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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.53 no.4 São Paulo oct./dez. 2019
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Um suicídio enlaçado pelo esquecimento1
A suicide ensnared by oblivion
Un suicidio atrapado por el olvido
Un suicide pris au piège par l'oubli
Fernanda Cristina Marquetti
Professora associada (aposentada) da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)
RESUMO
Neste artigo, abordamos como o evento do suicídio foi imerso no discurso médico na sociedade contemporânea. Discutimos como algumas técnicas, protocolos e instrumentos não permitem que outras formas de compreensão do evento possam emergir. Nosso objetivo foi analisar de que maneira esse discurso hegemônico isolou o suicídio e o pôs num estado de confinamento através de categorias médicas. Também, consideramos como as narrativas dos sujeitos envolvidos se tornam subordinadas às concepções do discurso médico. Salientamos a falta de escuta aos sujeitos envolvidos nos eventos suicidas, sejam eles familiares ou os próprios indivíduos que tentaram o suicídio. Discutimos um caso emblemático, inserido numa demanda geral sobre esse tema. Apontamos algumas possibilidades de escuta do sujeito com tentativa de suicídio mesmo quando a narrativa se mostra desconexa ou obstruída. Nessa etapa nos inspiramos nos referenciais da teoria psicanalítica.
Palavras-chave: suicídio, tentativa de suicídio, memória
ABSTRACT
In this article we discuss how the suicide event was immersed in the medical discourse in contemporary society. We discuss how some techniques, protocols and instruments do not allow other forms of understanding of the event to emerge. Our goal was to analyze how this hegemonic discourse isolated suicide and placed it in a state of confinement across medical categories. We also discuss how the narratives of the subjects involved become subordinate to the conceptions of medical discourse. We emphasize the lack of listening to subjects involved in suicidal events, whether family members, or the subjects themselves who attempted suicide. And, we discuss an emblematic case, but inserted in a general demand on this subject. We point out some possibilities of listening to the subject attempting suicide even when the narrative is disconnected or obstructed. At this stage we are inspired by the references of psychoanalytic theory.
Keywords: suicide, suicide attempted, memory
RESUMEN
En este artículo discutimos cómo el evento del suicidio se sumergió en el discurso médico en la sociedad contemporánea. Discutimos cómo algunas técnicas, protocolos e instrumentos no permiten que surjan otras formas de comprensión del evento. Nuestro objetivo fue analizar cómo este discurso hegemónico aisló el suicidio y lo colocó en un estado de confinamiento a través de categorías médicas. También discutimos cómo las narraciones de los sujetos involucrados se subordinan a las concepciones del discurso médico. Hacemos hincapié en la falta de escucha de los sujetos involucrados en eventos suicidas, ya sean miembros de la familia o los propios sujetos que intentaron suicidarse. Y, discutimos un caso emblemático, pero insertado en una demanda general sobre este tema. Señalamos algunas posibilidades de escuchar al sujeto que intenta suicidarse incluso cuando la narración está desconectada u obstruida. En esta etapa nos inspiramos en las referencias de la teoría psicoanalítica.
Palabras clave: suicidio, intento de suicidio, memoria
RÉSUMÉ
Dans cet article, nous débâtons comment l'événement suicidaire a été plongé dans le discours médical dans la société contemporaine. Nous discutons de la manière dont certaines techniques, protocoles et instruments ne permettent pas qu'autres formes de compréhension de l'événement puissent émerger. Notre objectif est d'analyser comment ce discours hégémonique a isolé le suicide et l'a placé dans un état de confinement par l'intermédiaire de catégories médicales. Nous débâtons également comment les récits des sujets impliqués deviennent subordonnés aux conceptions du discours médical. Nous mettons en relief le manque d'écoute des sujets impliqués dans des événements suicidaires, soit les membres de la famille, soit les sujets ayant tenté de se suicider. Et nous analysons un cas emblématique mais inséré dans une demande générale concernant ce sujet. Nous présentons certaines possibilités d'écoute du sujet qui a tenté de se suicider, même lorsque le récit est déconnecté ou obstrué. Dans cette étape, nous nous inspirons des référentiels de la théorie psychanalytique.
Mots-clés: suicide, tentative de suicide, mémoire
Introdução
Nas pesquisas sobre suicídio, temos o referencial epidemiológico presente de maneira significativa, sendo essa contribuição fundamental para o conhecimento desse evento (Botega, 2014). Comparativamente, porém, temos uma menor quantidade de pesquisas com abordagens qualitativas. Nestas, as interpretações com referencial teórico psiquiátrico predominam e, acrescentamos, as formas de abordagem que se apoiam em referenciais psicossociais estão pouco presentes nessa discussão. Ou seja, temos um discurso quase hegemônico sobre o suicídio. Nessa temática, outro ponto relevante se refere à precária escuta oferecida aos sujeitos que tentam suicídio e aos seus familiares, seja por profissionais da saúde, seja por pesquisadores do tema. A princípio, tal afirmação pode parecer incoerente. Entretanto, ao longo de anos de atividade nessa área, a postura de recusa de profissionais da saúde e pesquisadores de ouvir as histórias desses sujeitos e os seus enlaces entre vida e suicídio me intrigou. Por mais que esses sujeitos e as suas famílias narrassem as suas biografias e as conexões com o evento suicida, tais informações permaneciam, geralmente, desperdiçadas.
