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Revista Brasileira de Psicanálise
versão impressa ISSN 0486-641X
Rev. bras. psicanál vol.54 no.1 São Paulo jan./mar. 2020
DIÁLOGO
Psicanálise ontológica ou "O que você quer ser quando crescer?"1
Ontological psychoanalysis or "What do you want to be when you grow up?"
Psicoanálisis ontológico o "¿Qué quieres ser cuando crezcas?"
Psychanalyse ontologique ou « Que voulez-vous devenir quand vous serez grand ? »
Thomas H. OgdenI; Tradução Fernanda Sofio
IAnalista e supervisor do Instituto Psicanalítico do Norte da Califórnia
RESUMO
O autor discute as diferenças entre o que chama de psicanálise epistemológica - relacionada ao conhecimento e à compreensão, tendo como principais autores Freud e Klein - e o que chama de psicanálise ontológica - relacionada ao ser e ao tornar-se, tomando nesse caso como principais referências Winnicott e Bion. Argumenta que, com Winnicott, a psicanálise deixa de estar centrada no sentido simbólico do brincar, que passa a ser visto como experiência. Já com Bion a psicanálise deixa de estar centrada no sentido simbólico dos sonhos, e a experiência de sonhar passa a ser considerada em todas as suas formas. A ideia é que a psicanálise epistemológica envolve sobretudo a busca por compreender sentidos inconscientes. Por sua vez, o objetivo da psicanálise ontológica é permitir que o paciente descubra sentidos de maneira criativa e que, nesse processo, se torne mais plenamente vivo.
Palavras-chave: ontológico, epistemológico, compreensão, experiência, ser, devir
ABSTRACT
The author discusses the difference between what is called epistemological psychoanalysis-related to knowledge and understanding, having Freud and Klein as main authors - and ontological psychoanalysis, related to being and becoming, having Winnicott and Bion as main articulators in this case. The author says that, with Winnicott, psychoanalysis is not centered in symbolic meanings for playing and playing becomes an experience. According to Bion, psychoanalysis is not centered in symbolic meanings from dreams and the dreaming experience is then considered in all ways. The idea is that epistemological psychoanalysis mainly includes the search for understanding unconscious meanings. On the other hand, the objective of the ontological psychoanalysis is to allow the patient to find meanings in a creative way, and during this process it becomes completely active.
Keywords: ontological, epistemological, understanding, experience, being, become Psychanalyse ontologique ou « Que voulez-vous devenir quand vous serez grand ? »
RESUMEN
El autor analiza aborda las diferencias entre lo que denomina psicoanálisis epistemológico - relacionado con el conocimiento y la comprensión, teniendo como autores principales a Freud y Klein - y lo que denomina psicoanálisis ontoló-gico, relacionado al ser y a llegar a ser, tomando como articuladores principales en este caso a Winnicott y Bion. Argumenta que, con Winnicott, el psicoanálisis deja de centrarse en el sentido simbólico de jugar y jugar pasa a tomarse como experiencia. Por otro lado, con Bion, el psicoanálisis deja de centrarse en el sentido simbólico de los sueños y la experiencia de soñar pasa a ser considerada en todas sus formas. La idea es que el psicoanálisis epistemológico involucra, principalmente, la búsqueda de la comprensión de sentidos inconscientes. Por su parte, el objetivo del psicoanálisis ontológico es permitir que el paciente descubra sentidos de forma creativa, y que en este proceso se torne más plenamente vivo.
Palabras clave: ontológico, epistemológico, comprensión, experiencia, ser, devenir
RÉSUMÉ
L'auteur discute les différences entre ce qu'il appelle psychanalyse épistémologique - qui a un rapport avec les connaissances et la compréhension, dont les auteurs les plus importants sont Freud et Klein - et ce qu'il appelle psychanalyse ontologique, qui a un rapport avec l'être et le devenir, en prenant comme articulateurs principaux Winnicot et Bion. Il argumente que chez Winnicott la psychanalyse n'est plus centrée sur le sens symbolique de jouer, et le jouer est alors pris en tant qu'expérience. D'autre part, chez Bion la psychanalyse n'est plus centrée sur le sens symbolique des rêves et l'expérience de rêver est alors considérée dans tous ses aspects. L'idée, c'est que la psychanalyse épistémologique concerne surtout la poursuite de la compréhension des sens inconscients.
L'objectif de la psychanalyse ontologique est, à son tour, de permettre que le patient découvre les sens de façon créative, et que pendant ce processus devienne pleinement plus vivant.
Mots-clés : ontologique, épistémologique, compréhension, expérience, être, devenir
Um amigo estava em Londres, exercendo a função de psiquiatra do Exército dos Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial. Comparecia com frequência à Unidade de Adolescentes do Hospital Paddington Green para assistir ao turno de Winnicott. Segundo seu relato, Winnicott fazia a mesma pergunta a todos os adolescentes que atendia, dando grande importância à resposta de cada um: "O que você quer ser quando crescer?" (I. Carson, comunicação pessoal, 1983). A pergunta é talvez a mais importante que qualquer um de nós pode se fazer ao longo da vida, isto é, desde muito cedo até o momento antes de morrer. Quem gostaríamos de nos tornar? Que tipo de pessoa gostaríamos de ser? De que maneiras não somos quem somos? O que nos impede de sermos mais como a pessoa que gostaríamos de ser? O que poderiamos fazer para nos tornarmos mais como as pessoas que sentimos ter o potencial e a responsabilidade de ser? São essas as perguntas que trazem a maioria dos pacientes às terapias e às análises, embora raramente se deem conta disso, estando mais preocupados em encontrar algum alívio para seus sintomas. Às vezes, o objetivo do tratamento é conduzir o paciente de um estado em que não é capaz de formular essas perguntas para outro no qual seja capaz de fazê-lo.
Comecei este texto centrado na segunda metade do título. Passo agora à primeira parte: psicanálise ontológica, mas procurarei o tempo todo ter em mente a pergunta "O que você quer ser quando crescer?".
