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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.9 no.3 Ribeirão Preto dez. 2001
Homenagem póstuma
Franco Lo Presti Seminério
Professor Emérito da UHU - Criador e Coordenador do Laboratório de Metacognição. Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Franco Lo Presti Seminério (1923-2003)
O Prof. Seminério submeteu à Comissão Editorial da Sociedade Brasileira de Psicologia o artigo a seguir apresentado, referente a uma conferência proferida na XXX Reunião Anual de Psicologia da SBP. Seu manuscrito encontrava-se em processo final de avaliação por pares, sendo que na semana de seu falecimento, havíamos recebido o parecer do segundo consultor externo. Ambos pareceristas aceitaram o artigo para a publicação, sugerindo tanto reformulações de conteúdo como técnicas. Entretanto, face ao acontecido, o artigo está aqui sendo publicado tal como nos foi submetido, como uma homenagem póstuma da SBP ao Prof. Seminério, sócio honorário desta entidade.
Diretoria e Comissão Editorial da SBP
Junho/2003
Desenvolvimento intelectual através da metacognição uma alternativa para a emancipação do oprimido1
O mundo em que vivemos é um mar de desigualdades. A partir da recente queda do comunismo, assistimos a uma crescente indiferença, autêntica alienação e acomodação passiva da maioria da pessoas, inclusive das vítimas dessa injustiça e dos governantes, que parecem reeditar a fantasia de Leibnitz, ao acreditar que o atual é o melhor dos mundos possíveis. Em razão de uma suposta prosperidade, que atinge apenas a uma pequena parcela dos seres humanos, principalmente no terceiro mundo, proclama-se a ideologia do mercado como a mais sensata forma de viver e conviver. Saqueia-se o planeta, em todos seus recursos naturais, para transformá-los em lucro de uma pequena elite do poder. Incentiva-se uma competição perversa, em detrimento de qualquer perspectiva de colaboração humana. O fundamento ético de qualquer convívio passa para um segundo plano. Tenta-se fixar uma Sittlichkeit hegeliana, uma ética dos costumes estabelecidos pelo conformismo, em detrimento de uma autêntica Moralität (Freitag 1996).
Entre as inúmeras desigualdades sociais que afetam as comunidades especialmente do terceiro mundo, a mais iníqua, por suas conseqüências, é, para nós, a péssima distribuição da inteligência entre os membros das diversas classes. Talvez mais perversa que a péssima distribuição de rendas, face ao caráter replicativo da perpetuação de todas as diferenças. E o próprio eixo do círculo vicioso que mantém a sociedade dividida entre privilegiados e oprimidos.
Neste ponto se destaca o papel e responsabilidade do psicólogo, educador e quantos labutam no campo das ciências humanas. Como bem mostrou Gramsci (1949/1979), as transformações da sociedade dependem fundamentalmente dos intelectuais.
Fique claro que, nesta perspectiva, rejeitamos a idéia de uma competência inatamente diferenciada para definir a inteligência. Muito ao contrário, endossando a ótica de Pierre Levy (1992), admitimos o caráter coletivo desta capacidade, resultante da soma de todas as integrações sociais em que nos inserimos, no passado e presente. Nesta perspectiva, aceitando o inatismo de Chomsky (1980), admitimos que o mesmo processo, específico da espécie humana, seja igual para todos ao nascer, incluindo as regras inatas da gramática gerativa e até mesmo de uma lógica primordial recursiva, mas sem qualquer diferenciação inicial de potencial. Supomos, portanto, que as diferenças possam surgir ao longo da existência de cada um. Nossas pesquisas apontam para um crescimento contínuo deste processo, em qualquer fase da vida, ainda que dentro de uma aceleração decrescente da infância à vida adulta.
