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Psychê
versão impressa ISSN 1415-1138
Psychê v.9 n.15 São Paulo jun. 2005
ARTIGOS
Reflexões sobre o tempo: instrumentos para uma viagem pelo ciclo vital
Reflections on time: instruments for a travel through the vital cycle
Maria Inês Garcia de Freitas BittencourtI
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Psicologia
RESUMO
O trabalho destaca a importância da experiência do tempo no processo de aquisição de um sentido para a vida, em articulação com o espaço e a relação com os outros, dimensões que também definem o contexto da experiência humana. A atribuição de sentido em cada momento do ciclo vital se dá na dimensão do tempo vivido, permitindo que no diálogo do indivíduo com seu ambiente sejam construídos, em indissociável inter-relação, os fundamentos de uma vida humana bem sucedida: a identidade própria, a nomeação do mundo e a ética.
Unitermos: Tempo, Ciclo vital, Sentido, Experiência, Criatividade.
ABSTRACT
This work analyses the importance of experiencing time in the process of acquisition of meaning for individual life, in articulation with other dimensions of the context of human life, like space and relationship with the other ones. The attribution of sense in every moment of the vital cycle lays in the dimension of the time lived, allowing that the foundations of a meaningful human life can be built, through the individual’s dialogue with his environment,: self identity, the nomination of the world and ethics.
Keywords: Time, Life cycle, Meaning, Experience, Creativity.
Introdução
Na epígrafe que introduz seu livro de memórias, muito apropriadamente intitulado Viver para contar , Gabriel Garcia Márquez (2003) remete-nos à reflexão sobre a experiência do tempo na construção dos significados que cada um pode atribuir à própria vida: “a vida não é o que a gente viveu, mas como a gente viveu, e como recorda para contá-la”.
A busca de respostas para a grande questão humana do “ser ou não ser” esbarra hoje em uma dificuldade específica, que se refere à tendência em subordinar a existência primordialmente à função, em detrimento do significado. A experiência contemporânea do tempo parece caracterizada por dois aspectos marcantes: ela tende a ser reduzida, por um lado, a um tipo de simbolização objetiva e desvitalizada, que estabelecendo a equivalência “o tempo é dinheiro”, leva o homem a tornar-se escravo do tempo de fazer , e a perder a oportunidade de conhecer melhor o tempo de viver, o tempo de experiência da autenticidade e da criação. Por outro lado, a hipertrofia dos valores da aparência e da satisfação absoluta parece levar a uma confusão da noção de tempo com a de eternidade, com a substituição da realidade do tempo por ilusões que buscam mascarar as dores que necessariamente nela se incluem, e que se referem à consciência da falta, dos limites, da morte.
Como já prenunciava há quase um século o famoso personagem chapliniano transformado em máquina , os Tempos Pós-Modernos levaram-nos a experimentar em ampla escala a despersonalização e a desumanização nas relações com nós mesmos e com os outros. A grande dificuldade de ser que as pessoas encontram no mundo contemporâneo, em contraste com uma ênfase constante na valorização da condição do sujeito individual, cria condições para o surgimento de uma paradoxal destituição subjetiva, que se revela por meio de múltiplos sintomas, como as falências psíquicas, a violência, o mal-estar na cultura e a emergência de formas de exploração em grande escala.
Na relação com o tempo, o indivíduo contemporâneo não mais conta com as formas de segurança de que dispunham seus antepassados, que podiam se ancorar em sistemas baseados na crença em verdades fundamentais e duradouras, que de algum modo recompensavam, mesmo que de forma ilusória, os que neles se enquadravam. Zygmunt Bauman (1998) lembra-nos a esse respeito que na modernidade tradicional a liberdade individual era sacrificada em prol do sentimento de segurança. O mal-estar de hoje – fruto da descrença em fundamentos inquestionáveis e objetivos finais determinados por um lado, e por outro do desejo excessivo de liberdade individual – remete a um tipo de ameaça existencial absolutamente radical: a da queda no vazio. Embora sabendo que nenhuma experiência cultural poderá dar conta da dor que decorre da consciência da realidade humana do ser para a morte , sugerimos uma reflexão sobre uma simbolização carregada de afetividade como forma de resposta a essa ameaça – questão que nos remete à existência no tempo vivido.
