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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.49 no.4 São Paulo out./dez. 2015
RESENHAS
A infância através do espelho: a criança no adulto, a literatura na psicanálise
Thaís Feistauer Starling
Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre (SBPdePA)
Autor: Celso Gutfreind
Editora: Artmed, Porto Alegre, 2014, 208 p.
A obra A infância através do espelho, escrita pelo psicanalista Celso Gutfreind, é composta de vinte e cinco ensaios psicanalíticos, divididos em três eixos: literatura e psicanálise, psicanálise e literatura, e por último literatura e psicanálise enfim juntas. Nessa primeira descrição, fica claro o quanto Celso transborda cuidado com as palavras, com a vida. A ordem muda, o sentido e o destino do processo se diferenciam e sistematicamente o todo se modifica.
No título, o autor já indica o fundamento do seu pensamento. A criança está no adulto como a literatura está na psicanálise. A literatura empresta base para a psicanálise ir além, base frutífera, complexa. Assim como os olhos dos pais, primeiro espelho, primeiro apenas. O espelho da literatura, o espelho dos olhos, carregados de amor e angústia, carregados de duplicidade, constituem, ou pelo menos deveriam, a possibilidade de construir alguém que possa olhar pra si e então libertar-se dessa necessária primeira prisão. Precisamos do Outro para nascer, do Outro para nos constituir, da literatura para nos contar, do Outro para ir, e também de quebras e novas palavras para ir além. Celso define: há um mundo de palavras e de gente em nós, não seguiremos nunca sozinhos, o Outro-pais, o Outro-analista, o Outro-literatura, o Outro em nós. Fundamental é levarmos e transformá-los, fundamentais são eles em nós, mas não sermos eles, sabermos ser o próprio olhar. O absoluto não existe, carregaremos os outros, esses que nos fizeram, e também - sim, é possível - seremos outros novos, outros tantos, outros que ainda nem sabemos.
O livro apresenta dois pedaços profundos, o escritor e o psicanalista, não podemos dizer ao certo quem o habita mais nem quem veio primeiro. O autor consegue unir pilares que, me parece, sustentam seu viver e seu psico-analisar; e, sobretudo, os entrega ao leitor. Celso vai além: oferece, costura e mantém uma postura, ao longo de todo o trabalho, que eu chamaria de permissão. Já brincando com a permissão que ele nos entrega, eu diria que ele cria uma "permi-seja".
As palavras são o fio condutor do autor e do psicanalista, a base freudiana da cura pela palavra vive em cada página do livro. Historizar, contar-se, é o caminho sem volta da existência, o caminho para elaborações férteis e possíveis. Nesses ensaios, as palavras acabam por revelar transformações que são sustentadas também na ordem da experiência, os sentidos são convocados e emergem, criando uma nova lucidez nas histórias contadas. Há no todo uma criatividade apoiada no sentir e nas novas palavras, ou, muitas vezes, na realocação delas, gerando uma novidade na existência. Assim, do mesmo modo que ele determina os três eixos do seu livro, ele o faz no recontar, no recosturar. Um engenho de palavras que proporciona novos contornos no psiquismo.
O escrito tem ânimo, uma procura incansável pela palavra que pudesse dar conta da profundeza do ser. Em busca da transformação do paralisante em motriz de um novo destino.
Celso foge dos extremos, e nessa fuga leva o leitor junto com ele, gerando e germinando no entre, uma incrível capacidade de se colocar ao lado. Ao lado, sem ser permissivo e abandonante; ao lado, sem ser ditador e invasivo. Ao lado, ele entrega ao outro o papel e a possibilidade de uma imensidão para produzir a si. Empresta a sua confiança no outro, o respeito à dor, mas sobretudo a busca de um novo caminho, uma nova página. A certeza de que cada um pode se reescrever, se recontar, se recriar e ser sua própria arte.
Para o autor, o psicanalista é um ajudante da narrativa. Questiona se estamos imbuídos de interpretar, imbuídos de curar, oferecendo mais uma vez outra saída. Propõe estarmos imbuídos de contar, para que no conto, no que te conto e então me conto, o analisando se aproprie e se modifique, todas as vezes que forem necessárias, de modo que o livro de cada um seja sempre mais amplo. Propõe sermos um mediador da ardência do viver, acredita no "desolhar" para encontrar o "reolhar". Um auxiliar no processo eterno e paradoxal de aprender a ser, aprender a narrar-se; um auxiliar na busca de encontros possíveis entre o amar e o despedir-se.
Nesses recursos que unem o sentir, a experiência, o ao lado e o novo enredo, a "cura" acaba por ser um processo realizado no entre, o que possibilita ao paciente tornar-se seu próprio letrista. Desta maneira, entende que o psicanalista está ali, com as palavras-recursos que possui e unido às palavras do paciente - elas juntas se multiplicam e novas surgem. O encontro produz afeto, transferência e novo discurso.
Sustentado pelo respeito ao outro, observador da frágil condição humana, embasado na teoria psicanalítica, recorrendo a diversos autores, Celso consegue traduzir a metapsicologia da maneira que a sentimos no cotidiano. Firme, mas manejando-os com delicadeza, afaga as palavras e os sentidos. Sim, é uma experiência lúdica, criativa, produtiva e transformadora. Um enigma individual e único se constrói em cada ensaio. Celso esta ali, inteiro, entregue a essa experiência com o outro todas as vezes. Ensinamos que, nas relações humanas (na cena analítica ou não), a entrega emocional e as palavras são a grande dupla da vida. É a literatura individual unida com a psicanálise, e enfim juntas, assim como a dupla no setting, se multiplicam e "curam".
Certeiro de que a vida é generosa, mesmo com tantos desencontros, ele propõe que o nascer, a literatura e a psicanálise são três grandes chances transformadoras, principalmente quando unidas. Juntas, se complexizam e novos renascimentos acontecem. A literatura, a psicanálise e o autor possuem o mesmo objetivo, lutam contra a morte, lutam para gerar vida em cada pequena morte do ser - e o melhor: conseguem.
As histórias e as transformações existentes nelas possuem uma delicadeza comovente, o que me faz preferir não abordá-las nem descrevê-las aqui. Seria uma invasão à poesia do cuidado. Parafraseá-las seria tirar a arte que todos - sim, todos - deveriam se permitir viver ao ler. Contar por mim seria um final direcionado, seria a morte vencer, a morte da multiplicidade que acontece na leitura de cada um, seria o oposto do mais belo que eu pude encontrar no livro.
Celso dá a mão ao narraDOR e conduz para o narrAR, exatamente como em um nascer: após a DOR do parto, o AR invade o pulmão e se inicia um novo ciclo imerso na amplitude da existência. O paradoxo e a ambivalência necessários aparecem também no meu texto, pois tem algo que digo e nada conto. Esse vivenciar foi a minha experiência, e esse livro possibilitará uma vivência individual, única e sublime a cada colega que tocá-lo e que mergulhar nas suas páginas. As palavras que eu não tive, certamente vocês hão de encontrar. Porque o que o autor teoriza, mostra e vive nos ensaios que apresenta se reproduz na leitura e posteriormente na prática clínica. O livro é um além. Além de livro, além de literatura, além de psicanálise, além de teoria, é uma vivência emocional ampliadora. Um Além MAR. AMAR
Correspondência:
Thaís Feistauer Starling
Rua Mostardeiro, 5/704
90430-001 Porto Alegre, RS
starling.thais@gmail.com