Neste caso, a "superdotação" deixaria de ser um "dom dos deuses" para converter-se num processo de aprendizagem social privilegiado, freqüentemente impulsionado por um marcante traço de personalidade: uma acentuada motivação epistêmica, que provocada e ampliada pelo ambiente. Torna-se clara a disparidade de oportunidades, dependendo do contexto sociofamilar de cada um ao nascer. E ainda que alguns consigam superar, através de seu esforço, estas barreiras, a grande maioria sucumbe numa desigualdade que passa a ser um obstáculo para qualquer perspectiva de ascensão social.
O simplismo da solução soviética, ao colocar os oprimidos num topo irreal de poder, simbolizado pela velhas ferramentas do trabalho escravo - a foice e o martelo - esquecia que podemos e devemos esperar e lutar por uma sociedade mais justa, capaz de transferir gradativamente todo trabalho forçado para equipamentos, reservando ao homem o papel de um cérebro apto a comandá-los. Ao contrário, a solução populista da União Soviética reservaria ao proletariado a condenação permanente a um tipo de trabalho penoso.
A tecnologia progride e as condições de trabalho vão-se transformando, cada vez mais, no sentido de colocar o ser humano no domínio de algum segmento da natureza. E uma marcha irreversível, frente à qual impõem-se novas perspectivas de planejamento educacional e social.
Fique claro que, em nosso entender, para chegarmos a uma sociedade igualitária e sem classes, o nivelamento da inteligência e instrução poderá tornar-se um pré-requisito indispensável. Advém a importância do empenho de cada um de nós para contribuirmos de algum modo, por mais modesto que pareça, para a construção desse caminho.
Visando atender a este objetivo, criamos na UFRJ um Laboratório de Metacognição, hoje com mais de 40 colaboradores, no intuito de elaborar e testar técnicas e recursos aptos a promover sob vários ângulos o desenvolvimento intelectual de crianças, priorizando as carentes.
Nossas investigações, nesse sendeiro, iniciaram-se há mais de trinta anos por volta de 1962; a construção do modelo teórico estava praticamente concluída em 1974, servindo de base para a tese de nosso segundo doutorado no Exterior. Em 1976, no XXI Congresso Internacional de Psicologia, em Paris, assistimos a uma comunicação de John Flavell (1976) sobre metacomunicação e, principalmente, metamemória. A significação dessa participação foi essencial para os rumos de nossa pesquisa, permitindo-nos entender e conceituar o eixo de nosso trabalho: a metacognição tornou-se a chave que buscávamos para integrar os vários pressupostos de nosso modelo teórico. As verificações de laboratório subsequentes foram realizadas entre 1978 e 1985 no ISOP da FGV, com apoio da FINEP; o trabalho de aplicação em campo iniciou-se em 1985. Com a extinção do ISOP, conseguimos transferir este projeto, juntamente com os cursos de Doutorado e Mestrado, para a UFRJ, onde passamos a desfrutar do apoio do CNPq e da FAPERJ, até esta data.
Desde o início de nossas indagações, entendemos que não nos caberia proceder à tentativa de aplicar ou elaborar técnicas de qualquer tipo sem uma sólida fundamentação teórica. Como disse Kurt Lewin, "nada é mais prático do que uma boa teoria". Cremos que a superficialidade da concepção teórica de Binet e seus seguidores tenha contribuido para o crescente descrédito do constructo de QI. Da mesma forma, o excessivo indutivismo empiricista das teorias fatorialistas, um autêntico exemplo de psicologismo, visando construir teorias a partir dos fatos, levou essa ótica a um rápido declínio.
Várias concepções teóricas, através de prolongada análise, ofereceram suporte para nossas indagações.
Ao Criticismo de Kant, devemos a origem de nossos questionamentos. Principalmente em relação à distância insuperável entre o mundo tal como nos aparece, o mundo dos fenômenos e a "coisa em si" como Kant costumava enunciá-la: algo que só pode ser pensado - númeno - mas nunca conhecido.