Psicanálise epistemológica e psicanálise ontológica
Nos últimos 70 anos, ainda que de maneira bastante discreta, uma mudança radical vem ocorrendo tanto na teoria quanto na prática psicanalíti-cas - mudança para a qual, até recentemente, eu não tinha um nome. Entendo que se trata de uma mudança de ênfase: antes, na psicanálise epistemológica (relacionada ao conhecimento e à compreensão); agora, na psicanálise ontológica (relacionada ao ser e ao tornar-se). Vejo Freud e Klein como os fundadores de uma forma de psicanálise cuja natureza é epistemológica, e Winnicott e Bion como os principais autores da psicanálise ontológica.2 Encontrar palavras para descrever essa transformação na psicanálise é algo importante para mim. Em certo sentido, este artigo é uma descrição do que aconteceu em meu próprio pensamento: o enfoque mudou das relações inconscientes de objetos internos para a luta de cada um de nós por tornar-se mais pleno e as experiências mais reais e vivas.
Ao longo deste artigo, é importante que o leitor tenha em mente que não existe psicanálise ontológica ou psicanálise epistemológica em forma pura. As duas coexistem e se enriquecem mutuamente. São modos de pensar e de ser - sensibilidades, não "escolas" de pensamento analítico, conjuntos de princípios ou técnicas analíticas. Portanto, há muito de natureza ontológica no trabalho de Freud e Klein, e muito de natureza epistemológica no trabalho de Winnicott e Bion.
Da maneira como estou usando o termo, psicanálise epistemológica refere-se ao processo de adquirir conhecimentos e de chegar a entendimentos sobre o paciente, particularmente acerca de seu mundo interno inconsciente e de sua forma de se relacionar com o mundo externo. Esses entendimentos servem para organizar a experiência e têm valor quando se lida com os problemas emocionais do paciente, quando se procura obter mudanças psíquicas. As interpretações do analista buscam promover o entendimento das fantasias inconscientes do paciente, bem como de seus desejos, medos, impulsos, conflitos, aspirações, e assim por diante. Nas palavras de Laplanche e Pontalis: "A interpretação está no centro da doutrina e da técnica freudianas. Poderiamos caracterizar a psicanálise pela interpretação, isto é, pela evidenciação do sentido latente de um material". Os autores dizem ainda: "A interpretação traz à luz as modalidades do conflito defensivo e, em última análise, tem em vista o desejo que se formula em qualquer produção do inconsciente" (1973, p. 227).3
Klein descreveu seu trabalho com uma criança em análise de maneira semelhante:
a criança expressou suas fantasias e ansiedades principalmente através do brincar, e eu interpretava consistentemente seu significado para ela. ... Também me orientei sempre por outros dois princípios da psicanálise, estabelecidos por Freud, que desde o início considerei fundamentais: que a exploração do inconsciente é a principal tarefa do procedimento psicanalítico, e que a análise da transferência é o meio para atingir esse objetivo. (1955/1975c, p. 123)
Do ponto de vista epistemológico, a intervenção clínica mais importante é a interpretação da transferência. O analista usa palavras para transmitir ao paciente sua compreensão das maneiras pelas quais o paciente se relaciona com o analista, como se este fosse uma figura real ou imaginada da infância do paciente. "Trata-se aqui [na transferência] de uma repetição de protótipos infantis vivida com um sentimento de atualidade acentuada" (Laplanche & Pontalis, 1973, p. 445). Experimentar o presente como se fora passado impede a mudança psíquica; instaura um circuito fechado que se repete infinitamente, permitindo pouco ou nenhum espaço para o desenvolvimento de novas possibilidades.
Por sua vez, o termo psicanálise ontológica, como o uso, refere-se a uma dimensão da psicanálise na qual o propósito do analista é facilitar os esforços do paciente por tornar-se mais si mesmo. Winnicott descreve a diferença entre psicanálise ontológica e epistemológica de forma concisa:
Naturalmente, voltamo-nos para a obra de Melanie Klein (1932). Em seus escritos, porém, Klein, na medida em que estudava a brincadeira, mantinha seu interesse centrado quase que inteiramente no uso desta [como forma de simbolização do mundo interior da criança]. ... Não se trata de uma crítica a Melanie Klein ou a outros que descreveram o uso da brincadeira por uma criança na psicanálise infantil. Fazemos um simples comentário sobre a possibilidade de que ... o psicanalista tenha estado mais ocupado com a utilização do conteúdo da brincadeira do que em olhar a criança que brinca e escrever sobre o brincar como uma coisa em si. É evidente que estou fazendo uma distinção significante entre o substantivo "brincadeira" e o verbo substantivado "brincar". (1971b, pp. 39-40)
Winnicott está fazendo aqui uma distinção entre o significado simbólico do brincar e o estado de ser envolvido no brincar. Chegar a explicações do significado simbólico do brincar é domínio da psicanálise epistemológica; trabalhar no e com o estado de ser do brincar é domínio da psicanálise ontológica.
Da perspectiva ontológica,
a psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado em que o é. (Winnicott, 1971b, p. 38)
Conforme descrito nessa passagem (e no trabalho de Winnicott como um todo), o papel do analista é bem diferente de seu papel numa análise de cunho predominantemente epistemológico. Enquanto na psicanálise epistemológica o objetivo é destacar a questão que provoca angústia, formulando assim uma interpretação, na psicanálise predominantemente ontológica o analista deve "esperar" para explicar ao paciente o que pôde compreender:
Estarrece-me pensar quanta mudança profunda impedi, ou retardei, ... pela minha necessidade pessoal de interpretar. Se pudermos esperar, o paciente chegará à compreensão criativamente, e com imensa alegria; hoje posso fruir mais prazer nessa alegria do que costumava com o sentimento de ter sido arguto. (Winnicott, 1969/1971d, p. 86)
Na psicanálise ontológica, o conhecimento adquirido por paciente e analista não é o ponto central; pelo contrário, trata-se da experiência do paciente que "chegará à compreensão criativamente, e com imensa alegria", experiência na qual ele está engajado não predominantemente por buscar autoentendimen-to, mas por estar num processo de tornar-se mais plenamente si mesmo.
