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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.55 no.103 São Paulo jul./dez. 2022  Epub 08-Jul-2024

https://doi.org/10.5935/0103-5835.v55n103.24 

Resenha

A mulher em segundo lugar ou um ensaio sobre a artista Berthe Morisot

Maíra Firer Tanis1 

Luciana Saddi1 

1Membro efetivo e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Psicanalista, escritora e mestre em Psicologia pela puc-sp. Autora de Educação para a morte (ed. Patuá). Fundadora do Grupo Corpo e Cultura. Coordenadora do programa de cinema e psicanálise da diretoria de cultura e comunidade da SBPSP em parceria com o mis e a Folha de S.Paulo. São Paulo

Tanis, Maíra Firer. Artes & Ecos. São Paulo: Luciana Saddi, 2022. p. 128


Há livros que se lê de uma só vez, sem interrupções. E, com naturalidade, enquanto lê, pensa de imediato em sua vida, na da sua mãe e de suas irmãs. Durante o movimento de associação livre, considera semelhanças e diferenças, confronta o que é narrado com o que viveu, ao passar os olhos pelas frases e ideias expostas. Surpreende-se ao lembrar de acontecimentos perdidos nas estantes da memória, lembranças da infância e da juventude, talvez encobridoras - como dizia Freud (1899/1976) -, mas, com certeza, reveladoras da proximidade entre a personagem central, a autora e você.

O ensaio de Maíra Firer Tanis, que tem como personagem central a figura da artista Berthe Morisot, marcado por um clima onírico, criativo, provoca uma “viagem” interior e muitos momentos de inconformismo, ao expor a condição subalterna e injusta das mulheres no passado e no presente.

Escrito de forma pessoal, o ensaio tem a potência da voz e da visão singular da autora e, por isso, pode-se dizer que está de total acordo com a tradição do gênero. Além dessas qualidades, é interessante, culto, escrito em linguagem oral, acessível para aqueles que não conhecem ou não dominam os códigos da arte e da psicanálise. Tanis tece uma trama complexa de conexões com Berthe Morisot e dialoga, em tom de interrogação, com diversos escritos sobre a vida e a obra da artista, pintora e escultora, além de fundadora do movimento artístico impressionista que, por ser mulher, não desfrutou do reconhecimento artístico nem mereceu a mesma distinção obtida pelos homens do movimento. O livro é resultado de densa e longa elaboração.

Em completa consonância com o gênero ensaio, somos levados ao conhecimento de sua “viagem” com Berthe Morisot. Pois é disso que se trata: uma espécie de loucura benigna que, por vezes, acomete curiosos investigadores do mundo e de si mesmos. Viagem que passa por diferentes registros e etapas. Que envolve o viajante de tal maneira que vida e obra pouco se distinguem. Viagem no tempo, na história da arte e dos impressionistas, na história das mulheres e na própria história de Maíra. Acompanhamos o movimento mental da autora, ir e vir com Berthe e consigo mesma e com ensaístas e escritores importantes que “participam da viagem” em diferentes momentos da investigação. Na longa e interessante jornada, dois companheiros de percurso se destacam: Dante, na posição de abre-alas; e Virginia Woolf, que a conduz, pelas mãos, com segurança, por caminho doloroso e questionador.

A abertura da “viagem” - afinal, quem sabe dizer exatamente quando um interesse se torna curiosidade ou obsessão? - tem Dante como guia. Já na epígrafe, se anuncia certo perigo, não exatamente por adentrar ao reino do inferno e, sim, no reino da curiosidade. A partida, mas, talvez, não o início da produtiva obsessão por Morisot, ocorre no momento em que a autora observa a tela O berço, de 1872, no museu d’Orsay, em Paris. Maíra relata: “A obra captura um momento de ternura da mulher que envolve o berço onde repousa um bebê dormindo”. Nesse primeiro encontro, “amor à primeira vista”, o destaque é a assinatura do artista desconhecido B. Morisot. E imagina quão sensível seria o homem que captou e eternizou momento de tanta intimidade entre mãe e bebê. Estranha que não conhecesse o impressionista chamado Morisot. Percebe que, no encanto imediato com o quadro, a cena pintada, as delicadas emoções que emanavam da pintura correspondiam à própria experiência como mãe. Cansaço e ternura. Nesse instante de comunhão imediata entre obra e ensaísta, nasce o processo de investigação que arrastará Tanis e o leitor para diversos caminhos narrativos pessoais associados a percursos históricos, inclusive daqueles que tratam do lugar da mulher na sociedade. Variados registros temporais se misturam. Passado, presente e futuro contorcidos como nós de marinheiro prendem o leitor, que vive o estimulante mistério da imaginação associada ao conhecimento.

Posteriormente, a partir da curiosidade com a obra, Tanis descobrirá que o B. de Morisot é Berthe, mulher, artista pioneira, impressionista. Anterior aos próprios impressionistas, pintava com eles, mas a quem a musa 322 da história destinou o segundo plano.

