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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.54 no.101 São Paulo jul./dez. 2021

 

TEMA LIVRE

 

Habitando a noite nas trevas dos sentidos

 

Dwelling the night in the darkness of the senses

 

Viviendo la noche en la oscuridad de los sentidos

 

Vivre la nuit dans l'obscurité des sens

 

 

Adriana Maria Nagalli de Oliveira

Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Campinas (SBPCAMP) e da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Piracicaba / amnagalli@gmail.com

 

 


RESUMO

O presente trabalho expõe as ideias de Bion sobre transformações em alucinose, sustentadas por uma experiência clínica. Também trabalha as ideias de capacidade negativa, reverie e continente-contido. Traz considerações sobre a construção de significados pela dupla analista-analisando, tendo como pano de fundo manifestações de dor e terror que são experimentadas no campo analítico. A pergunta que o trabalho suscita (mas que não ousa responder) é: Como o analista poderá alcançar um instrumento auxiliar a fim de permitir que a sessão aconteça com atenção relaxada e atitude aberta, contribuindo para a sobrevivência do vínculo analítico, considerando a ocorrência de fatos não digeridos, objetos bizarros, identificação projetiva excessiva, alucinose, inveja e destrutividade?

Palavras-chave: alucinose, transformações, objeto bizarro, reverie, continente-contido


ABSTRACT

The present work exposes Bion's ideas about transformations in hallucinosis, supported by a clinical experience. It also works on the ideas of negative capacity, reverie and continent-contained. It brings considerations about the construction of meanings by the analyst-patient duo, against the background of pain and terror manifestations that are experienced in the analytical field. The question that the work raises (but which it does not dare to answer) is: How can the analyst be able to reach an auxiliary instrument in order to allow the session to take place with relaxed attention and an open attitude, contributing to the survival of the analytic bond, considering the occurrence of undigested facts, bizarre objects, excessive projective identification, hallucinosis, envy, and destructiveness?

Keywords: hallucinosis, transformations, bizarre object, reverie, continent-contained


RESUMEN

El presente trabajo expone las ideas de Bion sobre las transformaciones en la alucinosis, respaldadas por una experiencia clínica. También trabaja sobre las ideas de capacidad negativa, ensueño y continente-contenido. Aporta consideraciones sobre la construcción de significados por parte del dúo analista-paciente, en el contexto de las manifestaciones de dolor y terror que se experimentan en el campo analítico. La pregunta que plantea el trabajo (pero que no se atreve a contestar) es: ¿Cómo puede el analista llegar a un instrumento auxiliar para permitir que la sesión se desarrolle con una atención relajada y una actitud abierta, contribuyendo a la supervivencia del vínculo analítico, considerando la ocurrencia de hechos no digeridos, objetos extraños, identificación proyectiva excesiva, alucinosis, envidia y destructividad?

Palabras-clave: alucinosis, transformaciones, objeto extraño, reverie, continente contenido


RÉSUMÉ

Le présent travail expose les idées de Bion sur les transformations dans l'hallucinose, soutenues par une expérience clinique. Il travaille également sur les idées de capacité négative, de rêverie et de contenu continental. Il apporte des réflexions sur la construction de sens par le duo analyste-analyseur, sur fond de manifestations de douleur et de terreur vécues dans le champ analytique. La question que pose le travail (mais à laquelle il n'ose pas répondre) est : Comment l'analyste peut-il accéder à un instrument auxiliaire afin de permettre à la séance de se dérouler avec une attention détendue et une attitude ouverte, contribuant à la survie de la lien, compte tenu de la survenue de faits non digérés, d'objets bizarres, d'une identification projective excessive, d'hallucinose, d'envie et de destructivité ?

Mots-clés: hallucinose, transformations, objet bizarre, reverie, contenue dans le continent


 

 

Preâmbulo

No funcionamento mental existem múltiplas dimensões e cada qual prevalece em cada novo momento. Há analisandos que, além dos mecanismos de defesa por nós conhecidos, apresentam condições psíquicas que estão na fronteira do que é mental e do que não é mental. Penso, assim, que cabe ao analista formular aproximações que expressem a experiência emocional que ocorre na sessão, para que o analisando possa se aproximar do que ele é.

Como Bion sugeriu, é como se o analista estivesse numa posição semelhante ao do expectador que observa uma pintura, ao passo que tenta captar o que está acontecendo na realidade que a inspirou (1965/1983). O autor introduziu a ideia de que o analista lida com certas transformações, em que alguns aspectos se mantêm inalterados (invariantes).