Assim, neste artigo vamos delinear alguns pontos críticos do discurso hegemônico sobre o suicídio - apenas para marcar nossa posição para além desse campo disciplinar - e depois apontar outras formas de compreender tal evento, com base na concepção de que a vida e o suicídio estão imersos no mundo, interagindo simbolicamente de maneira contínua.
Nos dados produzidos sobre o suicídio consumado, temos como um dos recursos metodológicos nas pesquisas as autópsias psicológicas - entrevistas com familiares ou histórico de prontuários do sujeito. Observamos que ambos revelam o mesmo viés conceitual citado antes e, com isso, correlacionam suicídio a transtorno mental (Ernst et al., 2004). Esse processo de diagnóstico a posteriori nos eventos de suicídio consumado nos parece bastante complexo, ou melhor, permeado de subjetividade. De um lado, encontramos um familiar (às vezes, nem tão próximo do sujeito) perplexo diante da morte de um parente que se suicidou, repleto de dúvidas sobre os motivos do ato e elaborando um luto difícil. Do outro, encontramos um profissional (uma autoridade na área da saúde) com um discurso elaborado e autorizado pela ciência, com um checklist dos possíveis sintomas psiquiátricos nos casos de suicídio e indagando ao familiar se o indivíduo que se suicidou se encaixa em uma das descrições.
Esse processo diagnóstico nos parece, no mínimo, um jogo de forças desproporcional. Diante da angústia da morte por suicídio de um familiar, geralmente inexplicável e dolorosa, torna-se passo contíguo concordar com a autoridade e dizer sim aos itens do checklist. Isso porque esse diagnóstico a posteriori oferece explicação para um evento que costuma permanecer à deriva.
Cabe mencionar que, nesse diagnóstico póstumo, a subjetividade do outro (no caso, do sujeito que se suicidou) é determinada por duas pessoas alheias (entrevistador e familiar). O próprio sujeito está ausente nessa controvérsia sobre a sua subjetividade e as possíveis implicações desta na sua morte. Esse é um dos principais dilemas dos pesquisadores na temática do suicídio consumado, ou seja, o sujeito alvo do debate sempre estará ausente, o que conduz a uma limitação muito clara, porém esquecida: "A significação primeira do ato suicida, elaborada pelo próprio indivíduo, é impossível de ser alcançada, e os entrevistados nos oferecem sempre uma leitura de segunda mão" (Marquetti, 2012, p. 13).
Por outra via, nas pesquisas com tentativas de suicídio e na abordagem desses sujeitos por profissionais de saúde, sempre existe a possibilidade do contato direto com os sujeitos que sobreviveram, mas outro viés pode comprometer a compreensão do evento. Em geral, após a tentativa de suicídio, esses sujeitos buscam ou são conduzidos a equipamentos de saúde (Bertolote, 2012). A busca por tais equipamentos decorre do modo como o suicídio é concebido na sociedade contemporânea: um evento de ordem médica. Assim, raramente temos informação de eventos que envolvem suicídio sendo abordados e concebidos por outras formas de conhecimento. Nesses equipamentos de saúde (hospitais, prontos-socorros, centros de atenção psicossocial etc.), os eventos de suicídio são ordenados e concebidos pelo referencial médico-psiquiátrico. Como sabemos, na organização da medicina, e consequentemente desses serviços de saúde, a tentativa de suicídio, na maioria das vezes, é direcionada para a psiquiatria (após o atendimento clínico), pois na sua divisão de especificidades e poder o suicídio coube à psiquiatria (Foucault, 1978; Silveira, 2019).
Concomitantemente, na perspectiva teórico-conceitual da psiquiatria as tentativas de suicídio estão sempre relacionadas a algum transtorno mental (Ministério da Saúde, Organização Pan-Americana da Saúde & Universidade de Campinas, 2006). Por conseguinte, as tentativas de suicídio permanecem catalogadas nesse escopo. Ou seja, os sujeitos com eventos suicidas na sua vida, inevitavelmente, são diagnosticados com um transtorno mental. Raramente, ou nunca, um indivíduo com tentativa de suicídio escapa a um diagnóstico psiquiátrico quando se defronta com esse aparato. Portanto, criou-se um círculo vicioso. Se no quadro conceitual psiquiátrico o suicídio é um sintoma de transtorno mental e nas instituições de saúde as pesquisas são realizadas com referencial médico, a tentativa de suicídio será sempre relacionada a algum transtorno mental. Na sociedade contemporânea, o discurso psiquiátrico submergiu todas as outras formas de compreender o sofrimento humano e, por sua vez, o suicídio.