Winnicott, em um de seus últimos trabalhos, "Sonhar, fantasiar e viver", formula uma das conclusões centrais de sua obra - conclusão essa que diferencia sua abordagem da de Klein, em particular, e da psicanálise epistemológica, em geral. Para Winnicott, a fantasia inconsciente é uma espécie de círculo vicioso que prende a pessoa em seu mundo interior. Ao descrever uma vinheta clínica, ele diz:
Quanto a mim, o trabalho da sessão produzira um resultado importante. Ensinara-me que o fantasiar interfere na ação e na vida no mundo real, ou externo, mas interfere muito mais no sonho e na realidade psíquica pessoal, ou interna, o cerne vivo da personalidade individual. (1971a, p. 31)
No artigo "Objetos transicionais e fenômenos transicionais", Winnicott usa, quase de passagem, uma frase que para mim indica o processo subjacente à análise bem-sucedida. Indica também todas as outras formas de crescimento psíquico: "no desenvolvimento de um bebê, surge por parte dele uma tendência a entremear objetos diferentes-de-mim no padrão pessoal" (1971c, p. 3). Em outras palavras, tomamos algo que ainda não é nosso (como uma experiência com um cônjuge ou um amigo, um poema lido ou uma peça musical ouvida) e o incorporamos para criar quem somos, de maneira a nos tornarmos mais do que éramos antes de ter essa experiência, antes de haver introduzido a experiência em nosso padrão pessoal. Aqui, ao desenvolver o aspecto ontológico da psicanálise, Winnicott está inventando uma linguagem -"entremea[ndo] objetos diferentes-de-mim no padrão pessoal" -, criando uma forma de falar do crescimento psíquico que nunca encontrei em outro lugar.
Quando paciente e analista não conseguem brincar, o analista deve prestar atenção a esse problema, já que ele impede a dupla de experimentar a "sobreposição de duas áreas do brincar". Se o analista não consegue se envolver no brincar, deve considerar se a inabilidade de se envolver nesse estado de ser (brincar não é apenas um estado de espírito, mas também um estado de ser) relaciona-se ao que ocorre no vínculo com o paciente (possivelmente uma identificação profunda com a falta de vida dele) ou a uma incapacidade sua de se envolver de modo genuíno no brincar, o que provavelmente exigirá que retorne à análise.
Pode-se argumentar que o que estou chamando de psicanálise epistemológica e psicanálise ontológica são apenas maneiras diferentes de olhar para um único fazer analítico. De fato, as duas categorias se sobrepõem fartamente. Por exemplo, o analista pode oferecer uma interpretação sensata e oportuna sobre o medo do paciente, devendo-se este ao fato de que apenas um dos dois - o paciente ou o analista - pode ser homem a certa altura da análise; se ambos forem homens ao mesmo tempo, inevitavelmente entrarão numa batalha pela morte de um deles. O resultado de tal trabalho clínico pode não ser simplesmente um autoconhecimento aprimorado por parte do paciente, mas também, o que é mais importante, um sentido maior de liberdade de ser si mesmo enquanto homem adulto.
Não é difícil encontrar pensamento ontológico no trabalho de Freud e de Klein. Tomemos, por exemplo, a ideia de Freud de que o analista tenta "evitar ao máximo a reflexão e a formação de expectativas conscientes, não ... fixar especialmente na memória nada do que ouve, e assim apreender o inconsciente do paciente com seu próprio inconsciente" (1923/1955, p. 239). O analista deve "escutar e não se preocupar em notar alguma coisa" (Freud, 1912/1958, p. 112). "Escutar" é um estado de ser, uma maneira de estar com o paciente.
Também representativa do pensamento ontológico de Freud é sua famosa afirmação: "Wo Es war, soll Ich werden", ou: "Onde era id, há de ser eu" (1933/1964, p. 80).4 O que havia sido experimentado como outro para si mesmo ("o isso") é incorporado ao próprio ser (quem sou, quem "devo ser", em quem estou me tornando).
Não obstante a sobreposição e a interação das dimensões epistemológicas e ontológicas da psicanálise, e o fato de nenhuma delas existir em forma pura, parece-me que muitas experiências no decorrer de uma análise são de natureza predominantemente epistemológica ou predominantemente onto-lógica. A meu ver, esses dois aspectos psicanalíticos envolvem modos bastante diferentes de ação terapêutica. A ação terapêutica que caracteriza a dimensão epistemológica da psicanálise envolve chegar a compreender pensamentos, sentimentos e experiências corporais antes inconscientes, que ajudam o paciente a alcançar a mudança psíquica. Por outro lado, a ação terapêutica que caracteriza a psicanálise ontológica envolve fornecer um contexto interpessoal em que ganham vida na relação analítica formas de experimentar, estados de ser, antes impensáveis para o paciente - por exemplo, experimentar fenômenos e objetos transicionais (Winnicott, 1971c), bem como a comunicação silenciosa que ocorre no centro do ser (Winnicott, 1963/1965).5
Estar vivo, sentir todo o sentido do real
Tentarei agora descrever em mais detalhes o que quero dizer quando me refiro a uma prática da psicanálise ontológica. Vou centrar-me primeiro em Winnicott, depois em Bion.
Em quase todos os seus artigos, Winnicott apresenta e descreve estados de ser que antes dele não eram reconhecidos na literatura analítica. Por exemplo, o estado de "continuar sendo" (Winnicott, 1949/1958a), expressão constituída inteiramente por verbos (um substantivo verbal) e desprovida de sujeito, que captura algo de um estado de ser, sem sujeito, muito precoce: tanto o estado de ser da mãe que sobrevive ao ser destruída pelo bebê (Winnicott, 1969/1971d) quanto o estado de ser da "preocupação primária da mãe" (Winnicott, 1956/1958b).
Talvez a contribuição mais significativa de Winnicott para a psicanálise ontológica sejam seus conceitos de objetos transicionais e fenômenos transicio-nais, que ele descreve da seguinte forma:
uma área intermediária de experimentação, para a qual contribuem tanto a realidade interna quanto a vida externa. Trata-se de uma área que não é disputada, porque nenhuma reivindicação é feita em seu nome, exceto que ela exista como lugar de repouso para o indivíduo empenhado na perpétua tarefa humana de manter as realidades interna e externa separadas, ainda que inter-relacionadas. (1971c, p. 2)
A capacidade do bebê de desenvolver um "estado de ser" (Winnicott, 1971c, p. 14) ligado à experimentação de fenômenos e objetos transicionais requer um estado de ser correspondente por parte da mãe (ou do analista). Isto é,
se trata de uma questão de concordância, entre nós e o bebê, de que nunca formulemos a pergunta: "Você concebeu isso ou lhe foi apresentado do exterior?". O importante é que não se espere decisão alguma sobre esse ponto. A pergunta não é para ser formulada. (Winnicott, 1971c, p. 12)
O estado de ser que subjaz aos fenômenos transicionais é de natureza paradoxal:
Normalmente, o lactante cria o que de fato está a seu redor esperando para ser encontrado. E também aí o objeto é criado, não encontrado ... Isso tem de ser aceito como um paradoxo, e não resolvido por um refraseado que por seu brilhantismo pareça eliminar esse paradoxo. (Winnicott, 1963/1965, p. 181)
Trata-se de um estado de ser que subjaz à "experimentação intensa que diz respeito às artes, à religião, ao viver imaginativo" (Winnicott, 1971c, p. 14). (Quando Winnicott fala do relacionamento mãe-bebê, está usando isso como metáfora que inclui não apenas essa relação, mas também a relação analista-paciente e qualquer outra relação expressiva experimentada por bebês, crianças e adultos.)