Quando uma catástrofe psíquica se manifesta, como fruto de resíduos de um desastre mental primitivo, e se o que se mantém invariante for a impossibilidade de suportar a frustração, a arrogância, a inveja e uma conduta evasiva e retaliativa ao vínculo, isso indicará a presença de uma transformação em alucinose. Na transformação em alucinose, o que o analisando expressa não deriva da experiência emocional que está vivendo no momento, em vez disso, vive num mundo mental gerado por ele.

Há cerca de oito anos, acompanho Liv. O nome que escolhi para minha analisanda me veio após assistir Persona, de Ingmar Bergman, com atuação de Liv Ullman. Após criações e dores, Ingmar define: "A vida vale a pena. Apesar de..." - eu e minha analisanda também sentimos isso.

Quando a recebi, ela "mamava" em vidros de Rivotril, até mesmo durante as sessões. Por não suportar conviver com os colegas de trabalho e com as histórias de traição do marido e do pai, costumeiramente perdia o controle de suas emoções. Dizia: "da mesma forma que matei meu pai dentro de mim, mato o doutor [marido]". Automedicando-se e com muito ódio à realidade, durante alguns anos, quatro vezes por semana em meu consultório, Liv se debatia como um bebê agitado e tirano, tentando escapar de um mundo sem significado e aterrorizante.

Meu objetivo neste trabalho é compartilhar minha experiência clínica, auxiliada pelo conceito de "transformação em alucinose". Nesse mergulho, pretendo aprimorar observações, com vistas a entender mais profundamente essa dimensão psíquica tão primitiva.

 

Clínica

A noite escura

Em um sábado, recebo uma mensagem de voz de Liv. Ao notar que já era 1h30, achei melhor aguardar a manhã seguinte. Suas mensagens eram frequentes, comunicando desamparo, vazio e melancolia. Tínhamos combinado que as mensagens seriam vistas sempre que possível. Ela não tinha com quem falar, e pedia para enviar mensagens, mesmo que apenas para desabafar, depois de o marido, a pedido dela, ter saído de casa.

Liv usava qualquer meio para não se sentir "a sós com sua loucura", segundo suas palavras. Estávamos em uma época delicada, em que ela buscava a todo custo evitar uma nova tentativa de suicídio.

Na manhã seguinte, ao ouvir sua mensagem, me senti invadida por medo e dor: "Adriana, não acredito que você fez isso comigo. Sei que todos podem estar contra mim, mas o que você fez foi o pior golpe que já levei. Eu sabia que a minha família tinha razão ao me indicar outro profissional. Espero que você nunca mais faça isso". De imediato, comecei a procurar algo no celular, que fosse anterior à mensagem, e notei que havia recebido seis ligações por volta das 23h30. O número era desconhecido, foi então que entendi. Retornei as ligações, sugerindo que me ligasse, mas não obtive resposta.

Só nos falamos quando veio à sessão. Ficou um tempo em silêncio, deitada no sofá que fica em frente ao divã, o que é habitual, porque assim olha diretamente em meus olhos. Liv estava abatida, magra, seca; cambaleava. Após alguns minutos, chorou e disse que sentia medo de estar louca, e que a família não acreditava mais nela, após o que havia ocorrido na casa do filho. Ela sabia que dessa vez não tinha volta. Disse que estava na casa da filha, desde o dia em que havia enlouquecido, e que a filha a estava tratando com muito carinho.

Disse a ela, quase no final da sessão, que a sentia sofrendo muito, e que ela parecia lúcida. Complementei que quem está de fato louco não tem medo de enlouquecer, logo, o que havia ali era um sobrevivente de uma hecatombe. Ela chorou até o fim da sessão, dizendo que temia nunca mais se recuperar. Com cuidado, fomos nos aproximando de sua vivência na casa do filho, onde Liv estava quando ocorreu uma catástrofe. Após uma semana e cinco sessões, Liv contou o que havia acontecido.

Estava em um churrasco com a presença do ex-marido, via todos felizes ao lado dele (filhos, netos, amigos). Disse que sentiu muito ódio e se afastou de todos. Não conversou com ninguém, só ficou ali, vendo todos satisfeitos. Desconfiou que seu ódio estava mais intenso do que o normal, mas ainda assim era o ódio de sempre. Depois de horas, teve uma intensa dor abdominal e foi ao quarto de hóspedes, onde passaria a noite. Logo percebeu que não sabia abrir a torneira do box para se lavar, e notou que evacuava, mesmo vestida. Sentiu-se humilhada, com fezes escorrendo pelas pernas. O chuveiro era estranho, não caía um pingo de água, e não a avisaram como funcionava. Pensou que era tudo proposital.