Chomsky (1980), retomando em bases atualizadas e naturalísticas uma concepção de Descartes (1628/1936), nos levou a supor fundamentos inatos para a cognição. Em Piaget (1949), nos escudamos quanto à base lógica dos processos mentais, rejeitando, todavia, três pressupostos por ele defendidos: ausência de pré-formismos, o logicismo excessivo e invadente que subordinava, até o desenvolvimento do imaginário à racionalidade da lógica e o conceito de liberdade e autonomia de qualquer educando. Na visão cibernética de N. Wiener (1948), nos inspiramos para adotar uma concepção informacional da realidade, pela qual tudo que efetivamente existe corresponde a alguma forma de circulação de informação. Devemos a A.Bandura (1967) e sua concepção de modelação - bem distinta da modelagem ou shaping de Skinner-a fundamentação pragmática para nosso trabalho psicopedagógico.
Finalmente, a descoberta da metacognição tornou-se o fio condutor de nossas investigações.
Metacognição: um novo paradigma (Seminério, Anselmé e Chahon, 1999) talvez represente hoje o mais recente campo da psicologia cognitiva.
No entanto ficamos estarrecidos ao registrarmos que este novo rumo da psicologia tenha surgido somente em 1965, graças à tese de Hart, orientada por J. Flavell e defendida na Universidade de Stanford. Era a decoberta do "feeling ofknowing", o sentimento de prazer que acompanha o "insight", algo que não pode mais ser pesquisado em terceira pessoa, como prescrevia o positivismo behaviorista, mas somente em primeira pessoa. Era, portanto, o fim do paradigma behaviorista, que dominara a cena da psicologia cognitiva e aprendizagem desde o começo do século (Watson, 1913/1971).
Nossa admiração advém do fato de se tratar de um comportamento que deveria remontar aos primórdios da humanidade: a capacidade de refletir sobre a própria e alheia reflexão. No entanto só se tornou um campo de estudo teórico e pesquisa científica há apenas três décadas.
Isto recorda curiosamente o personagem de Moliere, que, após uma aula de retórica, descobre que, ao falar, vinha fazendo prosa há cinqüenta anos e não sabia.
Testemunhos escritos desta-competência - que já vinha sendo exercida "sem se saber"- nos mostram exemplos de épocas tão recuadas que chega a parecer estranho o quanto passou despercebida aos primeiros pesquisadores da psicologia científica a existência deste processo de pensar o pensamento, isto é, pensamento recursivo de segunda ordem.
Hoje, podemos considerar metacognitiva a elaboração da primeira gramática de que se tenha notícia, escrita por Panini, no IV séc. A.C. na índia. Ao refletir sobre a fala, conseguiu definir e classificar consoantes, vogais, ditongos, apofonias, redigindo 3996 regras, no intuito de preservar a integridade da língua sánscrita, a língua nobre dos Vedas, que se vinha corrompendo pelo avanço dos prákritos, os dialetos vulgares (J.Nadou,1956, p. 1454).
Também podemos considerar metacognitivos os estudos das escolas de eloqüência de Corace, Tisias e Górgias da Leontini, o sofista criticado por Platão, em virtude de apontar o uso persuasivo, logo anti-ético da linguagem e pensamento. Em Roma, emerge a retórica em 183 A.C. Com Tibério Gracco, seguido de Élio Stilone e seu grande discípulo, Cicero e, no século seguinte, a "Institutio Oratória" de Quintiliano. E, já no III e II séc. A.C., haviam surgido as escolas de Pergamo e Alexandria.
Ao longo da Idade Média, desenvolveram-se reflexões de segunda ordem sobre modo de pensar e falar, através de minuciosos estudos de lógica, gramática e retórica - as conhecidas Artes do Trívio.
Já no começo do séc. XX, aparece o Curso de Linguística Geral de F. de Saussure2 (1916). Em 1922, B. Russell - na Introdução ao Tractatus de L. Wittgenstein - propõe o termo metalinguagem para indicar a construção de uma linguagem de segunda ordem, único recurso para superar as contradições dos paradoxos. Em 1936, Tarski cria a Metamatemática e, em seguida, Carnap (1942), a Metalógica. Tudo visando definir processos, funções variáveis e valores e objetos desses campos formais de conhecimento.
