Segundo essa perspectiva, ao pensar a sua situação, o indivíduo pode se tornar livre para usar os objetos e conquistar o seu destino.

No entanto, como pensar o ser humano livre se, simultaneamente, ele só existe por sua articulação, como projeto existencial, a um todo do qual ele é uma parte? Espinosa é o filósofo que pode nos ajudar a esclarecer esse paradoxo.

Com efeito, na Ética, Espinosa desenvolve a ideia de que o homem "é mais livre na cidade, onde vive segundo as leis comuns, do que na solidão, onde obedece só a si mesmo" (1983, p. 266). Quer dizer, o homem, "para viver mais livremente, deseja observar os direitos comuns da cidade" (p. 267). No entanto, se por um lado, "a experiência nos diz claramente que os homens creem que são livres simplesmente porque são conscientes de suas ações e inconscientes das causas pelas quais essas ações são determinadas", por outro lado, deve-se entender que

cada indivíduo é uma concentração localizada de atributos da realidade, um quase indivíduo, dado que o único indivíduo verdadeiro é o universo em sua totalidade. À medida que o quase indivíduo é governado por suas emoções, ele não é livre ... Para tornar-se livre, deve, por meio da reflexão, compreender a cadeia causal extensa que liga todas as coisas, fazendo-as uma só. Tornar-se consciente da totalidade do universo é libertar-se, não do determinismo causal, mas da ignorância sobre a natureza verdadeira de cada um. (Stokes, 2012, p. 155 e p. 154)

Enfim, trabalhar com o pensamento, isto é, refletir sobre a gênese do que nos determinou a sermos o que somos, é o que se pode fazer para alcançar a liberdade. E para realizar essa reflexão, a passagem pelo todo - "que pode ser a Natureza - como para os estoicos e Espinosa -, ou a Cultura - como para Hegel - ou, enfim uma formação histórico-social - como para Marx" (Chauí, 1996, p. 361) - todo do qual somos apenas uma pequena parte, é um caminho necessário. Assim, esclarece Marilena Chauí:

Liberdade não é escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente que, no caso, é a totalidade. O que é, então, a liberdade humana? São duas as respostas a essa questão: 1. a primeira afirma que o todo é racional e que suas partes também o são, sendo livres quando agirem em conformidade com as leis do todo, para o bem da totalidade; 2. a segunda afirma que as partes são de mesma essência que o todo e, portanto, são racionais e livres como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas, de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo. Tomar parte ativa significa, por um lado, conhecer as condições estabelecidas pelo todo, conhecer suas causas e o modo como determinam nossas ações, e, por outro lado, graças a tal conhecimento, não ser um joguete das condições e causas que atuam sobre nós, mas agir sobre elas também. Não somos livres para escolher tudo, mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir, graças ao conhecimento que possuímos das circunstâncias em que vamos agir. (Chauí, 1996, p. 362)

Além dessas duas concepções, existe ainda uma terceira que preserva aspectos articulados pelas anteriores. Tal concepção afirma que nenhum de nós é pleno poder de escolha, como diz a segunda, mas que nossas escolhas são condicionadas pela totalidade natural e histórica em que estamos situados. E também afirma, como a primeira concepção, que a liberdade é uma decisão e uma escolha entre diversas possibilidades. Ou seja,

Essa terceira concepção da liberdade introduz a noção de possibilidade objetiva. O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós, mas é também e sobretudo alguma coisa inscrita no coração da necessidade, indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas direções e sob certas condições. A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas, dando-lhes outra direção ou outro sentido. (Chauí, 1996, p. 362)

Entretanto, deve-se observar que há um ponto comum nas três concepções acima enunciadas. Todas levam em conta a tensão entre a liberdade e as condições naturais, culturais e psíquicas que nos determinam. Nesse sentido, Marilena Chauí conclui:

Nosso mundo, nossa vida e nosso presente formam um campo de condições e circunstâncias que não foram escolhidas e nem determinadas por nós e em cujo interior nos movemos. No entanto, esse campo é temporal: teve um passado, tem um presente e terá um futuro, cujos vetores ou direções já podem ser percebidos ou mesmo adivinhados como possibilidades objetivas. Diante desse campo, poderíamos assumir duas atitudes: ou a ilusão de que somos livres para mudá-lo em qualquer direção que desejarmos, ou a resignação de que nada podemos fazer. Deixado a si mesmo, o campo do presente seguirá um curso que não depende de nós e seremos submetidos passivamente a ele ... A liberdade, porém, não se encontra na ilusão do "posso tudo", nem no conformismo do "nada posso". Encontra-se na disposição para interpretar e decifrar os vetores do campo presente como possibilidades objetivas, isto é, como abertura de novas direções e novos sentidos a partir do que está dado. (Chauí, 1996, p. 363)

Em suma, pelo conjunto das razões que indicamos, alicerçadas principalmente nas filosofias contemporâneas de Sartre e de Merleau-Ponty e, mais brevemente, na filosofia clássica de Espinosa, podemos entender melhor o que Sonia sempre dizia: o obscurantismo é o pior dos mundos para os psicanalistas; não só para eles, mas para todo aquele que aspira alcançar a humanidade. Esse mundo de trevas, com efeito, é aquele que se impõe ao indivíduo quando este se fecha à influência da cultura e se recusa a considerar o espaço público no qual as diferenças se colocam para o indivíduo, levando-o a conviver com elas para alcançar a sua liberdade de ser para crescer. E é nesse campo de convivência das diferenças - considerando a dinâmica dos conflitos que essa convivência sempre acarreta e da superação dos mesmos pela elaboração realizada pelo fluxo livre associativo-reflexivo - que um psicanalista aberto aos pensamentos dos filósofos, e em colaboração com eles, terá muito a dizer. Caso contrário, quando o psicanalista enquadra o seu modo de pensar (e, portanto, o objeto pensado por ele) nos termos de uma teoria instituída que lhe oferece uma chave-mestra para a interpretação, ele inadvertidamente corre o risco de cometer um "equívoco ideológico", pois "ideológica" é uma realidade que ignora sua própria historicidade; é um fenômeno "cuja própria existência implica o não-conhecimento de sua essência por parte de seus participantes" (Zizek, 1996, pp. 314). Nessa direção, ensimesmado com suas doutrinas teóricas que supostamente lhe fornecem modelos para conhecer, o psicanalista estará condenado ao silêncio ou à eterna e entediante repetição do mesmo.

 

Referências

Azambuja, S. C. (2006). Presenças e ausências, parceiras na simbolização. São Paulo: Hepsyché         [ Links ].

Bollas, C. (1992). Forças do destino. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Carrasco, A. O. T. (2011). A liberdade. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Chauí, M. (1996). Convite à Filosofia. São Paulo: Ática.         [ Links ]

Espinosa, B. (1983). Ética IV - Da servidão humana ou das forças das afecções. In B. Espinosa, Os Pensadores. São Paulo: Abril.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (1945). Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Sartre, J.-P. (1943). L'être et le néant. Paris: Gallimard.         [ Links ]

Sousa, E. L. A. (1999). O destino: a voz outra da incerteza. Neurose obsessiva. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 17,88-93.         [ Links ]

Stokes, P. (2012). Os 100 pensadores essenciais da filosofia. Dos pré-socráticos aos novos cientistas. Rio de Janeiro: Difel.         [ Links ]

Zizek, S. (1996). Como Marx inventou o sintoma. In S. Zizek (org.), Um mapa da ideologia. (pp. 297-331). Rio de Janeiro: Contraponto.         [ Links ]

 

 

Recebido em: 18/6/2013
Aceito em: 25/6/2013

 

 

João A. Frayze-Pereira. Rua Joaquim Antunes, 727, cj. 72. 05415-012. São Paulo, SP. Tel: 11 4702-4781. joaofrayze@yahoo.com.br
1 Analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, falecida em 2011. A entrevista referida encontra-se disponível em dvd na Biblioteca da SBPSP.