Disse-me que desejou voltar para casa, mas como não estava bem teria que dormir "naquele lugar de ódio e cheiro ruim". Contou que a cama tinha cheiro de poeira, pairando em todo quarto e que sentiu muito medo. Olhava para o lustre e sentia que ele poderia cair, pois balançava. Em sua mente, tinha a certeza de que os acontecimentos assustadores eram macumba da nora. Rezou ajoelhada, pedindo para Deus que levasse o demônio embora. Via sombras vindo em sua direção. Tinha medo de usar o celular, pois imaginava que pudesse explodir, então usou o telefone fixo e ligou para os números de telefone que havia decorado. Primeiro falou com a empregada e, em seguida, ligou muitas vezes para mim. Relatou que, naquele momento, sentia que eu a estava ouvindo, que eu sabia o que estava acontecendo, mas não queria atendê-la. Em seguida, telefonou para o ex-marido, que atendeu, ela o ouvia gritar para que fosse ao quarto do casal (nora e filho) pedir ajuda, o que não fez por se sentir muito constrangida. Não tinha coragem de bater na porta com força suficiente e sabia que havia passado muito tempo. Não sabia mais quanto, mas imaginava que estavam dormindo. Eles não ouviram suas batidas, então, resolveu abrir a porta. Perdeu os sentidos, acordou com falta de ar, e me mandou a mensagem que transcrevi, em que destilava todo ódio.

Liv conta que, quando a filha chegou na manhã seguinte, achou que a mãe estava louca. Liv pediu para ligarem no hospital psiquiátrico, para que fosse internada. De noite, na casa da filha, ainda ouvia gritos e passos, via o lustre balançando, imaginava que estava em curto-circuito. Ouvia um barulho no ouvido e pensava: "é um passarinho que chama meu nome!"

Após ouvir esse relato, disse a ela: "Quanto medo você passou, e queria voltar para a Liv que conhece". Ao mesmo tempo, eu tentava alcançar, em mim, algo que pudesse colaborar conosco. Lembrei-me de uma conversa pessoal, com um amigo, quando relatei uma experiência de imensa aflição, quando eu estava na Itália e ocorreu um terremoto. De volta ao Brasil, em chão firme, ele me disse: "Adriana, posso me aproximar desse terror, porém nunca passei por um terremoto de fato, como esse, ainda assim, posso sentir agora a sua aflição". Era assim que eu sentia a dor de Liv, aproximando-me. No decorrer de nossos encontros, ambas inundadas de angústia, Liv foi se recuperando da catástrofe sofrida.

Após semanas de seu momento "escuro", que foi como ela nomeou aquele terror, falamos sobre a experiência.

A noite escura entre nós

Um dia, Liv veio para a sessão sob efeito de psicotrópicos. Deitou-se no sofá em frente ao divã, contando tudo muito devagar. Eu sentia que o ar iria lhe faltar a qualquer momento. Percebia que eu mesma estava prendendo a respiração, eu estava me aproximando e bastante entristecida. A via como em coma, prestes a apagar ou morrer, pálida como cera. Senti um intenso medo de perdê-la. Após algumas semanas, quando pôde descrever os fatos, me senti requisitada, como uma mãe cuidando de um bebê na uti neonatal, experiência que me é familiar. Percebia a sua necessidade de ser atendida com atenção delicada e firme. Ao ouvi-la, novamente impactada, conversamos sobre o ódio que Liv mantinha dentro de si, acumulado em seu abdômen, crescia de volume e provocava dor. Prestes a explodir, ela sentia fezes escorrendo por suas pernas e pés... fezes/sangue, partes de si mesma. Assustada, precisou limpar o mal feito, mas não conseguia, pois a torneira/analista/mãe/ventre não estava presente, eram insuficientes. A água que deveria jorrar para limpar todo o ódio só trazia vislumbres de afeto malcheiroso. Depois, humilhada por reconhecer as coisas escuras e fedorentas de si mesma, sentiu-se culpada e deparava-se com as próprias sombras.

