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Revista Brasileira de Psicanálise

versão impressa ISSN 0486-641X

Rev. bras. psicanál vol.54 no.3 São Paulo jul./set. 2020

 

RESENHA

 

Debates clínicos: volume 1

 

 

Dora Tognolli

Psicanalista. Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Mestre em psicologia social pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP)

Correspondência

 

 

 

Organizadores: Sérgio Telles, Beatriz Teixeira Mendes Coroa e Paula Peron
Editora: Blucher, 2019, 230 p.
Resenhado por: Dora Tognolli

Nem sempre fui psicoterapeuta. Como outros neuropatologistas, fui formado na prática dos diagnósticos locais e do eletrodiagnóstico, e a mim mesmo ainda impressiona singularmente que as histórias clínicas que escrevo possam ser lidas como novelas e, por assim dizer, careçam do cunho austero da cientificidade.

SIGMUND FREUD

Em meados de outubro de 2019, tive o prazer de comparecer ao lançamento do livro Debates clínicos no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo. Guardo na memória fragmentos de uma noite animada, as pessoas chegando aos poucos do trabalho, e muitas surpresas: amigos de convivência, amigos distantes no tempo, de tribos diferentes, colegas, professores, alunos, grande aglomeração de psicanalistas.

Uma experiência que lembra os congressos, nos quais encontros predominam e salas individuais contêm modalidades distintas do mesmo ofício, tomadas em vértices inúmeros. Um clima festivo, curioso, temperado com o desejo de saber e conhecer.

O conteúdo do livro espelha o momento do lançamento: uma proposta de conversa, troca e escuta; um trabalho sofisticado e de qualidade, que atravessou a elaboração e pôde então ser publicado.

Meses depois, volto ao livro, objeto desta resenha, num clima inédito, no sentido mais pleno: isolamento, pandemia, muitas angústias. A ideia é transmitir, numa resenha, a potência de trabalho que identifiquei no projeto. Reconheço que meu ânimo está mudado: mais sinistro, acanhado, tentando encontrar uma brecha para iniciar a escrita e ser fiel ao espírito do livro - testemunhar o ofício desses seres estranhos e "impossíveis", ditos psicanalistas. Apenas uma releitura do livro permitiria que o tônus não se perdesse e eu conseguisse atingir o objetivo, numa espécie de resistência à paralisia e à melancolia em sua face de desânimo que têm nos visitado. Parece que estamos atravessando um "entre parênteses"…

O livro Debates clínicos nos põe, quase 130 anos depois, diante da mesma forma literária abordada na epígrafe desta resenha, extraída dos Estudos sobre a histeria: a narrativa clínica. De certo modo, relembra a dificuldade inerente à escrita clínica, acompanhada de um imenso desejo de escrever, publicar, compartilhar com os colegas nosso trabalho.

Na apresentação do livro, de autoria de um dos organizadores, Sérgio Telles, é possível percorrer o difícil caminho da peculiar escrita clínica, que traz grandes desafios para todos nós. O primeiro desafio consiste em "reproduzir a complexidade polifônica de uma sessão analítica" (p. 7). Essa constatação remete à ideia de trabalho da escrita, que, no caso de uma narrativa clínica, é atravessada pela transferência, ou seja, guarda marcas de uma experiência potente, da qual o analista é testemunha e narrador. Ao escrever e publicar, talvez exista um desejo recôndito, por parte do analista, de recuperar a potência da fala que contém trabalho psíquico.

A questão ética também comparece, de forma complexa, e vem nos encorajar a publicar e a nos tornarmos responsáveis por essa autoria, diante do paciente escolhido, de nosso grupo de referência e do próprio saber psicanalítico, que pede transmissão. Diferentemente de um padre, testemunhamos confissões de uma ordem bastante estranha, que guardam o registro inconsciente. Mas essa dimensão não nos isenta de certo risco e temor de estarmos traindo a confiança de quem nos escolheu para acompanhar a viagem rumo a seu mundo interno.

A introdução do tema não apresenta receitas simples em face de perguntas recorrentes - como publicar, como proteger o paciente, como narrar a transferência, o manejo e o uso dos conceitos metapsicológicos -, mas deixa no ar muitas questões, que cada analista deve trilhar até descobrir seu estilo, ancorado em preceitos éticos.