Entretanto, em pesquisas sobre suicídios e tentativas de suicídio em que os dados são coletados em lugares exteriores à ordem médica (etnografias nas ruas, em locais de trabalho, em centros de cultura etc.), por profissionais com outra leitura do fenômeno, encontramos dados diferentes (Heloani, 2011; Netto, 2011). Na nossa opinião, tal fato se dá porque não necessariamente os eventos suicidas estão correlacionados ao transtorno mental, e sim aos sofrimentos da vida, como trabalho, relações amorosas, relações de gênero, velhice, abandono, imposições sociais, conflitos sobre sexualidade e não pertencimento a grupos sociais. Citamos:
Uma leitura puramente psiquiátrica do suicídio acaba mantendo vistas grossas a outros fatores psicossociais provavelmente mais fundantes; condiciona atuações tecnocráticas diante de uma situação que o cuidado exige além disso, e esquiva-se do desconfortável debate ético e ontológico sobre a deliberação da própria morte. Isso não significa dizer que os métodos diagnósticos e as respectivas terapias farmacológicas que orientam não produzam alguma coisa. O que nos importa é saber o que é que produzem, a que custo, e em qual tipo de discurso sobre o suicídio estão assentados. As ações de contenção e remissão do sintoma no comportamento suicida produzem resultados práticos que apaziguam a angústia técnica e familiar e geram, no entanto, um afastamento do fenômeno do suicídio e do sujeito que o produz. (Leite, 2015, p. 12)
Como uma das consequências desse aparato técnico e institucional, as histórias dos sujeitos e as suas memórias permanecem preteridas, pois a busca pelo sintoma predomina nessas instituições.
Até este ponto, discutimos como o suicídio e as tentativas de suicídio, com as suas memórias permeadas de subjetividade, são descuidados nas instituições de saúde e pesquisa. Isso porque, na relação entre o sujeito e os técnicos, ancorada no respectivo aparato conceitual, geralmente essas memórias servem apenas de subsídio para buscar no sujeito sintomas de um ckecklist.
O esquecimento é filho da memória
Na apresentação desta história da tentativa de suicídio, pretendemos destacar como a escuta da história do sujeito, em vez da submissão desta a um checklist, pode gerar outras formas de concepção do evento suicida. Como houve uma intensa marca de esquecimentos, esvanecimentos e lembranças embaralhadas nessa narrativa, seguiremos as nuances entre memória e esquecimento, determinantes nessa situação. Propomos buscar nesse emaranhado de encadeamentos e rupturas mnêmicas as possíveis significações do evento suicida.
Na Antiguidade clássica, a memória podia ser considerada tanto um grande bem quanto o maior dos tormentos. Mnemósine, a memória, é uma deusa primordial. Ela está articulada ao nascimento do mundo e, da sua união com Zeus, nasceram as nove musas que regem as artes e disciplinas fundamentais para a humanidade - entre elas, a história. Sem memória não há história, e assim não poderíamos construir um percurso entre passado e presente.
A imortalidade, na Antiguidade clássica, significava ter o nome preservado na memória das gerações, e nada era mais temível que o esquecimento. Até mesmo a morte não era tão temida quanto o esquecimento.
Para os gregos, não havia paraíso nem inferno. Todos os seres após a morte desciam ao Hades, onde se tornavam sombras e lá ficavam pela eternidade. Ao entrar no Hades, as almas deveriam beber das águas da fonte da deusa do esquecimento, Lete, para esquecerem tudo o que viveram e não sofrerem. A única forma de permanecer vivo era pela memória dos que ficavam na terra - só assim escapariam ao destino comum do esquecimento (Grimal, 2000).
No equilíbrio entre essas duas divindades, Lete e Mnemósine, temos um equilíbrio na vida. Tudo lembrar ou tudo esquecer são polos dolorosos, e o ser humano necessita de um termo mediano para continuar a viver. Nessa perspectiva, os gregos compreendiam a memória absoluta como privilégio apenas dos deuses, pois lembrar tudo seria insuportável aos humanos. Por outro lado, o esquecimento absoluto traria aflição e desespero, porque seria como viver no mundo das sombras, dos mortos.
Buscando um ponto de convergência, os gregos moldaram a palavra Aleteia, a verdade, formada pelo prefixo de negação a e por Lete, o esquecimento. A verdade é muito mais do que algo a ser lembrado - é aquilo que não se deve esquecer jamais. Por isso, ela deve escapar do relaxamento psíquico do esquecimento e se impor como tensão, lembrança (Grimal, 2000).
Weinrich (2001) faz algumas reflexões sobre a memória. O autor lembra que estabelecer uma constelação de lugares é uma forma de ordenar a memória e fugir do esquecimento. Na paisagem da memória, tudo o que deve ser lembrado tem um lugar determinado; o que não tem lugar é esquecido.