Investigações viscerais são, sobretudo, empresas arriscadas. Permeadas por afetos, trazem a possibilidade de descontrole e loucura. A imagem do “cientista” apaixonado pelo objeto investigado, rumo aos desvãos, é frequente. Escolher a companhia do maior poeta italiano, “à meia idade”, para se perder na “selva escura”, é bastante representativo do risco.

Fisgada, Maíra tem sua curiosidade dirigida à obra e vida da artista Berthe Morisot, desdobrada para momento histórico, história da arte e dos artistas impressionistas, situação social e cultural das mulheres burguesas que iniciavam o movimento de emancipação. Curiosidade que se expande para os domínios da própria infância, maternidade e vida adulta. Nessa jornada, segue acompanhada por Virginia Woolf que, no célebre ensaio Um teto todo seu (1928/s.d.), faz fundamental reflexão sobre a relação entre autoria e mulher. Woolf coloca a questão de haver, ainda no início do século 20, tão poucas escritoras. Responde dizendo que sem teto e sem tostão não há como escrever. E, Tanis acrescenta, pintar. Mulheres não tinham um lugar, “um teto todo seu”, para si - viviam entre a cozinha e o quarto das crianças -, não havia sala ou refúgio para onde pudessem se recolher e muito menos verba ou renda anual que lhes permitisse viver e escrever ao mesmo tempo. Suas vidas não eram como a dos homens que tinham renda e gabinete para onde se retiravam do barulho cotidiano a fim de produzir literatura ou ciências. Ao final do ensaio, Virginia celebra as primeiras escritoras mulheres, recém-saídas dos séculos 18 e 19, mas observa que seus temas prediletos giram em torno dos homens. Propõe, então, em tom de desafio, que a literatura do futuro se torne mais interessante e que possa se deter na relação das mulheres com as mulheres. Acreditava que daí decorreria a verdadeira emancipação. Não é difícil imaginar quão produtiva pode ser a companhia de Woolf, visionária, na medida exata do próprio ensaio de Tanis, que tem como fonte principal o interesse primário pela artista mulher, Berthe Morisot.

Maíra registra a história de uma mulher e, por extensão, de tantas outras contemporâneas de Berthe. Conta também sua própria história e de suas contemporâneas. Fala das relações entre as mulheres da época de Morisot e das relações entre mulheres de seu próprio tempo. Fala, sobretudo, de opressão, depressão e impossibilidade de existir fora do âmbito da cozinha e do quarto de criança. E, ainda, esclarece os mecanismos de defesa intra e extrapsíquicos adotados por tantas mulheres para sobreviver, produzir e existir em meio a dificuldades e restrições extremas.

As abordagens e relações construídas por Tanis levam o leitor ao interior da lógica de concepção de A mulher em segundo lugar ou um ensaio sobre a artista Berthe Morisot, ou seja, o método interpretativo da psicanálise. O livro transpira psicanálise, mas evita impô-la como teoria ou teorias. Prefere optar pelo uso de interpretantes, para manter vivo o processo de criação de sentidos. As teias entrelaçadas de significação se adensam com a justaposição de novas camadas de linguagem e realçam o método da psicanálise, na medida em que o apresentam como essência viva do fazer analítico. A psicanálise é tão natural, leve e integrada ao pensamento e texto de Maíra que esquecemos que a autora é psicanalista com formação em Artes. Também não se percebe a intensidade e o volume do trabalho de elaboração psíquica necessários para que anos e anos de vida fossem dedicados a pesquisar Morisot e seus desdobramentos.

Estamos diante de duplo acontecimento estético. De um lado, o texto traz a marca da bailarina que jamais mostraria os pés ensanguentados e deformados pelas repetições, aulas e ensaios exaustivos, além do uso torturante das sapatilhas de ponta. Do outro lado, é Morisot, na tela O berço, como duplo de Maíra Firer Tanis. Na pintura, vemos a mãe apaixonada pela filha no berço. O olhar de admiração e amor traz também o semblante característico da exaustão e dedicação de mães de recém-nascidos. Berthe Morisot e sua obra pictórica são o bebê de Tanis, encantada pela artista e obcecada por desvendar os mistérios apaixonantes de quadros e história, ainda que possa sentir, eventualmente, alguma fadiga. Como se fosse o duplo de Maíra, gêmea imaginária, vinda do passado para iluminar o presente.

Por último, pequena nota de protesto. A editora Artes & Ecos poderia ter feito apresentação mais cuidadosa do livro. Há poucas imagens para ilustrar as descrições preciosas da autora relativas às obras impressionistas, que também não foram impressas em papel e tamanho que as valorizasse.

Referências

Freud, S. (1976). Lembranças encobridoras. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, Trad., Vol. 3, pp. 329-354). Imago. (Trabalho original publicado em 1899) [ Links ]

Woolf, V. (s.d.). Um teto todo seu. (V. Ribeiro, Trad.). Círculo do Livro. (Trabalho original publicado em 1928) [ Links ]

Recebido: 31 de Julho de 2022; Aceito: 05 de Agosto de 2022

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