Entre as contribuições de Winnicott para a psicanálise ontológica, vale ressaltar ainda sua concepção do estado de ser que reside no âmago do eu:
o eu central que não se comunica, para sempre imune ao princípio da realidade [imune à necessidade de responder a qualquer coisa externa ao eu] e para sempre silencioso. Aí a comunicação é não verbal; é como música das esferas, absolutamente pessoal. Pertence ao estar vivo. E normalmente, é daí que se origina a comunicação. (1963/1965, p. 192)
Esse estado de ser, no centro do eu, constitui um mistério impenetrável (totalmente incognoscível) que é fonte tanto das comunicações vivas como dos silêncios absolutos. O silêncio no âmago do eu não é de natureza verbal; o que torna o estado de ser em nosso âmago impensável é o fato de ser também "não não verbal". O silêncio que não é verbal nem não verbal está para além da possibilidade de compreensão humana. É "como música das esferas, absolutamente pessoal". A metáfora da música das esferas é derivada da concepção de Pitágoras, no século vi a.C., sobre a música produzida pelo movimento dos corpos celestes, uma música cuja harmonia é perfeita, mas inaudível para a humanidade. Qual a melhor forma de descrever o segredo inconcebível que cada um de nós mantém no âmago de seu ser, um segredo que é "absolutamente pessoal", "pertence ao estar vivo"?
Contribuições de Bion para a psicanálise ontológica
Quando leio Bion, noto ao longo de sua obra que ele é fundamentalmente um pensador ontológico. Winnicott transferiu o enfoque da análise do brincar como categoria para o brincar da criança. Já Bion transferiu o enfoque (da compreensão) dos sonhos para (a experiência de) sonhar - que para ele é sinônimo de um trabalho psicológico inconsciente (Ogden, 2007b).
Bion insiste que, enquanto psicanalistas, devemos abandonar o desejo de entender e, em vez disso, engajar-nos o quanto possível na experiência de estar com o paciente. Devemos "cultivar uma vigilante evitação da memória", porque a memória é o que pensamos saber com base no que deixou de existir e de ser cognoscível. Também devemos renunciar a "desejos de resultados, de 'cura' ou mesmo de compreensão". A memória do que pensamos saber e o desejo por compreender o que ainda não ocorreu (que por conseguinte também é incognoscível) são "obstáculos para a intuição da realidade [do que está se passando no momento presente de uma sessão] com a qual o psicanalista deve estar em uníssono"( Bion, 1967/2013, pp. 136-137). Esta é a marca do pensamento ontológico bioniano: ser e estar suplantaram a compreensão - o analista não chega a conhecer, entender, compreender ou apreender a realidade do que está acontecendo numa sessão; pelo contrário, ele "intui" a realidade e torna-se "um" com ela: está totalmente presente ao vivenciar o momento presente.
A concepção de reverie de Bion (1962, 1962/1967b) também reflete a força ontológica de seu pensamento. A reverie (o devaneio) é um estado de ser que implica tornar-se inconscientemente receptivo a experimentar o que há de perturbador para o paciente (ou para o bebê) a ponto de ele não poder "sonhar" (trabalhar psicológica e inconscientemente) sua experiência. A reverie do analista (ou da mãe), o devaneio - que muitas vezes toma a forma de seus pensamentos cotidianos mais mundanos (Ogden, 1997a, 1997b) -, constitui uma maneira pela qual o analista (ou a mãe) experimenta inconscientemente algo como uma experiência impensável e irrealizável do paciente (ou do bebê). No setting analítico, o analista disponibiliza para o paciente a versão transformada (sonhada) da experiência "não sonhada" ou parcialmente sonhada, falando (ou se relacionando de outras formas) desde, e não sobre, a experiência de reverie (Ogden, 1994).
Bion fala em termos de estados de ser ao descrever a saúde psíquica e a psicopatologia. Por exemplo, a psicose para ele é um estado de ser no qual o indivíduo "não pode adormecer nem acordar" (Bion, 1962, p. 7).
Vejo a teoria da função alfa de Bion (1962) como metáfora da transformação de elementos beta (impressões brutas que são respostas corporais à experiência, mas que ainda não constituem um sentido, muito menos o sentido de ser si mesmo) em elementos alfa, componentes de um ser sem sujeito, semelhantes ao "continuar sendo" de Winnicott. Elementos alfa estão ligados entre si no processo de produção de "pensamentos oníricos", que por sua vez atuam no processo de sonhar. Sonhar é um evento psíquico no qual o indivíduo se torna um sujeito e experimenta seu próprio ser. Quando, em formas severas de psicopatologia (que descreverei na parte clínica deste artigo), a função alfa deixa de processar impressões sensoriais, o indivíduo perde não só a possibilidade de criar sentidos como também a de experimentar a si mesmo enquanto vivo e real.
Parece-me que o pensamento ontológico de Bion ganha vida de maneira especialmente vívida em seus "Seminários clínicos" [Clinical seminars] (1987). Oferecerei alguns exemplos que considero particularmente importantes.
Bion comenta com o apresentador de um caso clínico, preocupado com os "erros" que cometeu com seu paciente, que "é apenas depois de você se qualificar e terminar sua própria análise que você terá a possibilidade de descobrir quem realmente é [enquanto analista]" (1987, p. 34) - ver também Gabbard e Ogden (2009), sobre como tornar-se um analista. No texto, Bion está diferenciando entre aprender a "fazer análise" e a experiência de ser e se tornar "quem você realmente é" ao atuar como analista.
Acrescentaria que tornar-se analista requer desenvolver um "estilo analítico" (Ogden, 2007a) próprio, único, em vez de adotar "uma técnica" transmitida pelas gerações anteriores. Ao fazê-lo, "inventamos a psicanálise" (Ogden, 2018), e isso para cada paciente, desenvolvendo a possibilidade de respondermos espontaneamente a cada momento, ora usando palavras, ora de maneiras não verbais. Por vezes, a resposta espontânea assume a forma de uma ação. Tais ações são únicas e ocorrem em momentos singulares da análise, com cada paciente; não são generalizáveis para o trabalho com todos ou com outros pacientes. Quando me perguntam, por exemplo, se faria uma sessão analítica na casa de um paciente, se levaria um paciente gravemente doente em meu carro até o hospital, se me encontraria com sua família ou se aceitaria um presente de um paciente, digo sempre: "Depende".