À medida que se ia "descobrindo" esta modalidade de pensamento de segunda ordem, novas verificações apareceriam. Principalmente a Teoria da Teoria e a Teoria da Mente. No primeiro caso, foi possível reconhecer a mais antiga e banal competência de qualquer ser humano: construir ou adquirir crenças, logo elaborar teorias, acerca de qualquer fato, independentemente de sua exatidão, quer para explicar fenômenos da natureza, quer para entender as relações sociais e interpessoais. Neste caso, haveria, em cada um, sua própria Teoria da Mente, uma forma de metacognição espontânea: uma reflexão de segunda ordem, apta a detectar em si e demais a existência de desejos, crenças, sentimentos, memória, independentemente da cultura ou instrução de cada um.
A cada ano, vêm-se multiplicando investigações neste novo segmento da cognição humana. Um recente artigo de J. Flavell (1999) destaca como a partir dos três tipos universais de organização de conhecimentos - de entidades e processos, princípio causal e relações conceituais e crenças - chega-se à formulação da teoria da mente, podendo avaliar sua extensão e funcionamento em determinadas faixas etárias, notadamente em crianças de 2,3 e 4 anos e até no berço. A recente pesquisa de A. Roazzi (1999) aprofunda a análise dessas diferenças em crianças de 4 e 5 anos e as possibilidades de construir falsas crenças perante atores animados e inanimados. Um levantamento detalhado das pesquisas nesta área é também apresentado e discutido por Inchausti de Jou e Sperb (1999).
O que chega a parecer paradoxal é que Premack e Woodruff (1978) - prováveis criadores do termo teoria da mente (cf. Roazzi e Santana, 1999) já haviam descoberto esta teoria da mente nos chimpanzés: da mesma forma que a criança aprende a captar desejos e crenças do adulto, distintos dos seus e elabora estratégias para o manipular, também o chimpanzé consegue formular juízos similares e estratégias correspondentes. Pessoalmente, estenderia a todos os animais domésticos essa capacidade.
Nesta trajetória, podemos reconsiderar teorias do passado, como autênticas precursoras de uma concepção metacognitiva. Principalmente a primeira das três Críticas de Kant (1980), onde o "Ich Denke" que atravessa toda a experiência é avaliado em função dos determinantes transcendentais da cognição. Na Estética Transcendental, a partir das formas a priori espaço e tempo - organizadoras dos fenômenos por nós construídos e percebidos. Na Analítica Transcendental, em termos das categorias, que comandam o entendimento acerca da experiência, destacando para nosso estudo as analogias da substância e causalidade. E o que nos induz a perceber o mundo que nos rodeia como dotado de características que julgamos pertencerem ao mundo, mas, na realidade, são produzidas pelos nossos atos cognitivos. A Dialética Transcendental, finalmente, discute sobre as três Idéias insolúveis para a mente humana: realidade da Alma, Mundo e Deus.
Ponto de partida para nossas investigações foi justamente a problemática fundamental por ele colocada. Nada podemos conhecer, além de nossas percepções, ou seja, dos fenômenos que nossas formas a priori produzem ao se relacionarem com uma realidade inatingível -a coisa em si - pensável, logo númeno, mas inexoravelmente incognoscível. Em termos atuais, poderíamos afirmar que nosso conhecimento fica restrito à nossa leitura de uma realidade em si desconhecida.
Embora Kant se recusasse a recorrer aos dados da experiência para reforçar sua teoria, por acreditar que a experiência nunca explicaria os determinantes que a produzissem, foi justamente através dessa perspectiva "herética" que J. Müller (1971) conseguiu, em 1838, praticamente comprová-la.