Citações de textos clássicos de Freud, transcritas na abertura do livro, em que se fala de pacientes famosos, como Dora e o Homem dos Ratos, nos põem dentro dessa linhagem universal e de diversos dilemas e estranhamentos que a prática da psicanálise encerra. Freud, revelando seu espírito científico e aguçado, que até hoje encanta, lembra que nossa matéria-prima não necessariamente reduz-se a segredos, mas apresenta situações triviais, perdidas no tempo, que cada paciente traz como fragmento e nos ajudam a entrar por veredas que recompõem certas histórias perdidas, de dor e fracasso, que causam sofrimento e empobrecimento psíquico. Parece que os humanos não mudaram tanto assim: o homem de 1905/1909 fala conosco, homens de 2020, e nos toca profundamente. Por meio dessas citações, muito bem escolhidas pelos organizadores, nos damos conta do universal que cada relato trivial pode veicular.

Na introdução do livro Sobre a loucura pessoal, Green diz que, diante da pergunta "Por que você escreve?", feita por um analisando, ele responde, sem titubear: "Como testemunho". Em seguida, acrescenta outra resposta: "Escrevo porque não sei fazer outra coisa" (1988, p. 9). Podemos nos fazer a mesma pergunta, usando também a forma negativa: "Por que muitos analistas não escrevem?". A ideia aqui não é responder à questão, mas pôr na mesa o que está em jogo no processo de publicar, de narrar seu ofício, de propor debates clínicos a partir da práxis. Há algo do desejo infantil, em sua face de exibicionismo, de aceitação do grupo, de inserção num coletivo, de estabelecimento de laços sociais, e até de encontro, em outra cena, de uma fratria, que nos acolhe diante do caráter solitário da profissão que escolhemos.

Algumas citações presentes na obra merecem destaque. Referem-se a autores psicanalistas contemporâneos, que se debruçaram sobre as dificuldades e as questões que a escrita clínica traz. Os textos de Gabbard, Tuckett, Britton, bem como a interessante experiência do International Journal of Psychoanalysis, em sua sessão "The analyst at work", parecem ter servido de inspiração, em boa hora, para o projeto do livro.

Para os debates tratados no livro, convidavam-se três analistas, de diversas instituições e escolas, com a seguinte dinâmica: um deles relataria um caso por escrito, e os outros dois comentariam o relato. Procurou-se manter o anonimato dos três colegas, com o intuito de minimizar afinidades eletivas, filiações, barreiras ideológicas etc. e favorecer o trabalho do pensamento psicanalítico. Um dos comentadores formula o seguinte chiste, que faz muito sentido: diz que está diante de um "caso clínico visto às cegas, mas não às surdas" (p. 113) - síntese criativa de como trabalhamos.

Esse é um exercício ousado e corajoso, que nos permite ver cada analista trabalhando e publicando seu modo de pensar. Os participantes receberam alguns textos norteadores de certos preceitos éticos, produzidos por autores que têm trabalhado essa questão mais de perto (como Gabbard e Tuckett). O curioso é que a psicanálise parece não se conformar a protocolos. Algo sempre escapa, revelando a inexorabilidade dos processos inconscientes, que atravessam os pacientes, protagonistas das histórias; os analistas, testemunhos vivos dessa experiência; e os comentadores, que se oferecem como outra escuta, em outra cena, fora do setting analítico - numa condição estrangeira, que pode inserir outras visões -, rumo a um exercício de imaginação, descolado da atividade clássica de supervisão, que faz parte do tripé presente nos modelos consagrados de formação.

A figura do comentador, testemunho a posteriori de uma situação clínica, é destacada durante as exposições. Encontra-se numa posição privilegiada, já que desconhece o paciente e o analista, mas também desafiadora, como se ousasse contar uma piada fora de sua paróquia. Mais um chiste, que revela a dificuldade e a importância de praticar o que Millôr Fernandes tão bem formulou: "Livre pensar é só pensar!".

O exercício que o livro põe em ação nos faz refletir sobre a ética: da escuta, da atenção flutuante e da leitura de um texto, que pode ser revivido com outro olhar, dada a potência que nele habita. Cenas se multiplicando, se deslocando, produzindo novos efeitos, que chegam até nós, leitores, e nos permitem criar nossa própria cena, colocando-nos no lugar do analista, de sua escrita e, num outro momento, do próprio comentador.