Um comentário de Bion a um trabalho clínico expressa de maneira particularmente vívida seu pensamento ontológico. A pessoa que apresenta o caso diz que seu paciente psicótico lhe contou haver tido um sonho. E Bion pergunta: "Por que diz que são sonhos?". O apresentador do caso, atônito, responde: "Porque ele me diz isso" (1987, p. 142).
Pouco depois, Bion descreve como poderia ter falado com o paciente, uma forma que toca seu estado de ser:
Então, por que o paciente procura um psicanalista dizendo que teve um sonho? Posso me imaginar dizendo a um PACIENTE: "Onde você esteve ontem à noite? O que você viu?". Se o paciente dissesse que não viu nada - simplesmente foi dormir -, eu diria: "Bem, ainda assim quero saber para onde você foi e o que viu", (p. 142)
Nessa passagem, Bion imagina conversar com um paciente sem se concentrar no conteúdo que o paciente chama de sonho, mas em seu estado de ser - "Para onde você foi?", "Onde você esteve?", "Quem era você?", "Quem se tornou quando entrou na cama?". Essa me parece uma forma muito hábil de participar de uma conversa com um paciente psicótico acerca de seu estado de ser enquanto dorme.
Psicanálise ontológica e as teorias das relações objetais
Para os teóricos das relações objetais - como Freud, em alguns de seus escritos (Ogden, 2002), além de Fairbairn, Guntrip e Klein -, as alterações nas relações de objetos internos e inconscientes, bem como a resultante mudança nas relações objetais externas, constituem o meio através do qual ocorrem as mudanças psíquicas.
Para Freud (1917/1957), Klein (1946/1975b), Fairbairn (1944/1952a, 1940/1952b, 1958) e também Guntrip (1961, 1969) - para citar apenas alguns "teóricos das relações objetais" -, essas relações internas assumem a forma de relações entre partes clivadas e reprimidas do ego. Para Fairbairn, essas relações são internalizações dos aspectos insatisfatórios da relação real com a mãe. O mundo de objetos internos é um sistema fechado de relações viciadas com objetos internos tanto tentadores como rejeitados (Fairbairn, 1944/1952a). Desde a infância, uma força motriz do indivíduo é o desejo de transformar as relações objetais maternas insatisfatórias e internalizadas em relações satisfatórias, caracterizadas por sentimentos de amor da e pela mãe e pela sensação de que ela reconhece e aceita esse amor (Ogden, 2010). Isso liberta o paciente do circuito fechado de relações objetais internas e permite a entrada dele no mundo de objetos externos reais, que é o objetivo da psicanálise (Fairbairn, 1958).
Para Klein (1961, 1975a), que é uma teórica das relações objetais diferente de Fairbairn, as ansiedades do paciente derivam dos perigos que emanam de relações objetais internas e fantasiosas. Fantasias inconscientes (manifestações psíquicas dos instintos de vida e de morte) frequentemente concernem ao que ocorre dentro do corpo da mãe/analista - por exemplo, os ataques aos bebês ou o pênis do pai dentro da mãe. Essas ansiedades primitivas se manifestam na transferência e podem ser interpretadas de uma forma que soe fiel à experiência do paciente e ajude a diminuir as ansiedades perse-cutórias e depressivas que impedem o crescimento psíquico.
A teoria das relações objetais de Klein difere da de Fairbairn em vários aspectos. A diferença principal está na maneira como Fairbairn vê as relações objetais internas: como internalizações das experiências insatisfatórias factuais na relação mãe-bebê. Por sua vez, Klein vê as relações objetais internas como fantasias inconscientes derivadas da experiência de inveja do bebê (a principal manifestação psíquica do instinto de morte).
Não considero Winnicott e Bion teóricos das relações objetais - raramente em suas obras esses autores se referem a relações objetais internas. Não é sua preocupação compreender e interpretar as relações objetais internas patológicas nas quais o paciente esteja preso. Sua abordagem centra-se na gama de estados de ser experimentados pelo paciente (e por seu analista) e na gama de estados de ser que o paciente (ou seu analista) é incapaz de experimentar. Para os teóricos das relações objetais, o crescimento psíquico envolve libertar-se das ansiedades persecutórias e depressivas geradas no mundo de objetos internos (Klein) ou libertar-se dos laços viciantes entre objetos internos para que seja possível relacionar-se com objetos externos reais (Fairbairn e Guntrip). Como descrevi, para Winnicott e Bion a necessidade humana mais fundamental é ser e tornar-se mais plenamente si mesmo, o que, a meu ver, envolve tornar-se mais presente e vivo para os pensamentos, sentimentos e estados corporais; tornar-se mais capaz de sentir os potenciais criativos e encontrar formas de desenvolvê-los; sentir que se está a pronunciar ideias próprias e a exercer a própria voz; tornar-se uma pessoa maior (talvez mais generosa, compassiva, amorosa ou aberta) ao relacionar-se com os outros; desenvolver mais plenamente um sistema de valores e um conjunto de padrões éticos humanos e justos; e assim por diante.
Não só as relações objetais internas inconscientes são raramente mencionadas por Winnicott e Bion - Winnicott raramente faz menção ao inconsciente, e Bion cria uma nova concepção da natureza do inconsciente. Estados de ser infundem todos os aspectos do ser; transcendem a divisa entre aspectos conscientes e inconscientes da mente, entre o dormir e o acordar, entre a vida dos sonhos e a vigília, entre "partes psicóticas e não psicóticas da personalidade" (Bion, 1957/1967a).
Ilustrações clínicas de psicanálise ontológica
Psicanálise ontológica é uma concepção que, como toda compreensão da psicanálise, pode endurecer e tornar-se uma ideologia irracional. Psicanálise ontológica é uma dimensão da teoria e da prática analíticas que coexiste com muitas outras dimensões (formas de pensar), incluindo, mas não se limitando a, uma dimensão epistemológica. Entretanto, como disse antes, também é verdade que para mim existem grandes setores do pensamento e da prática analíticos que são de natureza predominantemente ontológica e outros que são de natureza predominantemente epistemológica.