Sentia o odor fétido espalhado pelo quarto - espaço que, contaminado por macumba, estava coberto por uma nuvem de poeira. No lugar do vazio e da ausência, objetos concretos surgiam espalhados, flutuando sem um continente seguro. Resolveu sentar-se no chão, lugar firme, mas o lustre balançava, aterrorizada, buscou um teste de realidade e notou que não havia vento que justificasse o balanço. Sua mente estava dividida entre realidade e terror, o olfato e a visão já estavam contaminados e projetavam cheiros e movimentos. Ajoelhando-se, pediu que os espíritos maus fossem embora, rogando por absolvição. Em seus delírios, a analista (mãe) mágica sabia e via tudo, mesmo que ausente, em seguida, sem resposta, a transformou na analista má (cruel) envolvida com os outros e não com ela e seu terror. Buscou ajuda no quarto do casal (filho-nora). Quando a porta se abriu, ela desmaiou - segundo ela, eles ficariam furiosos.

Estava só, no escuro e sem ar.

Recuperando fôlego, aos poucos, e o ar colorindo as faces, continuamos a pensar juntas. Nesse período, espontaneamente, relatei uma conversa que tive com um amigo, de quem só me lembrei quando a dor daquela experiência havia se acalmado: "Adriana, estou sempre tão acostumado a navegar de noite no rio. Porém, de uma hora para outra, passei a sentir muito medo de navegar no escuro, passei a sentir um enorme desconforto com a escuridão. Sabe aquele rio que eu tanto conhecia? Não conhecia mais. Uma noite, minha netinha pediu para estar comigo para navegar e eu aceitei, aos poucos, o medo diminuiu".

Liv respondeu: "A neta o protegeu, assim como me sinto com os meus, quando estou bem". Eu apontei: "A confiança que ela depositou nele o ajudou a perceber que ele era capaz. O que sinto aqui é que você foi capaz de passar por isso e se recuperar".

Antes, bem antes da noite escura

Quando iniciou a análise, Liv se preocupava com as prováveis traições do marido e sua falta de amor pelos familiares. Trazia a figura de uma mãe inalcançável, preocupada com bens materiais e de um pai apaixonado pela profissão e por outra mulher, o que agravava o ódio em Liv. Sua memória era carregada de desamparo e ódio. Passou por lutos difíceis na adolescência após a perda de dois irmãos.

Ao longo da análise ficou evidente que no mundo mental de Liv era natural rivalizar e se evadir da verdade, sustentando falsificações e não assumindo a condição de desamparo e dependência.

Também apresentou, durante a análise, várias doenças somáticas, com necessidade de internação e cirurgia. Sofreu de embolia pulmonar alguns meses antes da "noite escura".

Para mim, e depois para nós, tornou-se evidente que seu corpo era um depósito de angústias. O ódio era expelido (acusações e perseguições) e vivido dentro de si, concretamente (somatizações). Dessa forma, procurava livrar-se da dor psíquica.

A relação com o marido e os filhos, antes de separar-se, era marcada pelo desprezo. Todos os seus gestos eram sentidos como insuficientes e abusivos. Notava a distância do marido e, assim, julgava e atacava, evadindo-se da real angústia.

Alguns meses antes da separação, recebeu um dossiê que relatava que seu marido havia tido um caso. Trouxe o documento à sessão, pedindo que eu a ajudasse a entender o que se passava, mas já declarando que aquilo era fruto da inveja de quem queria "destruí-la".

Sublinhei o impacto que uma experiência como aquela provoca, e que sua dor parecia menos importante para ela do que achar culpados. Eu lhe disse que me senti tocada pela experiência, e que ela trazia tudo aquilo para que pensássemos juntas. Liv chorou, disse que não conseguia saber o que sentia, que talvez sentisse que as pessoas não são confiáveis.

Após algum tempo, notou sua própria frieza ao se relacionar com o marido e comigo, e decidiu "investir no casamento". Aproximou-se do marido e não faltava às sessões. Após alguns meses, chegou novamente enfurecida, dizendo que "o seu esforço era sempre em vão". Relatou conversas que havia tido com o marido, ele dizia que não conseguia estar com ela como Liv queria, ao pressioná-lo, ele disse que precisava viver experiências sozinho, mas que tudo poderia melhorar com o tempo.

Contou que ao ouvi-lo ficou com uma fúria desmedida, o acusou de traições e maus-tratos. Pediu que saísse de casa e contou a diversas pessoas que ele era um abusador, afirmando que queria deixá-la. Que essa história de ser boazinha e tratar bem os outros não passava de ilusão. Conversamos sobre o fato de ela não se sentir satisfeita tampouco na análise, parecia ferida. Da forma como falava, parecia que a análise provocava dor por ter buscado uma postura receptiva - o tiro sair pela culatra, pois tentava se aproximar, mas se feria. Disse que tinha que dar a ele um troco à altura.