Neste ponto, indagamos se a ausência de lugar daquilo que é esquecido não seria na verdade outro lugar, o lugar do inconsciente (Freud, 1915/1976b). Nessa perspectiva, há um lugar delimitado para o esquecido. Ele foi capturado pelo inconsciente e tornou-se inacessível ao sujeito. Contudo, mantém-se indestrutível e permanece agindo como força motriz, embora ausente na paisagem. Um esquecimento pode representar muito mais que uma lembrança, e uma ausência pode ter mais vigor que uma presença. É impossível discutir a memória e as suas sinuosidades sem retomar alguns preceitos da teoria freudiana, mesmo sabendo que não podemos aqui enraizar um conceito nodal para a psicanálise como o esquecimento. As reflexões deste artigo têm o contorno dos seus próprios limites, ou seja, não propomos uma análise de caso pautada na clínica psicanalítica, apenas indicamos alguns ensinamentos da psicanálise para amparar nossas considerações sobre um evento suicida que submergiu no esquecimento.
A teoria freudiana assevera a importância do esquecimento, retirando-o do lugar cunhado por teorias diversas, em que o esquecimento é tratado como falha ou como banal incapacidade da memória, ou seja, sem significação. Nessa dúvida que a psicanálise lança sobre teorias tradicionais acerca da memória, ela nos recorda da importância de um método ao esquecer ou lembrar os acontecimentos gravados no psiquismo. "Surpreendo-me ao esquecer alguma coisa importante, e fico mesmo mais surpreso talvez ao lembrar alguma coisa aparentemente indiferente" (Freud, 1899/1976c, p. 333).
Nessa afirmação, vemos como a sutileza das lembranças banais e o esquecimento de fatos essenciais contêm enigmas e, assim, nos remetem ao evento que vamos apresentar adiante. Os aparentes incidentes que a memória apresentou nesse caso, na verdade, estavam a serviço da manutenção de um admirável esquecimento; num meandro de lembranças, um vácuo de memória se perpetuou. Entretanto, essa ausência esteve presente todo o tempo, inclusive na medida em que esse esquecimento foi a força motriz do discurso. Ou seja, falava-se indiretamente daquilo que não era possível lembrar.
Todos os elementos essenciais estão preservados; mesmo coisas que parecem completamente esquecidas estão presentes, de alguma maneira, em algum lugar, e simplesmente foram enterradas e tornadas inacessíveis ao indivíduo. Na verdade, como sabemos, é possível duvidar de que alguma estrutura psíquica possa realmente ser vítima da destruição total. (Freud, 1937/1976a, p. 294)
A presença constante de uma lembrança, mesmo que submersa, parece agir como fonte inesgotável de angústia e assim conduzir o narrar da história. Para obnubilar essa ausência de lembrança, a vida precisa ser recontada e, assim, a história é narrada num mosaico de lembranças, incongruências e inconsistências, todas mescladas com outros desaparecimentos e ausências. Freud, ao abordar a questão dos embaraços na recuperação de lembranças recalcadas no processo de análise, afirma que, mesmo sem a lembrança desperta da consciência, "os sujeitos estão sofrendo de suas próprias reminiscências" (1937/1976a, p. 304).
O jogo entre lembranças e esquecimentos é a própria memória. A psicanálise ensina que o esquecimento nos apoia no intolerável do conteúdo de uma lembrança.
Pode-se asseverar muito geralmente que a facilidade com que dada impressão é despertada na memória depende não só da constituição psíquica do indivíduo, da força da impressão desta quando estava fresca, do interesse que se lhe atribui no momento em que é despertada, da constituição psíquica no momento presente das conexões em cujo interior a impressão se estabeleceu etc. - não só de coisas como essas, mas também da atitude favorável ou desfavorável de um fator psíquico particular que se recusa a produzir qualquer coisa que possa libertar desprazer, ou que possa subsequentemente levar à liberação de desprazer. A função da memória, que consideramos como um arquivo aberto a qualquer um que seja curioso, é desse modo sujeita a restrição por uma tendência da vontade, exatamente como qualquer parte de nossa atividade dirigida para o mundo externo. (Freud, 1898/1976d, p. 324)
Também sabemos que há uma opulência de possibilidades nas diferentes formas de esquecer. Além do mais, essa configuração do esquecimento traz a marca do sujeito que esquece. Parece-nos que há um método no esquecimento.
Um suicídio submerso na memória
No conjunto desta história, observamos aquilo que nos pareceu uma violência: outros proferiam pela entrevistada os acontecimentos de sua vida (filha, profissionais de saúde, pesquisadores etc.); a sua própria narrativa permaneceu descuidada e sem escuta. Ou seja, muitos discursos se sobrepunham à sua história e, concomitantemente, o seu próprio discurso permanecia inaudível para todos à sua volta. Os engenhosos mecanismos de recusa do discurso do sujeito nas instituições de saúde, que abordamos antes, também se apresentaram nesse episódio. Dessa forma, abandonamos o que outros disseram sobre o evento e recompusemos a história da entrevistada com fatos, sentimentos, incidentes e, principalmente, com os seus esquecimentos.
Começamos esta biografia com uma perplexidade: como alguém pode esquecer a sua própria tentativa de suicídio?! Uma mulher que esqueceu a sua tentativa de suicídio e nada sabia dizer sobre isso norteou a busca por um sentido nesse evento. Assim, naturalmente, a procura de uma significação para tal história começou pelo próprio esquecimento. Esta é uma história de lacunas e ausências de uma mulher e traz o evento suicida encravado num contexto de sofrimento. Neste ensaio, o seu nome fictício será Lete, em homenagem à deusa do esquecimento. Vamos acompanhar os seus passos no seu rio de esquecimentos.