Só conseguimos conhecer o que nossos nervos transmitem. Os estímulos que atingem são transformados em influxos de uma corrente talvez isomórfica, mas completamente diferente das "ondas" provenientes do exterior. Hoje, podemos entender que não há sons fora de nós: o universo é mudo. Quando certos gases se deslocam, se suas ondulações estiverem numa faixa entre 16 e 44.000 vibrações por segundo, nosso tímpano vibrará, atingindo a janela oval do ouvido interno, que movimenta o líquido coclear, em pontos diferenciados e, de acordo com as variações dessa freqüência, excita terminais distintos do oitavo par de nervos encefálicos. Estes retransmitem esses influxos a pontos correspondentes da área temporal, onde surge o som. As células internas da cóclea funcionam, portanto, como um teclado; as células ganglionares da área temporal representam as cordas de nosso instrumento auditivo.
Embora o som surja somente dentro de nós e alguns animais portadores desta linguagem psicofisiológica e, apesar de não haver uma realidade correspondente fora de nós, é através da voz e em função de sua fenomenologia tão bem destacada por Derrida (1967/1994) que se criou a cultura e, especialmente, comunicação, ciência e arte.
Analogamente, sabemos, hoje, que as cores são o produto de outra leitura psicofisiológica. Fora de nós há apenas ondas, que, ao atingirem 450 trilhões de vibrações por segundo, excitam, em proporções sistemáticas, os três tipos de cones de nossa retina "acendendo" em nosso cérebro a cor vermelha e sucessivamente as demais do espectro, até o violeta, ao alcançar 750 trilhões de vibrações. Daí em diante, continuam existindo ondas vibratórias (inicialmente ultravioletas) mas a espécie humana não consegue criar mais nenhuma outra cor.
Isto evidencia que a realidade tal como é por nós conhecida, não é a coisa em si, mas apenas nossa leitura, diferente da leitura de outros seres dotados de linguagens distintas para ler e construir sua própria realidade. Exemplificando, não conseguimos sequer imaginar o mundo dos morcegos que "ouvem" só relevos, construindo, assim, uma maquete de seu universo como texturas produzidas pela ida e volta das ondas de seu autêntico e originário radar. Igualmente, não conseguimos imaginar o universo das espessuras olfatorias dos peixes e outros animais que constroem seus nichos ecológicos como mundos específicos. K. Lorenz (1977) comparou os dispositivos cognitivos dos animais às formas a priori responsáveis pela construção do mundo particular de cada espécie.
A luz destes conhecimentos que a cada momento nos descortinam novas vertentes, pareceu-nos fundamental avançar na tentativa de analisar, dentro do atual panorama científico, os recursos cognitivos que possibilitam a experiência humana, ou seja, os fundamentos que Kant postulara como sujeito transcendental, e, invertendo essas bases, Piaget concebeu como sujeito epistêmico.
Se a tentativa kantiana de analisar os processos cognitivos do sujeito transcendental já representava uma busca metacognitiva, nossa indagação tenta ir além nesse caminho buscando investigar, além dos processos, os instrumentos de que nossa natureza é dotada para efetuar essa leitura do incognoscível. Trata-se de decifrar os códigos, ou melhor, as linguagens-código de que somos aparelhados para construir o mundo que nos rodeia, no jogo de fenômenos e significações que criamos a nossa volta: um mundo cuja existência supomos possa reduzir-se a informação circulante.
A busca dessas linguagens morfogenéticas, geradoras de nossa cognição, constituiu o eixo de nossa pesquisa, claramente metacognitiva, ao longo de três décadas.
Ao transferirmos "heréticamente" o problema kantiano para a investigação empírica, verificamos, inicialmente, que há apenas dois canais, em nossa espécie, responsáveis pela representação superior: o visomotor e o audiofonético (Seminário, 1988, 1995). Apesar da multiplicidade de dispositivos sensoriais detectados pela psicofisiologia, é fácil verificar que não pensamos através de uma seqüência de odores ou sabores ou sensações cenestésicas, que só incidentalmente aparecem em nossa representação. Pensamos representando episódios ou discursos em nosso imaginário.