Na semana seguinte (sexta-feira, mesmo dia da semana da noite escura), após nova conversa com o marido, que reafirmou seu afastamento, reagiu tomando uma cartela de ansiolíticos, foi encontrada pelo filho na manhã seguinte, desmaiada no banheiro. Essa reação violenta já havia ocorrido muitos anos antes de iniciar a análise, num período de grandes turbulências conjugais, quando iniciou o tratamento psiquiátrico que, após alguns anos, a trouxe à análise. Esse período foi complexo, a família procurou contato para compreender tamanha violência.

Após meses de intensas sessões, Liv, triunfante, mergulhou em tratamentos estéticos e terapias holísticas, dizendo que o peso morto a havia deixado. Pesamos os riscos, mas ela insistia, usando todos os métodos ao seu dispor para viver uma realidade mágica, construída por si própria. Um dos tratamentos provocou embolia pulmonar, o que quase a levou a óbito. Foram momentos de muita apreensão. Após esse episódio, entrava cambaleando em muitas sessões, por conta das doses de ansiolíticos. Liv se automedicava e dizia saber que tinha de aceitar seus limites para sobreviver.

Elaborações

Penso que a vertente da alucinose é a mais rica para aproximações com a atividade mental de Liv. Temos, no caso, uma série de elementos que trazem essa qualidade, pois na alucinose a pessoa cria um mundo de acordo com a sua imagem e semelhança, as regras que têm são as suas. O uso que Liv faz do meu consultório (não usar o divã e sim o sofá), como ela usa as palavras e como pensa, nos aproxima dessa hipótese. O mundo mental que revela é assertivo. As coisas são estabelecidas, ela não quer sentir incertezas.

Embora não estivesse em surto psicótico nessa sessão, seu funcionamento é psicótico. Não é um diálogo no qual um pensamento se configura, os pensamentos são fragmentados.

Está em amor com um objeto (uma de suas terapeutas), em luta com outro (analista ou psicanálise), excluída de outro (pessoas contra ela). Funciona na análise em luta e fuga1, ouve e não ouve, é impositiva, não quer vir. Há uma mente fragmentada cindindo a análise, pois ela pode entender o que eu falo, mas não capta o sentido. Com a outra terapeuta a relação é de dependência, numa dimensão alucinatória. Diz encontrar alguém que estimula a sua dimensão alucinatória, numa relação de dependência, conduzindo-a pelas mãos como se fosse um transe hipnótico. Há aqui uma descrição muito clara da mente primitiva, da cisão, da onipotência. Sente-se injustiçada porque os outros não entendem o seu funcionamento.

Liv trata a terapeuta como um anjo da guarda, traz uma falsa concepção dos filhos, do marido, de mim. A palavra que Bion usa é misconception.2 Vive cercada de objetos bizarros,3 sempre com fortes emoções (hipérbole).

E com a analista? Que criação que ela desenvolve? Há inveja e ataques, tenta se manter superior à análise. A esperança é que, com o passar do tempo, possa juntar os pedaços e organizar o espaço mental. Afinal, Liv retorna, mesmo que escondida nessa camada de situações que ela mesma cria, fruto de predeterminações.

Tempos nublados após a noite escura

Alguns meses depois do episódio que ela chamou de "noite escura", Liv oscilava entre perceber a sua violência, captar as necessidades dos filhos, e expressar seus pensamentos rígidos, voltando a atacar seus vínculos.

Em algumas sessões, ela trouxe a neta de 2 anos. Logo ao entrar, ela se sentava para brincar no chão e colorir papéis. A neta geralmente pedia que Liv se sentasse ao seu lado para brincar. Observei a dificuldade de Liv de entrar no mundo dos sonhos, da imaginação e da criatividade. Mostrava a ela que esse "não jeito", com um prazer lúdico, pode ajudar a desenvolver a plasticidade psíquica. Conversamos sobre como Liv brincava e o que a fazia sorrir. Foram momentos interessantes: um bebê criativo e uma mente endurecida, porém com interesse de se aproximar.

Em outras sessões, queixava-se por viver sem desejo. Um tanto anestesiada, dizia não sentir tanto ódio, ainda que lhe faltasse sentir amor.

 

Compreensões teórico-clínicas

Bion desenvolveu um inovador trabalho psicanalítico com psicóticos, aprofundando-se no estudo da relação analista-analisando, procurando desenvolver uma teoria sobre o pensar (1962/1966). Na visão de Freud, a capacidade de pensar se desenvolve a fim de nos permitir perceber, adaptar-nos à realidade e mudá-la. Freud (1911/2006) vincula a origem do pensamento a tolerância e frustração. Bion considera a tolerância à frustração como fundamental, porém, para ser pensamento e não apenas razão, deve haver um processamento de experiências emocionais. É somente com ele que a experiência emocional vivida adquire importância. A experiência emocional sinaliza a fragilidade ou a força do vínculo. Assim, é importante considerar que a dupla analista-analisando nasce em cada momento da sessão.