O tempo vivido
Em uma cultura que reforça constantemente a idéia de que o único tempo a ser valorizado é aquele que pode se converter em dinheiro, como encontrar os valores de construção da vida, como conciliar a angústia frente à realidade da morte? Francimar Arruda (1999, p. 83) sugere que a idéia de recuperação da dimensão sadia e digna da vida estaria “no retorno a uma magia do tempo”. Isto implica pensar no tempo como Kairós, que diferentemente do tempo objetivo da produção, é carregado da idéia de manifestação da verdade viva. Acentuando a importância da questão do Ser e do Tempo, Heidegger (1927) resgatou este sentido de verdade existencial como Aletheia, manifestação do ser em seu desvelamento, sua descoberta. Transcendendo Chronos, o tempo objetivado da modernidade, o Kairós é o tempo subjetivo da experiência do fluir da vida, experimentada como energia vital espontânea, como ilustram as metáforas da “corrente de consciência” de William James e do “élan vital” de Bergson. É também o tempo da experiência compartilhada com o outro, tempo favorável, oportuno, que cria os significados da vida, como tão bem captou Marcel Proust: “Uma hora não é uma hora, é um vaso cheio de perfumes, sons, projetos e climas”.
Na perspectiva existencial, o tempo é o horizonte da compreensão do ser. Embora o homem crie o tempo, ele não o determina, encontrando-se aí a maior das suas contradições: a tensão entre permanência e impermanência, poder e impotência, vida e morte. Os mitos do tempo, organizados em ciclos, falam em um Eterno Retorno que passa da degradação periódica do mundo à regeneração, parecendo ter como função superar a dor e a morte e assegurar o acesso à felicidade (Eliade, 1969). O tempo social, organizado em calendários, nas sociedades mais complexas torna-se indispensável à regulamentação das relações entre as pessoas: estipulação dos dias de férias, duração de um contrato. Podemos, no entanto, reencontrar nesse tempo histórico algumas datas, periodicamente celebradas, que denotam que o homem moderno conserva a necessidade de reviver a experiência de um tempo sagrado.
Monique Augras (1979) lembra que o tempo individual, construído tanto a partir do tempo biológico quanto do tempo social, não pode ser pensado isoladamente das dimensões espaciais e relacionais do ser-no-mundo. Assim, o mundo circundante (o Umwelt descrito por Binswanger, compartilhado pelo homem e pelos animais), que inclui os aspectos fisiológicos, é carregado da herança genética do passado biológico. O mundo da coexistência social, com as tradições e instituições que o indivíduo é instado a receber, seria principalmente o mundo do presente, que é o tempo da ação imediata. No plano do sujeito, o conceito de horizonte existencial sugere a interpenetração do passado, do presente e do futuro, de modo que a significação do passado e do presente pode ser modificada pelo sentido da trajetória do ser. A esfera do futuro, por outro lado, confere à existência uma angustiante ambigüidade, já que o futuro é o lugar dos sonhos, dos projetos, mas também da morte. O tempo construído pelo homem aparece então como sendo, além de um parâmetro que ordena suas ações, uma tentativa de negar a morte.
Para Heidegger (1927), o Dasein (literalmente o ser-aí, ou presença) constitui-se no mundo, e para que se constitua autenticamente precisa realizar um movimento de abertura para a experiência. Por meio de projetos, o Dasein insere-se nos diversos âmbitos do mundo: ôntico, histórico, relacional. O fator essencial de caracterização do Dasein é o tempo. Assim, à categoria do ser corresponde o tempo, e à categoria da presença (que é o ser se estruturando como ser-no-mundo), a temporalidade. Esta permite que o passado se manifeste como força atuante na atualidade. O Augenblick, ou instante, é o conjunto de tudo aquilo que se concentra na dinâmica de uma unidade, que inclui as dimensões do passado e do porvir. A experiência do vigor de ter sido, passado recuperado no presente e integrado no futuro por meio do projeto, é vivida na repetição, termo que carrega o sentido de buscar com uma conotação de renovação. O sentido ontológico da presença guia o ser projetado para o futuro. Não se restringe a objetivos específicos a serem alcançados mas, transcendendo-os, constitui “a própria presença que se compreende”. O sentido é um eixo que norteia o ser em seu percurso existencial.