Lete tem pouco mais de 60 anos. Nasceu numa cidade pequena do interior de Minas Gerais e viveu em diferentes cidades, arrastada pelas vicissitudes da vida. Foi casada duas vezes e teve três filhos. Ela fez o seu relato através do fio do tempo da sua vida, mas este se revelou esgarçado e repleto de lacunas, ausências e supressões, isto é, os nexos no tecido da sua história apresentaram significativas rupturas. A vivacidade dessa história reside na forma como a memória, ou melhor, o esquecimento a ajudou a sobreviver à vida. Não queremos submergir essa riqueza textual na elaboração deste texto. Então, pedimos licença a Lete e ao leitor para tomar de empréstimo o seu estilo peculiar de contar a vida. Dessa forma, os eclipses de Lete no decorrer da vida serão o próprio eixo condutor da história, como um fio liso e contínuo, e as suas lembranças serão como um pequeno nó que se emaranhou no fio. Enfim, elegemos o esquecimento para falar das suas memórias.
Ela tem os olhos perdidos, o olhar um pouco vago, quase ensimesmado. Contraditoriamente, a sua voz é firme, com entonações de tristeza, mas forte. Ela fala de maneira pausada, parece lembrar cuidadosamente enquanto fala. A alusão que podemos fazer é que Lete traça o percurso dos acontecimentos revivendo-os. Ela fala pouco. Frases curtas e contundentes. Não se alonga em discursos e conjecturas sobre a vida. Na pequena sala da sua casa estão presentes apenas Lete e uma das suas filhas. Esta parece ansiosa e com expectativa em relação ao desenrolar da entrevista. Lete está tranquila, quase indiferente - numa postura alheia, quase distraída.
Ah, eu não, não tentei suicídio, não! Hoje já passou tudo, graças a Deus. ... Não lembro de nada desse acontecido. Ah, eu não, não tentei suicídio, não! Ah, eu não, não tentei, não! Não me lembro de nada em relação ao acontecido. As pessoas próximas afirmam que eu fiz coisas que não consigo lembrar. Tenho poucas lembranças. Eu não lembro de muita coisa. Apagou da minha memória.
A lembrança da tentativa de suicídio foi apagada, e nenhum rastro dela permaneceu na memória de Lete. Pareceu-nos um esvaziamento completo, sem indecisão ou dúvida, ou seja, ela apenas se ausentou por definitivo daquele momento da vida, talvez intolerável. A palavra do outro que afirma que ela tentou suicídio não a remove da sua convicção, mas ela não contesta o outro. Como numa viela estreita onde duas pessoas caminham quase coladas, a sua ausência de lembrança marcha firme ao lado da recordação do outro sobre a sua tentativa de suicídio. Esse episódio da sua história nos lembrou das almas ao entrarem no Hades, bebendo da fonte de Lete e esquecendo a vida passada e seus sofrimentos. Essa mulher parece ter mergulhado nessa fonte em vida, e mesmo a contestação incisiva do outro, na tentativa de trazer à tona as suas lembranças, não tem efeito algum. Aparentemente, porém, ela não está no mundo dos mortos.
A filha presente na entrevista contesta Lete vorazmente, como se a sua verdade dos fatos precisasse ser exposta. Mas a postura de Lete, ancorada no esquecimento, é tão inatingível que a filha se exaspera e reivindica a verdade às custas de testemunhas. Nesse momento, a memória, que armou um ardil entre as duas, precisa de um juiz.
Cara de pau! Duas pessoas podem confirmar que ela tentou suicídio. Ela tomou diversos remédios e ficou dopada sobre a mesa da cozinha. Você tomou Sustrate do pai. Você tomou Cimetidina. Você tomou todos os remédios que tinha em casa! Você tomou aspirina. ... É, então, mas você tentou e eu tenho testemunha!
Mas as testemunhas não são contestadas. Lete se mantém no seu vácuo de memória, sem entrar em confronto com as lembranças alheias. Nessa estratégia incontrolável de apagamento de memória, ela logrou sucesso; artifícios das lembranças resvalaram no seu sólido esquecimento, mas ela permaneceu determinada na sua trilha de esquecimento. "Eu não lembro, não lembro! Eu não posso falar porque eu não lembro! Quando lembro coisas tristes do meu passado, tem alguma coisa que não faz lembrar, pois já passou".
A sua percepção aguçada na frase "alguma coisa que faz não lembrar" é inestimável, porque Lete traduz com a sua existência as teorias freudianas sobre memória e inconsciente (Freud, 1915/1976b). Mesmo Freud (1899/1976c) se surpreendia ao esquecer algo importante; ela, ao contrário, toma com naturalidade o seu engenhoso método de esquecimento. A estratégia dos seus esquecimentos cria uma configuração que a protege, pois ela remove um fato cardeal da sua vida e depois, a partir dos restos mnêmicos, constrói uma nova história.