Obviamente, podemos admitir que um canal táctil-olfatório estivesse sendo construido nos animais superiores. No entanto, como mostrou P. Prini (1978), esse canal muito útil para assegurar a cognição dos mamíferos anteriores aos primatas, dada sua postura, teria entrado em recesso quando a postura ereta nas árvores viesse a estabelecer o primado dos órgãos da distância: visão e audição.
Ao longo desses dois canais, visomotor e audiofonético, devem ter emergido as linguagens-código responsáveis por nossa cognição atual, algumas até anteriores ao processo de hominização.
Nossas investigações de laboratório e campo nos levaram e admitir que essa construção possa ter ocorrido, na filogênese, através de quatro etapas.
Em primeiro lugar, entendemos que a hipótese gestaltista, pela qual não captamos estímulos isoladamente mas somente organizados em estruturas, possa ser a mais elementar linguagem propriamente psicológica em qualquer ser vivo. Neste caso, organizamos qualquer estímulo em figuras visuais ou cinestésicas, no canal visomotor e figuras sonoras, rítmicas e fonéticas, no canal audiofonético.
Essas estruturas, todavia, nunca seriam captadas sem sentido, o que nos indica a presença, testada em experimentos de laboratório de uma segunda linguagem inata, responsável pelo acoplamento automático de significado atribuído a qualquer forma percebida.
Definimos essa segunda linguagem inata como designação, apoiando-nos parcialmente em Frege (1971) eLinsky (1974).
Apenas a sintaxe, isto é, o elo combinatório do acoplamento supomos ser inato na espécie humana. Os paradigmas envolvendo as propriedades projetadas na forma percebida e esquemas de ação programados a partir dessa percepção, que completam a significação envolvida no ato de designar, seriam aprendidos, exceto designações decorrentes da mímica (quer eliciada, quer percebida). Estas são evidentemente inatas também no homem. Obviamente, nos animais, estes e outros paradigmas inatos na área da designação representariam as diversas formas do padrão fixo tal como foi definido pela Etologia.
Até um inseto, ao deparar com uma forma, poderá imediatamente designá-la como alimento, sexo ou perigo, ou seja atribuir-lhe uma significação. Um experimento da equipe de Tinbergen (1965), comprova, em nosso entender, essa hipótese.
Admitir a existência de significação, conceitochave da Fenomenologia, onde sequer pode haver consciência, pode parecer uma inconsistência. No entanto duas objeções devem ser colocadas. Em primeiro lugar, admitimos que a significação tal como postulada por Husserl (1913/1950) possa ser entendida como o pináculo de um processo em ascensão. Seria, portanto, uma tomada de consciência, metacognitiva, de uma potência de significado presente, sob inúmeras variantes, desde os primórdios da vida ou até de qualquer tipo de ser, dentro da visão de N. Wiener (op.cit). Em segundo lugar, a significação, assim entendida, constitui um conceito alternativo, apto a substituir a noção de associação, rígida e mecânica, bem mais descritiva que explicativa.
Nesta segunda Linguagem - da designação os aspectos mais elementares da experiência passam a ser codificados e estocados. Por tal razão consideramos esse armazenamento como a origem de qualquer vocabulário, inicialmente visomotor e só posteriormente audiofonético.
Nosso trabalho de campo vem-nos evidenciando que a ampliação dessa estocagem, através de reflexões metacognitivas, expande o universo das significações da criança, multiplicado seu vocabulário, inicialmente como soma dos significados atribuídos a cada elemento da experiência, no âmbito visomotor, levando em seguida a adquirir palavras - audiofonéticas - aptas a identificá-los. Neste canal as formas estruturadas foneticamente tornam-se fonológicas, dando lugar às palavras.