Este percurso inclui ainda dois aspectos que se contrapõem, complementando-se: a angústia e a esperança. A angústia decorre da confrontação da presença com sua própria estranheza, com o sem sentido que não encontra possibilidades de resposta no mundo, com a certeza da morte no fim do percurso. Porém, diferente do temor, do tédio e da tristeza que paralisam o movimento de busca, ela surge do porvir do movimento de abertura da presença, é característica do ser autêntico consciente de sua finitude e é produtora de movimento que conduz à ação possível. A esperança, fundada no vigor de ter sido, é a possibilidade de admitir novas saídas para o vivido, agindo na direção de outras possibilidades.
Maurice Merleau-Ponty (1945) enriquece as contribuições sobre a experiência do ser no tempo, situando a partir da perspectiva fenomenológica a compreensão da constituição do eu na dimensão espaço-temporal e na relação com o outro. Nessa perspectiva o sujeito é pensado como projeto do mundo, como campo, temporalidade e coesão de uma vida.
O estudo sobre a temporalidade constitui uma das partes mais importantes da Fenomenologia da percepção, e nos apresenta uma citação de Claudel que condensa os múltiplos significados da afirmação “o tempo é o sentido da vida”, como só um poeta pode fazê-lo (Merleau- Ponty, 1945, p. 469): “ O tempo é o sentido da vida (sentido: como dizemos o sentido de um córrego, o sentido de uma frase, o sentido de um tecido, o sentido do olfato)”.1
A temporalidade, como “forma do sentido íntimo do ser”, refere-se portanto a: direção, sensação, significado. Henri Bergson (1948) já havia acentuado a qualidade de duração interior como trama verdadeira da vida. Sujeito e tempo comunicam-se de dentro, e a temporalidade é uma necessidade interior, constituída pela consciência (concepção que inverte o conceito clássico do tempo como um dado a priori da consciência). A continuidade do tempo é apontada como fenômeno essencial: o presente não se encontra fechado em si mesmo, mas transcende-se na direção tanto de um passado quanto de um futuro, que só existem porque uma subjetividade introduz essas perspectivas, estendendo-se em sua direção. O tempo torna-se o próprio sentido da nossa vida.
Levando em conta a impossibilidade da realização de uma vida humana sem a referência a um outro (desde as origens da construção da subjetividade até a vivência radical da alteridade na questão da morte), completamos essa afirmação acrescentando que o outro é também o sentido do tempo. A construção de sentido da vida só pode se dar na interação com a alteridade. Como diz Merleau-Ponty, “ser uma experiência significa comunicar-se internamente com o mundo, com o corpo e com os outros...” (1945, p. 113).
Espelhos, mapas e bússolas: o ambiente, os outros e o sentido do tempo
Colocando em evidência o enfoque da vida humana como um processo de desenvolvimento ininterrupto, que vai do nascimento à morte, a psicologia contemporânea enfatiza tanto a continuidade temporal em que se articulam as diferentes etapas da vida, quanto a importância das condições ambientais encontradas em todo momento. Em cada uma de suas etapas nossa vida suscita uma questão existencial fundamental – uma “crise psicossocial”, nas palavras de Erikson (1989). De acordo com esse autor, cada crise específica de uma etapa só poderá ser resolvida se as questões de cada uma das etapas anteriores tiverem sido adequadamente elaboradas. Erikson destaca que o fundamento de tudo é a aquisição do sentimento da “confiança”, sobrepujando a “desconfiança” no conflito que marca as primeiras relações do bebê com seu ambiente, e que constitui a condição essencial para uma passagem bem sucedida pela etapa seguinte, na qual surgem as questões da “autonomia” e da “vergonha”. Em seguida e sucessivamente, ao longo do tempo, serão vivenciados e elaborados, com sucesso maior ou menor, os conflitos entre “iniciativa e culpa”, “competência e inferioridade”, “identidade e confusão identitária”, “intimidade e isolamento”, “generatividade e estagnação”, “integridade pessoal e desespero”.