Agora vou ilustrar brevemente, usando vinhetas clínicas, o que quero dizer ao referir-me à dimensão ontológica da psicanálise. Deve-se ter em mente, nesta parte, que minhas intervenções têm o propósito de servir como ilustrações, que pertencem a determinado paciente apenas, em determinado momento de sua experiência analítica; não representam uma técnica analítica. Creio que a adesão rígida de um analista a qualquer conjunto de regras da prática clínica (por exemplo, a técnica de uma escola psicanalítica) não apenas é percebida como impessoal pelo paciente, mas também limita a criatividade do analista no trabalho com seus pacientes. Falo com cada paciente de maneira diferente (Ogden, 2018).
Esse assunto já não basta pra você?
O paciente é um homem de 30 anos, com vários anos de análise, que teve uma briga com o pai e não falava com ele há um ano. Havíamos discutido essa situação de diversas formas em nosso tempo de trabalho juntos. Pouco antes do final de uma sessão, comentei: "Esse assunto já não basta pra você?".
Nesse fragmento clínico, disse ao paciente, de modo bastante condensado, que continuar a não falar com o pai era uma maneira de ser que não mais refletia a pessoa em quem ele se tornara no decorrer do trabalho analítico. Não falar com o pai podia condizer com a pessoa que ele foi, mas não com a pessoa em quem ele se tornou.
O paciente ligou para o pai naquela noite. O pai também havia mudado e recebeu bem a ligação do filho. Nos meses de fechamento da análise, o paciente me disse que nunca esqueceria o que eu lhe dissera: "Esse assunto já não basta pra você?". O momento na análise a que ele se referia representou menos uma compreensão de alguma coisa e mais uma experiência que alterou algo fundamental para quem ele era.
Claro que está
No início de nosso encontro analítico, a Sr.ª L sentou-se na cadeira, seu rosto empalidecido. Começou a chorar copiosamente e disse: "Estou aterrorizada de estar aqui". Respondi, sem planejar: "Claro que está".
Minha resposta espontânea (dizendo algo que nunca havia dito a qualquer outro paciente) pareceu-me, naquele momento, uma maneira de aceitar totalmente o estado de terror da paciente. Se eu tivesse perguntado "O que está assustando você?" ou dito "Conte-me mais", penso que a paciente teria sentido que eu estava me afastando da intensidade de seu sentimento, pedindo a ela envolvimento num processo secundário, visando encontrar motivos e explicações, no lugar de experimentar a maneira pela qual ela se apresentava para mim (contando quem era naquele momento) - ver Ogden (2018) para uma exploração mais aprofundada dessa experiência.
Você assiste tv?
Atendi Jim numa enfermaria de internação de longo prazo para adolescentes, cinco vezes por semana. Ele não comparecia sozinho às sessões;
era trazido por uma enfermeira. Jim não se opunha a ver-me, mas quando estávamos sentados na pequena sala da enfermaria que usávamos para sua psicoterapia, parecia não saber por que estávamos ali. Permanecia em silêncio a maior parte do tempo. Aprendi que fazer-lhe perguntas levava apenas a respostas superficiais, muitas vezes monossilábicas.
Com o passar do tempo, começou a me contar eventos ocorridos na enfermaria - pacientes novos haviam sido admitidos, e outros recebido alta -, mas suas palavras pareciam imitar o que ouvia outras pessoas dizer, seja nas reuniões de grupo que frequentava, seja nas reuniões de sua comunidade. Disse a ele: "É difícil saber se você está indo ou vindo". Ficou com o olhar perplexo.
Achei as sessões com Jim difíceis, e tive a sensação de não saber coisa alguma sobre como trabalhar com ele, e portanto com qualquer paciente.
Quando contava cerca de cinco meses de análise, Jim foi trazido para uma sessão e notei que andava de maneira apática, seu rosto estava totalmente inexpressivo, seus olhos pareciam os de um pássaro morto. Ele disse então, como que ao léu: "Jim está perdido. Desapareceu para sempre".
Senti algum alívio ao notar que a fina camada que encobrira uma imensa catástrofe psíquica havia irrompido, mas também senti que tinha ocorrido uma morte psíquica e que ela poderia facilmente se tornar um suicídio real. Um paciente da mesma enfermaria, um ano antes, havia cometido suicídio, e a lembrança desse episódio era parte da cultura (geralmente não pronunciada) desse local.
Eu disse: "Jim está perdido e desaparecido há muito tempo, mas só agora isso pode ser dito".
Ele olhou para o brilho da luz do Sol, refletida na janela de acrílico. Seus olhos estavam desfocados.
Fiquei em silêncio por algum tempo, sentindo o imenso vazio do que estava acontecendo. Enquanto isso, comecei a ter a forte sensação de que o risco de suicídio nessa enfermaria havia sido subestimado, e que ela deveria ser trancada de forma que os pacientes só pudessem sair com permissão da equipe e geralmente acompanhados por um membro desta. Percebi a distância que se produzira entre mim e o paciente. Ele se tornara um paciente "perigoso", que me assustava. Eu estava "gerenciando-o", não mais como uma pessoa, mas agora como uma coisa.
Depois de algum tempo, nessa mesma sessão, notei que o ruído de fundo habitualmente em minha mente - pensamentos que vêm e vão, a "visão periférica" da reverie, mesmo as sensações corporais, meu coração batendo, minha respiração sensível - havia desaparecido. Tive medo de que não apenas Jim desaparecera, mas eu também o estava fazendo. Tudo se tornava irreal - a pequena sala em que estávamos sentados deixava de ser uma sala, tornava-se uma coleção de formas, cores e texturas; tudo parecia arbitrário. Senti o terror do afogamento, embora ao mesmo tempo eu fosse um observador indiferente, simplesmente assistindo a mim mesmo enquanto me afogava.
À medida que a sessão prosseguia, lembrei-me de uma experiência assustadora que tive na adolescência, quando sozinho na cozinha depois do jantar repeti a palavra guardanapo em voz alta, inúmeras vezes, até ela se tornar num mero som, absolutamente desvinculada da coisa que antes nomeara. A princípio, intrigou-me o fenômeno e o "experimento", mas logo fiquei com medo de que, se fizesse o mesmo com outras palavras, além de guardanapo [napkin], eventualmente eu perderia a fala, a possibilidade de pensar, de ligarme a qualquer um ou a qualquer coisa. Por muitos anos após esse episódio, a palavra guarda [nap] seguida de napo [kin] não nomeava mais nada para mim; eram apenas sons que me faziam duvidar da estabilidade de minha conexão com as outras pessoas e até comigo mesmo. Na sessão com Jim, senti-me momentaneamente aliviado por ter mente e lembrar um passado contínuo com o presente, mas esse alívio foi apenas uma trégua momentânea. Senti medo de que, se ficasse na sala com Jim, perderia a mim mesmo.