A designação envolve, em termos reais ou potenciais, esquemas de ação correspondentes às metas evocadas pelo significado. O que equivale à primeira modalidade de pré-causalidade definida por Piaget (1963a): eficácia vinculada aos próprios atos corporais e respectiva percepção.
Se a percepção transcorre codificada nas duas primeiras linguagens-código aqui discutidas, a partir de uma fase próxima da hominização, deve ter surgido uma nova forma de representação mental aparentemente derivada da dublagem da percepção e memória. Sartre, (1943, 1986), defende esta concepção, basicamente realista, pela qual, na imaginação, embora aflorem significações fenomenologicamente novas, os objetos passam a ser "nadificados", perdendo efetivamente sua consistência. Em nosso entender, o imaginário, na espécie humana, cobre efetivamente a totalidade do pensamento, pois qualquer nosso ato é constantemente programado numa percepção imaginária, antecipatória ou recordado numa evocação mediata ou imediata. A concepção de pensamento-imaginário, aqui adotada, aproxima-se, sob este aspecto, à perspectiva da consciência de tempo imanente de Husserl (1913/1950).
Nossas observações, ao longo do trabalho experimental, permitem-nos postular uma posição de destaque para esta terceira linguagem-código da espécie humana - o imaginário.
Não se trataria apenas, para nós, da fantasia que se sobrepõe ao pensamento: seria o próprio pensamento em seu fluxo incessante, que absorve a cada instante todo e qualquer percepto, enquadrando-o em sua trajetória. Neste caso, como já afirmamos (Seminério e cois., 1997):
"Se admitimos que a vida imaginária seja, em seu fluxo permanente no pensamento, a existência real de cada ser humano, toma-se claro que o seu desenvolvimento é o que realimenta o próprio núcleo da estrutura psicológica."
O eixo sintagmático desta terceira linguagem envolveria não apenas a pré-causalidade da eficácia dos próprios atos, como na designação, mas a causalidade ampla englobando também o que Piaget (1971) denominou "fenomenismo". O nexo inato da causalidade torna-se, para nossa hipótese, o que possibilita, neste terceiro nível, do imaginário à construção do episódio no canal visomotor, da frase e do discurso no canal audiofonético. Fica claro que esta causalidade não parte dos fatos percebidos, parte de nós que, ao elaborarmos episódios ou frases, projetamos a causalidade.
Finalmente, o que consideramos como pináculo de toda a construção filogenética da espécie humana seria a quarta linguagem-código, capaz de monitorar metacognitivamente todas as anteriores. Seu nexo inato entendemos ser a competência recursiva apta a criar e incorporar regras bem como dublar e reiterar qualquer conduta, física ou mental. A passagem admitida por Piaget (1963b) da causalidade empírica para a implicação formal nos levou a admitir ser a primeira o eixo da terceira linguagem, enquanto a segunda seria sua dublagem no plano metacognitivo da quarta linguagem, responsável quer pela lógica, como virtualização, no canal visomotor, quer pela gramática gerativa, no canal audiofonético
Um prolongado trabalho de laboratório e campo permitiu-nos corroborar e ajustar as bases deste modelo teórico, cuja meta, em termos de praxis, era a busca de um caminho eficiente para promover o desenvolvimento intelectual, notadamente em crianças carentes. Visávamos inicialmente ampliar o código verbal, recurso essencial para dominar situações sociais, como Bernstein tentou provar, através do vocabulário (designação); isto é, do código ampliado e não mais restrito. Tentamos e conseguimos estender no tempo o eixo sintagmático do imaginário (percepção de causalidade retrospectiva e prospectiva) e o campo semântico dos respectivos paradigmas. Finalmente, obtivemos êxito ao desenvolver uma lógica operatória em crianças pré-operatórias. Este último aspecto foi nosso ponto de partida. Defrontamo-nos imediatamente em aberta oposição frente à postura pedagógica de Piaget (1971), para o qual não seria possível "ensinar" lógica operatória. Sua posição havia levado ao extremo a tese da suposta "liberdade" do educando suscitada pela Escola Nova. Evidentemente, não seria possível, dentro da postura autoritária da escola "receptiva", obter êxito nesta direção. No entanto supomos que o princípio de liberdade concebido pelo construtivismo de Piaget envolva um equívoco: provavelmente ninguém se constrói: todos somos construídos, a cada momento, em qualquer idade, por um processo de aprendizagem social (a modelação de Bandura).