A idéia de que a confiança é condição imprescindível para todo desenvolvimento encontra-se também no cerne da idéia de “viver criativo”, desenvolvida por Winnicott. Este conceito está vinculado a uma teoria que postula a necessidade de uma experiência concreta e contínua de relação com um ambiente facilitador (1971, p. 99-103) no início da vida, para que o desamparo seja ultrapassado e o bebê (que “ não existe”) possa gradativamente transformar-se em “um ser que experimenta a si mesmo”. A aquisição do sentido de realidade da experiência e a indagação sobre o sentido do ser na existência humana são questões que podem ser destacadas no diálogo entre as idéias de Winnicott e as de Heidegger, em que se delineia a questão de uma modulação da relação com o vazio pelo enraizamento no mundo, permitindo a construção de uma história (Gambini,1996). Sendo a descoberta, como já dito acima, o processo em que o Dasein se revela, somente se puder ser acolhido, reconhecido e cuidado em sua relação constitutiva com o vazio, que o bebê humano adquire o sentido de realidade da existência.
Nessa relação de acolhimento a experiência de mutualidade por meio do olhar ou de outras trocas entre corpos vivos é uma “necessidade urgente”. É na mente da mãe, como mostra, que se organiza inicialmente o caos das sensações e emoções presentes no bebê, de modo que possam ser devolvidas, em reflexo já metabolizado pela “rêverie” materna (Bion,1966), em um conjunto capaz de oferecer ao bebê, ao longo do tempo, uma representação psíquica de si mesmo. Imerso na ilusão, é primeiro por meio da mãe que o bebê acredita em sua capacidade de criação, para poder posteriormente realizar com êxito a dura transição para a realidade – processo que implica uma continuação da capacidade criativa. A experiência da criatividade é definida por Winnicott (1975, p. 95) como uma sensação de que “a vida é digna de ser vivida”.
Esta forma de subjetividade criativa, capaz de abrir-se ao mundo e de inventar a si mesma, implica um pressuposto: a narração da sua história, que abre a possibilidade de mapear e orientar a vida individual, conferindo-lhe seu sentido.
O antigo conselho do oráculo de Delfos “conhece a ti mesmo” sempre foi um imperativo central da reflexão sobre a existência humana, implicando uma característica essencial: a possibilidade de re-criação da vida na dimensão simbólica. Originária da angústia, ligada ao sentimento de estranheza frente ao mundo, à alteridade e a si mesmo, a re-criação simbólica corresponde à necessidade de compreensão e integração desses aspectos em um processo paradoxal: é estabelecendo relações irreais com o mundo que se torna possível a adaptação à realidade. É, portanto, no aspecto simbólico da linguagem, instrumento de criação do mundo e mediação, e nas condições de sua produção, que iremos nos deter.
Monique Augras, inspirando-se em Hegel, pontua que a linguagem, ultrapassando sua função de comunicação, é também a pura revelação de um ente que existe em si e para os outros, como singular e idêntico, como um feixe de contrários, cuja síntese é constantemente destruída: “a linguagem contém o Eu em sua pureza; apenas ela enuncia o Eu, o próprio Eu” (1979, p. 76).
O que é apontado aqui é o uso da linguagem como tradutora e instauradora da consciência do próprio movimento da vida. Tentar compreender a existência implica, portanto, revelar esse movimento. Não se trata apenas de descrever um mundo (ou um Eu) de maneira objetiva, mas de inventar narrativas capazes de criar alguns significados organizadores do caos de contradições, estranhezas e conflitos inerentes à vida. Sair da imobilidade do espaço da descrição e entrar no espaço/tempo da narração constitui uma condição fundamental para o encontro do Eu com seu próprio mundo, na criação, ao longo do tempo, do ser pela sua expressão.