O modelo de que Bion escolhe para significar a experiência emocional é representado pelo at-one-ment (uníssono) com a mãe, relacionada com a capacidade materna de reverie,4 de acolher e de sonhar as angústias da criança, de reconhecê-la e amá-la. Assim, Bion formulou seu conceito de continente-contido:5 a reverie da mãe é necessária para absorver e desintoxicar o medo de morrer de seu bebê, que ele projeta no continente da mãe. Porém, em situações em que há um desastre primitivo - ou seja, quando tais conteúdos emocionais, elementos beta,6 não encontram um continente (mãe com reverie) que os transformaria, devido a uma falência da função alfa7 -, ele não formará um continente que acolha as próprias emoções violentas. Nessas condições, o terror não nomeado pela mãe é devolvido ao bebê e, assim, se configura um modo de funcionamento mental cujas dimensões são infinitas.

Bion apresenta a ideia de que as alucinações são o produto da evacuação de elementos beta, portanto, correspondem a um nível mental primitivo. As alucinações invisíveis, francas, se encontram incluídas no processo que Bion denominou "transformação em alucinose". Supõe-se que esse nível de funcionamento mental existe em todo ser humano, porém às vezes é uma barreira ao desenvolvimento.

A teoria das transformações traz instrumentos bastante sensíveis aos movimentos que podem ser apreendidos da experiência emocional no encontro analítico: o estado mental, as transformações em jogo, o estágio de crescimento, o uso que se faz da comunicação, e em que dimensão a comunicação se efetiva.

Nos três tipos de transformações observadas por Bion sobre o ato psicanalítico (movimento rígido, projetiva e alucinose), há modificações sofridas de uma situação prévia. Podemos compreender os tipos de transformações usando uma metáfora espacial tirada do pensamento kleiniano: a distância em que um objeto é projetado depende da intensidade da identificação projetiva.

Aqui, vamos abordar especificamente a transformação em alucinose, em que há projeção em um espaço infinito. É difícil de reconhecer os invariantes que refletem O.8 Os vínculos são atacados. Em vez de os pensamentos crescerem em um espaço tridimensional, são destruídos, por conta de objetos que os obstruem, como a arrogância e a onipotência. A inveja também ataca novas ideias que são fragmentadas e evacuadas, o analisando gratifica todas as suas necessidades por significados de sua própria criação. Convicto de suas ideias, não tolera pensamentos diferentes, e assim a mente passa a funcionar como um "músculo de evacuação" (Bion, 1965/1983).

Algo que ilustra o que experimentei com Liv é que na alucinose, antes de produzir alucinações verdadeiras, o analisando cria para si um mundo próprio, provendo-se de produções alucinatórias para sustentar o eu narcísico. Vive-se em completa liberdade das restrições impostas pela realidade externa. A sua realidade é a da alucinose, o que limita, oprime e ameaça o sujeito com o sofrimento da dor da frustração. Portanto, a única realidade em que se crê é aquela gerada por si mesmo.

No campo analítico, a presença de um outro é tida como persecutória, pois provoca tensão, inflamando a relação com cargas emocionais. A hipérbole é um mecanismo chave, pois para garantir o auxílio do continente, a emoção deve ser exagerada. Lidamos aí com emoções tóxicas que se tornam mais tóxicas quando, como no caso da alucinose, o pedido de ajuda não encontra um continente interno e/ou externo adequado.

Um sistema de alucinose se assenta, portanto, na intolerância à ausência de objeto, em vez de digerir a dor e o vazio fica estabelecido que "o espaço é uma presença que, em virtude de uma transformação em alucinose, troca o agora-não-está, sequência temporal, e o aqui-não-está, sequência espacial, por um agora-aqui-está" (Civitarese, 2015). Cria-se, assim, um espaço ocupado por objetos inexistentes alucinados. O espaço-tempo não ocupado não é tolerado, mas atacado por inveja e voracidade.

A ausência do seio é uma presença, a palavra é usada como coisa e a memória da satisfação é usada para negar a ausência de satisfação (Bion, 1965/1983).

