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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.44 no.2 São Paulo  2010

 

RESENHAS

 

Presença sensível

 

 

Autor: Daniel Kupermann
Editora: Civilização Brasileira, 2008, 250 p.

Resenhado por: Marion Minerbo,1 São Paulo

Endereço para Correspondência

 

Em defesa de um paradigma estético-criativo para a clínica

O leitor talvez estranhe começar a resenha de um livro com considerações sobre sua capa. Mas no caso de Presença sensível, de Daniel Kupermann, ela expressa tão bem o que a leitura do livro nos trará, que não resisti. A capa é monocromática, de um roxo intenso, diante do qual não temos álibi (faço referência ao capítulo 5, "A libido e o álibi do psicanalista"): somos afetados pela matéria da cor sem apelações, sem saídas defensivas. Sobre o roxo, dispostos com intervalos regulares em linhas verticais e horizontais, há mínimos quadrados em relevo que nos surpreendem, e sobre os quais é irresistível passar os dedos. Tem-se o prazer de experimentar a extrema sensibilidade da ponta de nossos dedos que descobrem, maravilhados, o contraste sutil entre a textura desse relevo e a capa.

A arte gráfica de Elmo Rosa soube, pois, criar uma gestalt poderosa para dar expressão à pulsão que move o pensamento do autor. O termo me parece adequado para reunir, em uma palavra, a fonte e a força que movem a escritura de Daniel Kupermann. Trata-se, em minha leitura, de oferecer elementos para certo trabalho psíquico exigido constantemente aos analistas: o resgate da ética – inaugurada por Ferenczi em suas investigações sobre a técnica –, segundo a qual o analista deve se oferecer como presença sensível e implicada na dimensão estético-criativa de seu ofício.

Os elementos oferecidos por Kupermann para o resgate dessa ética podem ser reconhecidos em todos os ensaios, não como repetição sintomática, mas como expansões criativas e elaborações múltiplas, que mostram todo o potencial produtivo dessa matriz. "O livro deriva, sobretudo, do questionamento do estatuto do analisar, bem como a maneira pela qual o analista pode, efetivamente, contribuir para minorar o sofrimento […], facilitando a emergência de uma vida mais potente e criativa" (p. 11).

Leve e agradável no estilo, preciso e rigoroso no pensamento, o livro se deixou ler com prazer. O mais relevante, contudo, foi minha sensação de que o recorte feito por Daniel Kupermann, ainda que trate de temas/autores conhecidos, foi suficientemente singular, criativo e bem elaborado para que eu tivesse a experiência preciosa de estar lendo aquele tema/autor pela primeira vez. Presença sensível me sensibilizou para novas questões e ressensibilizou para outras, nas quais o pó da rotina tende a se acumular.

O autor defende, ao longo dos ensaios, certa concepção do ato analítico que toma em consideração a necessidade, por parte do paciente, de sentir que seu analista fala "com ele", e não "sobre ele". No capítulo 4, inspirado pelo filme de Almodóvar, Fale com ela, desenvolve a ideia de uma fala analítica encarnada e erotizada, capaz de afetar o paciente, resgatando-o de "estados mortificados" (p. 113). Encarnada e erotizada por oposição a outra, asséptica, científica e defendida (dos médicos diante da paciente em coma, no filme).

Quanto ao método, em vários ensaios o autor trabalha historicamente, fazendo uma genealogia de conceitos – é sobretudo aqui que reconheço a originalidade de seus recortes – para mostrar ao leitor, com grande acuidade, os momentos em que se desliza para concepções empobrecedoras do ato analítico. Em seguida, introduz os elementos que nos ajudam a resgatar a potência da psicanálise. Assim, com relação à história do movimento psicanalítico (capítulos 1 e 7), o autor aponta com o dedo o momento em que, por medo do descrédito a que interpretações selvagens poderia levar, optou-se por uma formação bem formatada, a qual, por sua vez, logo revelou outros riscos: o de enrijecimento da prática clínica.

No capítulo 4 é a vez de Daniel Kupermann apontar o momento preciso em que a fala do paciente, inicialmente liberada para a associação livre (fala catártica), volta a silenciar em submissão à fala douta do analista. Em sua leitura, a dificuldade em tolerar a explosão emocional catártica no período inicial teria originado um estilo clínico defensivo e defendido – frio e sóbrio – que logo se disseminou com a crescente institucionalização da psicanálise. Neste, o analista podia se resguardar da intensidade dos afetos em circulação no campo transferencial-contratransferencial adotando, como álibi (capítulo 5), uma postura científica em que a interpretação busca os possíveis sentidos ocultos como verdade a ser revelada ao paciente. O autor mostra como Ferenczi, especialmente em seu Diário Clínico (capítulo 5), lutou consigo mesmo para manter vivo o potencial subversivo da fala – tanto a do paciente, isto é, da criança no adulto, quanto do analista – com interpretações enunciadas a partir de um lugar marcado, em primeiro lugar, por uma abertura sensível ao outro, e por uma implicação efetiva e afetiva. É importante sublinhar que a expressão "presença sensível" não se confunde com a prática de uma maternagem edulcorada que derivou de certa leitura da obra de Winnicott – analista que mais perseverou nas trilhas abertas por Ferenczi.