Quando outras lembranças poderiam trilhar um caminho no cotidiano da vida e alcançar o fato esquecido, através dos lugares pisados no dia a dia, pelos hábitos incrustados ou pelos sons e cheiros diários, outro enredo da vida se apresenta na sua história - um enredo novamente marcado pelo esquecimento, mas dessa vez mais radical, pois não apenas retira uma lembrança, mas ausenta o próprio sujeito da vida. Na impossibilidade de conviver com lembranças coletivas, ela desaparece. Esse processo de apagamento total, de ausência absoluta, aconteceu duas vezes na sua vida.
Eu passei por morta por anos! Depois que fugi de casa, os conhecidos acharam que eu estava morta, que tinha sido assassinada pelo meu marido. Quando meus conterrâneos me viram, muitos anos depois, levaram um susto. Eu passei por morta por anos! ... Depois de tudo isso, muito depois, 40 anos, eu procurei minha família adotiva na outra cidade. Eles também achavam que eu estava morta. Minha irmã adotiva chorava sobre minha foto e acendia velas. Chegou a pedir missa em meu nome.
A necessidade imperativa de não lembrar também se associou à premência em ser esquecida. Esse processo extraiu Lete da sua própria vida. Por duas vezes, abandonou tudo que pudesse fazer um laço com o seu sofrimento no emaranhado da memória - mesmo que o preço para tal efeito fosse a sua morte. A força desse desejo de esquecimento superou a vida. Por duas vezes,
ao longo do seu caminho, de forma imaginária, ela construiu a sua morte, como se a vida fosse um conto em que ela pudesse brincar, caçoar e produzir fatos fantasmáticos. Por duas vezes, vemos a sua história imitar o romance O falecido Mattia Pascal (1904/2003), de Pirandello, pois Lete se tornou uma sombra, ficou sem lugar no mundo a que pertencia antes, e assim se livrou de uma memória insuportável.
Na Antiguidade, afirmava-se que o esquecimento em vida era pior que a morte, mas para Lete parece que não aconteceu assim. Ela preferiu as sombras, o sítio da morte na memória dos outros, que um lugar em vida com as lembranças angustiantes que o passado poderia evocar. Freud (1898/1976d) assevera que o psiquismo se recusa a produzir qualquer coisa que possa libertar desprazer. Dessa forma, na escolha entre lembrar-se dos fatos penosos do passado ou tornar-se morta em vida, Lete ficou com a segunda opção e caiu no esquecimento.
Ao mesmo tempo, ela dribla o sofrimento quando inventa outra vida para si, em outro lugar. Novas pessoas, novos lugares, uma nova história. Certa vez, num processo analítico, me disseram uma frase marcante de uma pessoa: "É preciso construir um novo passado para ser feliz".
Entretanto, essa capacidade de se recriar se esgotou em determinado momento. Foi quando ela buscou a morte de forma literal para se retirar das suas lembranças. A morte em vida, ou melhor, viver como morta aos olhos daqueles que participaram da sua história já não bastava para suportar o sofrimento. Esse recurso, usado antes para burlar os acontecimentos e embaçar as lembranças, foi suplantado pela tentativa de suicídio, desencadeada pela morte do segundo marido.
Ele morreu faz 13 anos. ... Na época eu me acabei por completo. Eu tinha nele tudo! Minha fortaleza, meu irmão, meu pai, meu amigo, meu marido, meu homem. Três meses após a morte dele e dois dias após o Natal, minha sogra me expulsou com as crianças de casa.
Cabe ressaltar que ela lembra com nitidez os fatos do entorno da sua tentativa de suicídio, mas retirou por completo da sua história o episódio em si, mesmo às custas de significativas rupturas no seu fio condutor do tempo. Criou-se um vácuo, um lugar oco. Como mencionado, acreditamos que a configuração do processo de esquecimento traz a marca do sujeito que esquece. Parece-nos que Lete, com o seu método de esquecimento, constrói uma estratégia singular, que se repete, e esta traja o signo da morte. Para consolidar os seus esquecimentos e eclipses da vida, ela se aproveita da morte. Nas duas primeiras vezes, brinca com a morte. Quase como um gracejo, conta que todos se enganaram e a tomaram por morta quando se retirou da vida que vivia. Supressão imaginária, mas com o signo da morte. Na última vez, na tentativa de suicídio, busca a morte de forma concreta, nada imaginária. Cair no esquecimento quase se viabilizou pela morte real.
Sabemos que, para a teoria psicanalítica, o suicídio envolve complexas categorias conceituais, e não almejamos esgotar a análise dessa situação apenas com estas considerações sobre o esquecimento. Da mesma maneira, não queremos traçar uma linearidade de causa e efeito com os elementos que se mostraram enfaticamente: esquecimento e busca da morte. No entanto, acreditamos que, na tentativa de suicídio de Lete e nas construções imaginárias da sua morte, se constituiu um emaranhado simbólico entre esquecimento e morte. Com esses fragmentos da sua história, podemos observar como ela traça um percurso, que envolve um modo de sobrevivência, repetidas vezes. Ou seja, diante de um sofrimento insustentável, ela lança mão das artimanhas da memória para buscar conforto em esquecimentos e eclipses, sempre atravessados pelo tema da morte. Mas, quando esses expedientes são insuficientes, ela busca a morte de forma literal. Em síntese, as suas saídas de cena acontecem quando na sua vida algo de teor intolerável escapa à representação psíquica (Brunhari, 2017).