Alguns analisandos, imersos na parte psicótica de sua personalidade, usam esses métodos para ganhar independência que consideram superior à psicanálise. O resultado é uma circularidade: criar alucinações para fugir da dor psíquica provocada pela frustração, ao fracassar, elas aumentam a voracidade, por fim, vê-se aumentada a necessidade de alucinar. O contato com o fracasso da magia alucinatória aumenta "a inveja e a rivalidade frente ao analista" (Lópes-Corvo, 2002, p. 343).

Nessas situações, as emoções reais raramente aparecem para dar coerência e vitalidade à sessão, como se analista e analisando vivessem num cenário, transformação de algo original.

No sistema de alucinose, a pessoa não se aproxima da verdade e não aprende com a experiência, por não suportar a frustração. Tomando a realidade por suas próprias impressões, "é possível, por esse viés, viver no mundo sem assumi-lo, viver em um corpo, mas não o habitar, numa completa independência para com a verdade, com o agravante da presença do sentimento de inveja e da arrogância" (Chuster et al., 2014).

Tolerar a frustração Experimentar o caos: realidade compartilhada

Durante anos, principalmente nos primeiros tempos de análise, eu percebia que Liv apresentava um tom de superioridade, recheado de características superegoicas que ocupavam o lugar de pensar, de permitir que aspectos da própria mente fossem experimentados. Reconhecia em mim a dificuldade de me aproximar de suas experiências emocionais. Havia turbulência e estimulação de afetos intensos, mas nenhuma ideia ou imagem me ocorria para que eu me aproximasse dela, significando-a. Eu parecia buscar uma causa para tanto terror, e me distanciava ainda mais com interpretações que ligavam suas dores atuais ao desamparo sofrido num tempo que não era o nosso. Nada acessava Liv.

Suas dores hipocondríacas sobrecarregavam o corpo e a evacuação de seus ódios formava o caldo de nossa análise. Notei também que digerir as densas emoções (reverie) não era suficiente para transformar os pensamentos ou para promover alívio.

Na verdade, penso que o foco dessa possibilidade de aproximação não estava na compreensão do conteúdo ou em trabalhar significados de experiências concretas, mas em me ocupar de captar o que ela deformava, e como. A análise foi revelando suas manobras e dificuldades de aprender com as emoções, com a necessidade de suportar o sofrimento psíquico que a realidade impingia.

A manipulação e a distorção dos fatos, para fazer frente ao terror de si própria, se configuravam pela lógica de que nada "é percebido, mas sim reconhecido pelas sombras que refletem a realidade da alegoria da caverna de Platão"9 (Vermote, 2019). Vivia presa, confinada em uma caverna, onde reinava a violência.

Nesses movimentos, camadas rígidas eram desmanchadas e recriadas, sem a possibilidade de reflexão ou de sensibilidade estética, consequentemente, não era ética.

No ápice da "noite escura", sem direção e em plena desordem, nada mais podia ser negado ou descartado por racionalizações. Estávamos à flor da pele. Ela e eu. O medo nos assolou. Eu a imaginei morrendo sem poder chegar à sessão. Certa vez recebi uma mensagem e supus que fosse dela, fiquei apreensiva e quando chegou o seu horário ouvi alguns ruídos na sala de espera, imaginei que fossem seus parentes que a traziam carregada. Quando a encontrei, nada disso se confirmou.

Além de tantas manifestações (ora conhecidas, ora desconhecidas), o que de fato ocorreu foi que nosso mundo interno jorrou como uma aparição, notar e lidar com isso permitiu a criação no caos, pois Liv sobreviveu, e foi capaz, então, de fazer algo a respeito da experiência.

Uma coisa é falar sobre teorias e conceitos psicanalíticos, outra é falar sobre o ato construído na relação analista-analisando, que faz com que a análise seja um produto da história que se inscreve na relação. Das diferentes dimensões mentais que exercitamos para sobreviver psiquicamente, emergiram sentimentos diversos. Aos poucos, criamos algo novo, para que fossemos capazes de vivenciar juntas o terror, o que pode transformar as oportunidades amargas em possibilidades.

 

Considerações finais

Segundo Bion (1973/1970), o analista pode usar o fenômeno da alucinose como guia técnico, tal como a fé, a capacidade negativa10 e a negação disciplinada, reduzindo assim a atividade psíquica introjetiva mediada pelos sentidos.