Diante de certos estranhamentos ou perturbações que cada texto nos convida a visitar, somos agora, num outro tempo, num outro espaço, comentadores e analistas dessas cenas, as quais nos remetem aos desafios de cada paciente e de cada situação que encontramos pelo caminho.

O livro apresenta seis situações clínicas, densas e complexas, que reavivam a potência de cada encontro clínico. Mais do que isso: reforça o sentido ético e científico da escrita que pode brotar de cada encontro, ajudando-nos a pensar, acompanhados por colegas de grande tato e experiência clínica; a rever conceitos esquecidos ou pouco lidos; enfim, a manter-nos vivos e criativos em nosso cotidiano.

Seria tentador fazer um resumo de cada situação apresentada, mas essa tarefa não daria conta de traduzir a vitalidade do projeto. A opção é ilustrar o texto com alguns exemplos e temas de grande valia dentro de um debate clínico.

Um desses temas passa pelo setting. As seis situações ilustram diferentes formas de encontro analítico: análise de uma sessão semanal, análise de três ou quatro sessões, análises antigas, primeiras entrevistas, reanálises, impasses que não evoluíram para uma situação analítica propriamente dita. Um caleidoscópio que também se faz presente nos consultórios. Surge, num dos comentários, um raciocínio atribuído a Pontalis que merece ser destacado: a metapsicologia nos permitiria "estar no informe, sem nos perdermos no caos" (p. 156).

Nos relatos generosamente oferecidos, é possível perceber que o incômodo pode surgir do paciente que resiste, que se recusa a vir mais do que uma vez por semana, e solicita sessões emergenciais em momentos de grande angústia; ou do paciente que inicia uma segunda análise, bastante aderido ao esquema de alta frequência, sem ao menos se interrogar o sentido dessa adesão fiel ao processo analítico, mesmo quando há mudança de analista.

Outro grande tema, trazido pelos comentadores, diz respeito à transferência que ocorre em cada dupla. São feitas considerações importantes sobre as "transferências de risco", as armadilhas transferenciais, os perigos do uso direto da contratransferência, comunicada ao paciente, e como seus efeitos podem ser monitorados e auscultados.

Nos comentários, delineia-se uma linha de raciocínio que interroga o circuito de angústia e seu endereçamento ao analista - um outro presente- ausente, cujo excesso de presença pode dificultar o trabalho de dissolução da transferência, favorecendo falsas conexões, que afastam o sujeito de seu caminho.

Algumas situações relatadas também se prestam a ilustrar como certas experiências vividas, que retornam dentro da conversa analítica, são depositadas e entregues ao analista, mas não representadas, sugerindo um trabalho paciente de construção de sentidos e estabelecimento de um ritmo próprio e propício à dupla.

Os relatos clínicos expressam ainda o idioma que vai se constituindo em cada dupla. Há exemplos bem significativos, como a brincadeira que o analista faz usando a expressão troca-troca, enfatizando as implicações sexuais das relações humanas, lá fora e aqui dentro, ou seja, o que se passava na dupla que podia abrir novos circuitos de associação. Em outro caso, o analista usa a construção seu tesouro, condensando a problemática da dúvida amorosa, vivida intensamente pelo paciente. A partir dessa linguagem que emerge, assistimos a um momento de criatividade da dupla, que ganha expressividade e torna viva a conversa analítica.

Mais um tema relevante: a temporalidade dentro de um processo analítico, que permite vislumbrar como a história impassada, traumática, pode se atualizar diante de um outro, que se coloca em posição ética de escuta e atenção flutuante.

Fica o convite para a leitura desses debates clínicos, marcados por um sentido ético exemplar, forjado no trabalho de cada analista que concordou em oferecer sua escrita, iluminando veredas importantes do campo psicanalítico.

 

Referências

Green, A. (1988). Sobre a loucura pessoal (A. Pavanelli, Trad.). Imago.         [ Links ]

 

 

Correspondência:
Dora Tognolli
Alameda Rio Negro, 911/712
06539-205 Barueri, SP
Tel.: 11 4191-6936
dorat.g@terra.com.br

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