Ao longo de vários anos, desenvolvemos uma técnica específica para promover o desenvolvimento cognitivo, partindo da lógica operatória em crianças.
Percebemos que o erro da escola tradicional era o ensinar em termos de resultados irrefletidamente. O essencial seria fornecer regras gerativas, aptas a permitir a dedução de novas regras, através de uma situação dialógica em que o adulto deveria empenhar-se a mostrar o significado de cada regra, transmitida através de um modelo (ou metamodelo). Testamos, assim, pacientemente, a transmissão da regra da diferença que permite à criança seriar; da semelhança que permite classificar, da inclusão, da intercessão e conseguimos, reiteradamente, resultados estatisticamente significativos. Num dos primeiros experimentos, um grupo de crianças faveladas e pré-operatórias conseguiu equiparar-se, praticamente, ao grupo de controle correspondente de uma escola de elite (Seminério, 1991).
A elaboração desta técnica, além da modelação, inspirou-se na técnica da terapia psicanalítica que leva o paciente a elaborar, através da interpretação, suas verdades internas. Em nosso caso, o conteúdo era cognitivo e não emocional; a elaboração do raciocínio infantil seria provocada metacognitivamente pelo diálogo. Passamos a denominar esta técnica elaboração dirigida (Seminério, 1987). Além dos resultados significativos já obtidos no desenvolvimento da lógica operatória, vocabulário e imaginário em crianças, estamos, atualmente, criando e testando técnicas metacognitivas para alfabetização, ensino da matemática fundamental e conhecimentos gerais, bem como desenvolvimento de operações formais em adultos e estudo da designação em deficientes visuais.
Nossa expectativa é a de darmos alguma contribuição no caminho progressivo que deverá, a médio prazo, modificar radicalmente a sociedade. Hoje, a derrocada da União Soviética, que não chegou a implantar um autêntico comunismo, por se ter desviado num nazismo disfarçado, leva muitos a supor que o deus do mercado tenha sido entronizado para sempre. Repete-se a situação ocorrida em 1815, quando a queda de Napoleão levara muitos a supor que os ideais democráticos houvessem sido ultrapassados e a nobreza houvesse voltado para sempre. Stendhal o ilustra através de um seu personagem: "il n'ya que des gentilhommes, le reste cfest tout salarié, tout domestique " (só há fidalgos, o resto é tudo assalariado, tudo doméstico). Em menos de trinta anos, os ideais democráticos, que pareciam sufocados para sempre, ressurgiram. Hoje, os intelectuais voltaram a ser assalariados do grande capital, mas os ideais de igualdade voltarão a se impor: é uma questão de tempo. Acima da suposta prosperidade de hoje, uma exigência ética deverá impor-se.
A emancipação progressiva de todos os seres humanos é uma marcha lenta, mas inexorável: o que o mundo pode oferecer é de todos, como é de todos a obrigação de contribuir para uma sociedade igualitária num clima de cooperação, compreensão e justiça.
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Recebido em: 13/11/2000
Aceito em: 07/07/2003
1. Conferência apresentada na XXX Reunião Anual de Psicologia da Sociedade Brasileira de Psicologia. Brasilia DF. outubro de 2000
2. Na realidade, a autoria material deste trabalho é de Bally, C. e Séchehay e, dois discípulos que, ao verificarem que o mestre, falecido em 1913, nada havia publicado sobre suas pesquisas, reuniram seus apontamentos de classe para publicação, em nome do mestre, a fim de evitar o desaparecimento irrecuperável desse trabalho