Eu tinha pavor dos encontros diários com Jim. Por várias semanas sentamos juntos, em geral num silencioso vazio. Não lhe fazia perguntas. Vez por outra, tentava descrever o que eu sentia. Numa ocasião, disse-lhe: "Sentar aqui é como estar em lugar nenhum e não ser ninguém'. Ele não respondeu, nem mesmo esboçou qualquer alteração em sua expressão facial.
Nas seis semanas depois que Jim me disse que estava perdido e desaparecido para sempre, senti-me à deriva, desorientado na relação com ele. Para minha grande surpresa, no meio de uma sessão, Jim disse com voz inexpressiva, como se não falasse para ninguém: "Você assiste tv?".
Tomei sua pergunta não como um comentário simbólico, indicando que se sentia como uma máquina exibidora de imagens de pessoas conversando entre si, mas como sua maneira de me perguntar: "Quem é você?".
Respondi: "Sim, assisto. Assisto bastante tv".
Jim não respondeu.
Depois de um tempo, eu lhe disse:
Você já viu alguém acender um fósforo num lugar completamente escuro, talvez numa caverna, de maneira que tudo se ilumine, se torne visível - ou ao menos quase tudo - e depois, no instante seguinte, escurece de novo, mas não fica tão escuro como antes?
Jim não respondeu, mas não me pareceu que o silêncio ao qual retornamos fosse tão vazio quanto antes.
Olhei para o relógio e descobri que tínhamos passado meia hora de nossa sessão de 50 minutos. Comentei: "É hora de pararmos". Ele olhou para mim e disse: "Ah é?". Pareceu-me estar me corrigindo: a experiência que tivemos não podia ser medida ou ditada pela "hora do relógio".
Na primeira das sessões que descrevi, fiquei por bastante tempo imerso num estado de perda do sentido de ser alguém. Jim e eu estávamos "perdidos e desaparecidos para sempre", e a princípio ficamos, cada um de nós, absolutamente sozinhos naquele estado - não existíamos um para o outro, assim como não existíamos para nós mesmos. Abstive-me de perguntar o que estava acontecendo ou o que o levara a sentir-se assim. Simplesmente experimentei a sensação assustadora de me perder, o que foi essencial para que eu pudesse ser-lhe de alguma utilidade. Ao ser ninguém, eu estava experimentando algo parecido com o que ele sentia, tanto na sessão como provavelmente em toda a sua vida.
A reverie sobre minha própria experiência adolescente ajudou-me, pelo menos por um momento, a estar na situação com o paciente e a trazer algo de minha própria sensação de vida no limite, mas sem ultrapassar o limite e me perder.
A pergunta do paciente, "Você assiste tv?" - cerca de seis semanas após esse aterrorizador período da análise -, foi para mim como ouvir um cachorro falar. Ele me abordar, me reconhecer, foi surpreendente. Eu não estava nem um pouco inclinado a investigar os possíveis sentidos simbólicos ligados a "assistir tv", pois fazê-lo teria dizimado a experiência de vida que estava ocorrendo, um evento que tinha tudo a ver com ser e pouco com compreender.
Em resposta a sua pergunta, disse ao paciente que assisto bastante tv. Mas a parte mais importante de minha resposta foi a forma de descrever (sem explicar), por meio de uma metáfora, algo do estado de ser que eu sentia que estava ocorrendo: a experiência sensorial de acender um fósforo, iluminando momentaneamente o que havia sido invisível (nós dois como pessoas individuais), seguida por um sentimento de que a escuridão não era tão absoluta quanto antes.
Como iniciar?
Durante grande parte de minha carreira, fascinou-me o primeiro encontro analítico, isto é, a primeira vez que me encontro com cada paciente (Ogden, 1992). Muitos dos exemplos clínicos que forneci neste e em outros artigos analíticos foram retirados de sessões iniciais. Ao escrever este texto, pude apreciar um aspecto dos encontros iniciais com pacientes que não havia podido nomear até agora. Suspeito que a profundidade, a intimidade e o suspense que sinto no primeiro encontro derivem, em parte, da pergunta mais importante para o paciente no primeiro encontro: "Quem é essa pessoa que espero que consiga me ajudar?". E eu, por minha vez, pergunto-me: "Quem é essa pessoa que me procura querendo ajuda?". São questões ontológicas fundamentais. A resposta surge na experiência que então se desenrola. Espero que, no final de cada primeiro encontro, se o paciente perguntar como eu pratico a psicanálise, eu possa lhe dizer: "Assim como você viu hoje".
Descreverei um encontro inicial que ilustra a maneira como um paciente fez a pergunta "Quem é você?" e a maneira como eu respondi.
O Sr. D disse, em sua primeira sessão, que nunca iniciaria a sessão. Disse que já havia se analisado com seis profissionais diferentes e todos tinham terminado a análise dele unilateralmente. Nessas análises abortadas, os analistas haviam se recusado a iniciar as sessões, conforme o paciente pedira. Em vez disso, usavam "truques analíticos", como iniciar a sessão perguntando como ele se sentia ao não poder iniciar a sessão. Se era para trabalharmos juntos, caberia a mim, dizia o Sr. D, iniciar cada uma de nossas sessões. Aceitei, mas adverti que eu poderia levar algum tempo para iniciar as sessões, já que iniciaria cada sessão contando a ele como era estar com ele naquele dia em particular. Ele concordou, embora houvesse forte ceticismo em sua voz no que dizia respeito a minha disposição de cumprir o que eu prometia.
Nessa troca, eu e o paciente estávamos nos apresentando, mostrando mais do que dizendo quem éramos e em quem estávamos no processo de nos tornarmos um com o outro. O paciente pedia que eu respeitasse sua forma de ser, sua forma de aliviar seus medos. E eu estava mostrando que honrava seu pedido de ser o analista que ele precisava que eu fosse.
No decorrer da análise, iniciei as sessões. O paciente foi paulatinamente podendo recuperar partes de si, partes de sua vida não vividas quando criança, que eram brutais demais, assustadoras demais para que fossem vividas no momento em que ocorreram - ver Ogden (1995) para uma discussão detalhada desse caso.