Contudo, outras barganhas da memória aconteceram quando os fatos demandavam alguma solução. Como se a memória bruta fosse impossível, as suas lembranças modelaram - quase lapidaram - os fatos. Aqui o tempo é subvertido pela memória e, num jogo de datas e momentos, a vida se torna mais amena. Mas nem sempre o esquecimento e as suas astúcias vencem a memória. Esta retorna implacável num lapso no tempo.
O casamento foi péssimo. Ele era um boêmio. Eu apanhava muito, mas revidava as agressões. Ele ganhava bem, mas não ajudava nada em casa. Gastava tudo com ele. Eu tinha que manter o lar. Uma vez, eu peguei ele com outra mulher no meu próprio quintal. ... Depois de seis meses de casamento, eu não aguentei e saí de casa, levando meu filho de 2 anos e meio.
Ela apenas teve relações sexuais com o marido após o casamento:
Não falei nada para ninguém. Fui abusada [sexualmente] quando era moça.
... Não quero falar. É muito sofrido. Quando eu vejo alguém falar isso, nossa senhora, me dói a alma! Na época, não falei para ninguém. Ah, a gente por ser mulher é muito mais fraca do que o homem, né? Até na palavra.
Nesse episódio da sua vida é como se o fato caísse num meio-fio do esquecimento, pois, ao mesmo tempo que ela se lembra do abuso sexual, prefere não falar nada sobre ele. Logo, na lembrança dos outros, o fato não existiu, até aquele momento. Além disso, a questão da paternidade do seu filho permanece à deriva no narrar da sua história. Ela não diz ter dúvidas de que o seu ex-marido é o pai do seu filho, mas a narrativa da história conduz o ouvinte a outra conclusão.
Outras vezes, memória e pensamentos se articulam num pequeno jogo de indecisões e abrem espaço para a desconfiança. Lete duvida das espertezas da memória e das suas explicações. Agora a lembrança se apresenta como incerteza, equívoco, imprecisão. Assim, na sua história, os esquecimentos são mais vigorosos, e as lembranças estão sob suspeita.
Minha mãe, depois que me abandonou, teve outro filho e acabou por criar os dois filhos homens que teve. Ela ficou com eles. ... Eu fui a única abandonada. Minha mãe era filha de índios, e os índios só dão valor para o filho homem, né? Às mulheres não dão muito valor. Não sei se acredito nisso. Acho que eu achei isso. Talvez seja uma desculpa. Para mim, é uma desculpa que eu arrumei.
Nesse ponto, vemos como o jogo entre memória e esquecimento tem o poder de transmutar qualquer fato. Diante da lembrança dolorosa e angustiante, ela prefere duvidar da sua própria memória. O fato de ser mulher ter sido um determinante no seu abandono foi pesado demais para se enraizar de forma indubitável nas suas lembranças.
Mediante esses fragmentos de lembranças e esquecimentos observados no caso de Lete, notamos que a memória como registro psíquico da vida de um sujeito pode conter inúmeros formatos, contradições e lacunas, pois é por meio dessas vicissitudes da memória que sobrevivemos à realidade. Maria Rita Kehl diz que "a memória obedece às leis do imaginário" e que através dela podemos tecer o fio da vida na trama do tempo e dar uma impressão de continuidade naquilo que vivemos nos imprecisos instantes de uma vida. Mesmo com imensas lacunas, apagamentos e desaparecimentos, Lete construiu a sua trama no tempo. Ela utilizou todos os artifícios disponíveis no seu psiquismo para registrar, de maneira inexorável, a sua vida, mesmo que a sua história estivesse em desacordo com a de todos os outros. A memória nos garante a vida porque é ela "que confere uma permanência imaginária a esta forma negativa do tempo que é o passado" (Kehl, 2015, p. 127).
Portanto, entre as peripécias de lembranças e esquecimentos, Lete nos legou uma sabedoria final incontestável e simples. Concisamente, ela parece sintetizar a sua estratégia de sobrevivência na vida: "Tem coisa que machuca demais. Então é melhor ficar calada, mesmo".
As lembranças perdidas no fio do esquecimento
Apresentamos agora algumas lembranças esparsas de Lete, às vezes desconexas, mas que demonstram o contexto em que os esquecimentos foram gestados. Embora nos pareça que o esquecimento seja o fator essencial para revelar a sua biografia, essas lembranças podem oferecer alguma compreensão da sua trilha de vida.
Eu e meu irmão mais novo fomos abandonados pela nossa mãe quando éramos crianças. Minha avó deu comida para nós por um tempo, mas ela era mantida por uma associação e foi proibida de sustentar os netos. Fomos viver na rua, comendo o que estava no lixo, e voltávamos para a casa dela apenas para dormir. Viver na rua me deu resistência ao sofrimento. ... Você tem uma fortaleza que você não acredita. Antes eu não conseguia falar que comia comida do lixo e não conseguia comer determinadas coisas.