Para captar os fundos emocionais do campo analítico, ou seja, algo que é inconscientemente produzido entre analista e analisando, a alucinose poderá funcionar como uma sonda profunda, que explora a realidade interpsíquica (emoção uníssona), buscando entrar em uma ressonância igualmente profunda com a realidade psíquica do analisando. O analisando destrói inconscientemente a sua realidade psíquica, criando para si mesmo um mundo super concreto, enquanto o analista, em seu próprio tempo, destrói a sua, almejando voltar novamente para a realidade em que a alucinose é substituída por uma crítica à alucinose (Civitarese, 2015).

Foi em Cogitações (2000/1959-1979), que Bion fez uma interessante consideração, que para mim esclareceu essas conjecturas um tanto complexas. O autor apresentou a ideia de que, se um analista tem a impressão, durante a sessão, de que um analisando não é casado, ele deve seguir a sua ideia, mesmo se ela for desmentida pelo estado civil.

Talvez, tais alucinações do analista se apresentem quando somos confrontados à angústia de não compreender o que se passa em determinado momento da sessão, ou quando não conseguimos atribuir um sentido à experiência. Isso cria uma situação tal que, a atividade alucinatória do analista toma a dianteira e é percebida. O terror da perda do sentido, que o analista vivenciou alucinando, e o medo de perder o objeto interiorizado que dá sentido à experiência, são substituídos pelo resgate de uma nova experiência de sentido profundo.

A alucinose ou a alucinação podem se transformar num sonho e assim, teremos ao nosso dispor uma forma simbólica, equivalente ao sonho noturno, que podemos utilizar para mergulhar no contato com o analisando.

Dessa forma, finalizando a escrita, mas não as questões, penso que, para ajudar o analisando e alcançar o estado de alucinose, devemos evitar a memória e os desejos, considerando nossas próprias alucinoses como produto inconsciente da dupla que constitui aquela análise. Além de todos os recursos que utilizamos - reverie, transformações em sonho etc. -, a alucinose experimentada, e depois percebida, será sem dúvida enriquecedora.

 

Referências

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Bion, W. R. (1973) Atenção e interpretação: uma aproximação científica à compreensão interna na psicanálise e nos grupos. Imago. (Trabalho original publicado em 1970)        [ Links ]

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Chuster, A. et al. (2014). A obra complexa, W. R. Bion. Sulina.         [ Links ]

Civitarese, G. (2015) Transformations in hallucinosis and the receptivity of the analyst. The International Journal of Psychoanalysis, 96,1091-116.         [ Links ]

Freud, S. (2006). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 12, pp. 233-244). Imago. (Trabalho original publicado em 1911)        [ Links ]

López-Corvo, R. E. (2002). Diccionario de la Obra de Wilfred R. Bion's. Biblioteca Nueva.         [ Links ]

Vermote, R. (2019). Reading Bion. Routledge.         [ Links ]

 

 

Recebido em em: 5/7/2021
Aceito em: 3/9/2021

 

 

1 A frustração, que se faz inevitável, não pode ser tolerada porque a frustração requer uma tomada de consciência, do transcorrer do tempo e de tudo que isso implica. A fuga oferece uma oportunidade de satisfação imediata para a emoção.
2 Visão ou opinião incorreta, baseada em falsos pensamentos ou compreensões.
3 Constituídos por partículas desprendidas da mente que se acumulam e endurecem em um objeto externo com traços de ego e superego. Esses objetos constituem o material que forma os delírios e, por isso, se diferenciam dos elementos beta (Lópes-Corvo, 2002, p. 21).
4 Conceito baseado na teoria de Klein sobre a identificação projetiva. É mencionado por Bion na teoria sobre o pensar. Refere-se à capacidade de a mãe desenvolver um órgão receptor que permita metabolizar a informação sensorial do bebê e transformá-la em elementos alfa. O bebê se beneficia dessa capacidade de sonhar a reverie da mãe, da mesma forma como o leite que consome é digerido dentro do canal digestivo (López-Corvo, 2002, p. 281).
5 Um dos elementos psicanalíticos que Bion utiliza para representar vínculos possíveis entre o continente que recebe e o conteúdo compartilhado ou expelido (López-Corvo, 2002, p. 93).
6 Representam impressões sensoriais, objetos compostos de coisas e sentimentos de depressão, perseguição e culpa. (López-Corvo, 2002, p. 40).
7 Corresponde a uma abstração usada pelo analista para descrever uma função capaz de converter informação sensorial em elementos alfa, provendo material para os pensamentos oníricos.
8 Realidade última, origem, uma possibilidade de ser ou não ser (López-Corvo, 2002, p. 231).
9 Tradução livre da autora.
10 Para Bion, representa um estado mental de tolerância à ignorância (Lópes-Corvo, 2002, p. 79).

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