Porque estava morta
Uma experiência clínica em grupo revela muito do que quero dizer quando me refiro à dimensão ontológica da psicanálise. A experiência ocorreu num "Grupo Balint" de que participei por um ano na Clínica Tavistock. Um grupo de sete clínicos gerais se encontrava semanalmente com o psicanalista, que liderou os encontros por dois anos para discutir trabalhos clínicos. No grupo de que participei, cada reunião começava com o analista perguntando: "Quem tem um caso para compartilhar?". Numa dessas reuniões, um médico de 40 e tantos anos disse que recebeu a ligação de uma paciente dizendo que a mãe idosa havia falecido enquanto dormia em sua casa. Tanto a mulher que telefonou como sua mãe tinham sido pacientes na clínica desse médico por muitos anos. Ele disse à paciente que passaria na casa dela naquela tarde. Quando chegou, a filha levou-o para o quarto da mãe e ele a examinou.
O médico relatou que então ligou para o necrotério. E o analista perguntou: "Por que você fez isso?". Intrigado com a pergunta, o médico respondeu: "Porque ela estava morta".
O analista perguntou: "Por que não tomou um chá com a filha?".
Essas palavras - "Por que não tomou um chá com afilha?" - ficaram comigo por 44 anos, desde que as ouvi. Uma afirmação tão simples capta a essência do que quero dizer com a prática de psicanálise ontológica. O líder do grupo estava salientando que o médico se apressara em retirar o corpo da mãe do apartamento e, dessa forma, excluira a possibilidade de viver a experiência com a filha, simplesmente estando com ela no apartamento onde sua mãe jazia no quarto - para uma discussão mais aprofundada dessa experiência, ver Ogden (2006).
O que você quer ser quando crescer?
Concluirei relatando a experiência com um paciente que tem grande importância para mim.
O Sr. C, paciente com paralisia cerebral, começou a trabalhar comigo em psicoterapia duas vezes por semana, devido a um grande sofrimento e a intensos pensamentos suicidas por não ser correspondido em seu amor por uma mulher, a Sr.ª Z (que não tinha deficiências físicas). Descrevera como, quando criança, sua mãe jogara nele sapatos do armário dela, dizendo que era a maneira de manter o "monstro babão" longe dela. O Sr. C andava dando passos intensos e desajeitados, sua fala era mal articulada. Era um homem formado e tinha um exigente trabalho técnico, que executava muito bem. No decurso de nosso trabalho, fui me afeiçoando bastante a ele, e certa vez, quando gritou de dor, o muco escorrendo por seu nariz e as lágrimas por seu rosto, senti por ele uma forma de amor que mais tarde sentiria por meus filhos pequenos.
Com vários anos de trabalho juntos, seu desejo desesperado pelo amor de Z foi se transformando consideravelmente, e um dia o Sr. C me contou um sonho: "Não aconteceu muita coisa no sonho. Era eu, com minha paralisia cerebral, lavando o carro e desfrutando da música alta no rádio do carro".
O sonho foi impactante. Pela primeira vez, o Sr. C não apenas mencionava o fato de ter paralisia cerebral ao narrar o sonho, mas também parecia aceitar isso plenamente como parte de si: "Era eu, com minha paralisia cerebral...". Haveria forma melhor de reconhecer e aceitar a si mesmo, de maneira tão amorosa? Já não era o monstro que um dia sentira ser. No sonho, era um bebê, sendo alegremente banhado pela mãe que cantava e se deleitava com ele, com ele exatamente como ele é. O sonho não era uma imagem maníaca de conseguir o amor de uma mãe inacessível. Fazia parte de sua vida cotidiana: "Não aconteceu muita coisa no sonho".
Não tive a menor inclinação por conversar com o Sr. C sobre minha compreensão de seu sonho. Disse-lhe: "Que sonho maravilhoso" - para uma discussão detalhada desse trabalho clínico, ver Ogden (2010).
Ser capaz de reconhecer-se e aceitar-se ternamente, do jeito que ele é, pode ser considerado a resposta desse paciente (naquele momento) à pergunta: "O que você quer ser quando crescer?". Quer ser ele mesmo.
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Correspondência:
Thomas H. Ogden
306 Laurel Street
San Francisco, ca 94118
thomas.ogdenmd@gmail.com
Recebido em 3/2/2020
Aceito em 18/2/2020
1 Trabalho original publicado em 2019: The Psychoanalytic Quarterly, 88(4),661-684. https://bit. ly/3caulFE
2 Embora esteja além da finalidade deste artigo revisar o trabalho de muitos pensadores analíticos que contribuíram para o desenvolvimento do aspecto ontológico da psicanálise, indico ao leitor os trabalhos de alguns autores: Balint (1992), Berman (2001), Civitarese (2010, 2016), Eshel (2004), Ferro (2011), Gabbard (2009), Greenberg (2016), Grinberg (1980), Grotstein (2000), Laing (1960), Levine ( 2016), Milner (1950/2010), Searles (1986), Semrad e Day (1966), Stern et al. (1998), Sullivan (1962), Will (1968) e Williams (2019).
3 nt: as traduções consultadas para as citações estão indicadas entre colchetes na seção de referências, ao lado das edições consultadas por Ogden.
4 Freud deu instruções explícitas: não usar "sonoras palavras gregas" ao traduzir conceitos psicanalíticos; em vez disso, "permanecer em contato com o modo popular de pensar" (1926/1959, p. 195). Assim, das Ich é mais bem traduzido como "o eu" e das Es como "o isso".
5 Não é propósito deste artigo comparar o que estou chamando de dimensão ontológica da psicanálise ao conjunto de ideias diferentes agrupadas sob o título geral de psicanálise existencial. Grande parte da psicanálise existencial está preocupada com a consciência, a intencionalidade, a liberdade e a responsabilidade, vistas como inextricavelmente associadas (o que se opõe aos conceitos freudianos de tensões inconscientes e limitações da liberdade). Entre os autores que mais contribuíram para a psicanálise existencial estão Ludwig Binswanger, Viktor Frankl, Rollo May, Otto Rank e Jean-Paul Sartre. Tampouco discutirei os fundamentos filosóficos da ontologia e da epistemología. Estou me restringindo a uma ligação geral da primeira com o ser e o tornar-se, e da segunda com o conhecimento e a compreensão.