Depois eu fui trabalhar para famílias para poder comer. Eu tinha que lavar roupa com soda, e tenho estas marcas até hoje. A família mentia. Dizia que era eu que colocava a mão na soda de propósito. Trabalhei como babá, e uma vez caí da escada porque tinha que carregar uma criança maior e mais pesada que eu. Tinha que carregar baldes pesados para buscar água do poço. Trabalhei muito. Não tive infância. Ah, não, eu não tive fase de criança, não!
Quando eu tinha 7 anos, fui dada para adoção. Minha mãe adotiva era exigente e me fazia calar o choro. Eu apanhei tanto que nem me dava mais ao trabalho de chorar. Aquilo era trabalho escravo. ... Morei com essa família por 11 anos, e aí eles arranjaram um casamento para mim e eu fui embora. Me casei no dia que completei 18 anos.
Tive um outro casamento. Ele foi o homem da minha vida. Fomos morar juntos em outra cidade. Encontrei um companheiro, alguém que me dava valor, dividia as contas e os trabalhos do lar. Vivemos juntos por 30 anos e tivemos dois filhos. E perdi uma criança num aborto. Você não acredita o que as mulheres passam nessa situação. No hospital, diziam: "Você é a culpada. Se vira!". Fui muito humilhada.
Choro até hoje. Mas hoje tudo já passou!
Conclusões
Abordamos neste texto a prevalência de um discurso hegemônico sobre o suicídio. Tal discurso, sendo hegemônico, está impregnado em todos e, naturalmente, abarca técnicos de saúde, pesquisadores, familiares e a população em geral. Um círculo vicioso se consolida na medida em que esse discurso de poder se alinha com a produção da ciência e, assim, transforma uma única perspectiva sobre o evento suicida em verdade. No microcosmo da área da saúde, esse processo impede a escuta dos sujeitos que tentam o suicídio e dos seus familiares, e bloqueia a interpretação dos casos de suicídio consumado. O discurso médico parece ter embotado os sentidos dos profissionais da saúde e pesquisadores, pois observamos na literatura e na clínica um eterno soar das mesmas palavras sobre o tema do suicídio. E, na sociedade contemporânea, esse discurso ressoa continuamente, seja nas mídias, nas redes sociais, nas soluções adotadas por familiares diante do evento ou nos órgãos oficiais que produzem as políticas públicas de saúde. O suicídio foi capturado do mundo social, no qual sempre esteve presente, e depois encarcerado e isolado dentro das categorias científicas dos transtornos mentais. A esse evento não se permitem outras significações. Assim, alcançamos a absurda situação do inaudível. Os sujeitos que tentam o suicídio, ao falarem sobre a sua vida, os seus motivos e os seus sofrimentos, se deparam com um checklist. A história deles precisa se submeter aos itens desse instrumento.
Neste artigo, apostamos numa possibilidade de escuta, mesmo quando a memória parecia impedir esse processo. Sempre há uma possibilidade de se aproximar do outro e compreender a sua mirada sobre a vida. Existem muitas possibilidades de escuta do outro, muitos métodos, técnicas e procedimentos, mas é imprescindível o desejo de escuta. Ao longo dos anos, em experiências como profissional da saúde e pesquisadora desse tema, observei sujeitos envolvidos em eventos suicidas com intenso desejo de falar sobre as suas histórias e emoções. E também escutei de muitos entrevistados que eu era a primeira pessoa a conversar com eles sobre o assunto. Por outra via, paira nas instituições de saúde e de pesquisa, como uma regra a ser respeitada, a premissa de que esses sujeitos têm resistência a falar sobre o tema, ou que abordar o tema suicídio poderia levar a consequências graves para os sujeitos. Sempre testemunhei o contrário, ou seja, sujeitos dispostos a falar sobre a sua vida e, também, aliviados depois de uma entrevista. O discurso hegemônico sobre o tema é tão potente que delimitou em toda a sociedade uma verdade quase inquestionável sobre o suicídio e silenciou os próprios sujeitos. Permanece a interrogação de por que o suicídio foi silenciado na sociedade atual. Parece-nos que o desejo pela morte é algo a ser coibido. Mas este retornou de forma implacável ao seu lugar de origem, o mundo. Na sociedade contemporânea, os eventos suicidas se multiplicam e constroem espetáculos de uma força vertiginosa. Uma saída para esse dilema, que preocupa muitos agora, talvez seja seguir o caminho inverso: em vez de obstruir a passagem desse discurso por meio de códigos científicos, poderíamos escutar e olhar esses eventos.
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Correspondência:
Fernanda Cristina Marquetti
Alameda México, 20
07618-822 Mairiporã, SP
Tel.: 11 99613-5880
femarquetti@uol.com.br
Recebido em 11/11/2019
Aceito em 10/12/2019
1 Apoio institucional: Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências da Saúde, Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Agradecimento a R. A. Costa, pela coleta da entrevista. Pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa, conforme parecer 1.753.950.