O mesmo método genealógico aparece em "Dor e cura na constituição da clínica freudiana. Um ensaio sobre o primeiro Freud" (capítulo 2). Aqui o autor identifica os pontos de virada em que certa concepção sobre a origem da dor psíquica e sua cura, cede lugar a outra. O objetivo é apontar o momento em que surge, com Ferenczi, uma concepção da cura como "construção de um saber sensível sobre o traumático". O autor percorre três momentos. No primeiro, a dor psíquica está relacionada à reminiscência: "lembrar dói", e a cura estava relacionada à catarse possibilitada pela rememoração. Em seguida, quando entra em cena a noção de conflito e defesa, "pensar dói"; a cura envolve tornar consciente (pensável) a ideia incompatível que originou o conflito. Por fim, quando Freud descobre que o traumático não é o momento da experiência sexual em si, mas o do saber (a posteriori) sobre ela, a concepção de dor psíquica passa a ser "saber dói". Mas a cura, diz Ferenczi opondo-se à concepção de cura vigente, passa pela construção de um saber sensível, e não intelectual. Para não repetir o trauma, a construção de um sentido para a dor e para o traumático que terá de passar também pelo psiquismo do analista: "a dor de transferência é atual e verdadeira, e exige trabalho psíquico (pulsional) por parte do analista na constituição de um novo saber" (p. 78).

O capítulo 7, a meu ver o mais instigante ("Resistência no encontro afetivo: sublimação e criação na experiência clínica"), dá continuidade ao tema introduzido em "Dor e cura…" (as concepções de dor e cura ao longo da história da psicanálise). Mas o caminho é outro. O autor empreende a genealogia da noção de sublimação para poder apontar o momento em que se desliza do paradigma cientificista para o paradigma estético. Em um primeiro momento, o conceito de sublimação esteve vinculado à ideia de deserotização do alvo da pulsão. A neurose era vista como exigência excessiva, feita pela civilização, às parcas capacidades sublimatórias do sujeito. Nesse contexto, não fazia sentido pensar a meta da análise em termos de ajudar o paciente a ampliar as possibilidades sublimatórias; ao contrário, pensava-se que o importante era mais prazer e menos sublimação. Num segundo momento, a sublimação passou a estar relacionada à capacidade criativa do sujeito. É nesse momento que se desliza de um paradigma cientificista/hidráulico para outro, estético. Isso acontece quando a sublimação deixa de ser vista apenas como deserotização da pulsão e adquire importância como "invenção permanente de novos objetos de satisfação erótica e recriação de si" (p. 171). Essa ideia me pareceu verdadeiramente preciosa: se a civilização produz dor psíquica, não é pela repressão sexual (que se revelou ser um imaginário datado), mas pelo "impedimento da criação de estilos de existência singulares" (p. 173). Com isso, a concepção de cura muda radicalmente: ela passa a estar relacionada com a emergência de processos criativos nas subjetividades comprometidas em sua capacidade expressiva. É preciso criar formas de ser singulares para que o sujeito possa erotizar sua existência. Essa afirmação é de observação cotidiana, especialmente nos pacientes mais comprometidos; a impossibilidade de erotizar a existência origina o tédio e a depressão em que soçobram.

Mas o autor não para por aí: ele se pergunta de que maneira o analista pode facilitar a emergência do processo criativo. Se a análise "é uma modalidade sensível de conhecimento" (p. 179), se é um saber criado a partir da mútua afetação, o analista precisa estar aberto e disponível para a alteridade. Duas formas de participação são destacadas: "reverberação" e "reflexo" (p. 183). Ferenczi reconheceu cedo as forças que, no analista, e não no paciente, produzem uma resistência ao processo. É isso que conduz Kupermann a questões relativas à institucionalização da formação analítica (capítulo 1). A crítica incide sobre a análise contratada como parte dessa formação, e não a partir de uma demanda viva, nascida das dificuldades encontradas pelo analista no exercício de sua clínica.

Finalizando, é importante sublinhar a importância de uma resenha deste livro na Revista Brasileira de Psicanálise. O ostracismo científico a que Ferenczi foi condenado, desde sua morte precoce em 1933, até 1985 quando seu Diário Clínico foi publicado, atrasou, em muitos anos, o contato dos analistas em formação na IPA com sua obra. Presença sensível tem o mérito de instigar o leitor a fazer, nas trilhas abertas por Kupermann, sua própria genealogia, relacionando autores contemporâneos ao analista que ousou colocar em questão, pela primeira vez, o próprio analista.

 

 

Endereço para correspondência

Marion Minerbo
[Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP]
Rua Alcides Pertiga, 78 – Cerqueira Cesar
05413-100 São Paulo, SP
e-mail: marion.minerbo@terra.com.br

 

1 Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo SBPSP.