A experiência de hoje tem características bem diferentes das formas de experiência do mundo antigo, cujas narrativas passavam de pessoa para pessoa sem modificar-se, durante longos períodos de tempo, inseridas em um ambiente social que cumpria as funções de apoio necessárias ao desenvolvimento de uma forma de subjetividade regida por valores não individualistas. Nesse contexto, como tão sensivelmente expressou Walter Benjamin (1996, p. 200), o sábio narrador das histórias tradicionais, capaz de “tecer conselhos na substância viva da existência”, transmitia as chaves para que cada um significasse sua própria história, respeitando os valores coletivos e com eles se identificando. A possibilidade de dar sentido a uma existência não desapareceu, contudo, pelo fato das condições da vida terem mudado, mas certamente passou a assumir novas e variadas formas, em que continua se destacando a necessidade do diálogo com um interlocutor. Este participante fundamental, como espelho integrador do ser, embora tenha adquirido hoje (comparativamente ao antigo narrador) formas diferentes na realização de sua função, deve continuar, porém, a fornecer as provisões ambientais suficientes e necessárias para o desenvolvimento do potencial criativo individual, que hoje confere sentido e valor à existência; só assim podem ser mantidas as condições para que as histórias individuais continuem sendo narradas, e vidas adquiram sentido na re-criação pela linguagem.
Em uma visão contemporânea poderíamos considerar como sucessores do “narrador” tradicional não apenas a mãe, mas todas as agências de socialização da criança em seus diferentes momentos de desenvolvimento, e em geral todos os recursos secundários de integração que a cultura pode nos oferecer ao longo da vida, como apoios/espelhos capazes de potencializar o uso da capacidade de criação, em uma conexão entre o tempo vivido e o desenvolvimento do espaço simbólico.
De acordo com Winnicott, a linguagem como expressão e veículo da experiência humana situa-se em uma dimensão entre o mundo interno e o mundo externo, recriando a vida: “quando se fala em homem, fala-se dele juntamente com a soma de suas experiências culturais. O todo forma uma unidade” (1975, p. 137). O sentido de “cultura”, continua Winnicott, refere-se ao que pertence ao fundo comum da humanidade, para o qual todos podemos contribuir e do qual podemos usufruir, à condição imprescindível de existir “um lugar para guardarmos o que encontramos”, de modo a construirmos o acervo de memórias que dá sentido ao nosso percurso pela vida por meio da função simbólica.
Foi tentando localizar esse lugar que Winnicott (1975, p. 133-143) chegou à formulação do conceito de uma terceira área da experiência humana, que se expande no viver criativo e em toda a vida cultural do homem. Em um breve texto, o autor nos conta como muito antes de conhecer a psicanálise foi marcado pelo mistério das palavras do poeta indiano Rabindranath Tagore: “na praia do mar de mundos sem fim, crianças brincam”.
Winnicott relaciona seu sentimento de estranheza e curiosidade com a motivação para empreender o percurso teórico, que partindo da pergunta “onde se encontra a brincadeira?”, levou-o a formular o conceito de espaço potencial. O espaço imaginário existente entre o indivíduo e o meio ambiente, área de experiência onde ocorre o encontro do real e do irreal, é inicialmente situado entre o bebê e a mãe, estendendo-se posteriormente para o espaço entre o indivíduo e a sociedade ou o mundo, mas sempre dependerá da experiência que conduz à confiança. O espaço potencial “pode ser visto como sagrado para o indivíduo, porque é aí que este experimenta o viver criativo” (p. 142).
A importância do espaço potencial como lugar de interseção entre o real e o irreal, aparece como primordial nessa observação feita por Gaston Bachelard, que tanto contribui para esclarecer a respeito da função das articulações da vida imaginária com o real, e portanto com o tempo:
A imaginação, em suas ações vivas, nos desliga ao mesmo tempo do passado e da realidade. Aponta para o futuro. À função do real, instruída pelo passado, tal como é destacada pela psicologia clássica, é preciso juntar uma função do irreal também positiva (s/data, p. 17).
Nesse espaço de experiência inclui-se a aceitação da idéia do sofrimento e da morte, que se articula com o reconhecimento da realidade externa. Mas ele é também, paradoxalmente, o continente da possibilidade de dar um sentido à vida pela criação simbólica, experiência que nos permite fazer face ao “insulto do princípio de realidade” (Winnicott, 1975). A perspectiva de futuro aparece assim em toda sua ambigüidade de morte e realização de projeto.
Conclusão
Este breve percurso pelo tema do Tempo procurou destacar a importância de se resgatar a vivência do Kairós, o tempo mágico da criação e do afeto, como forma de responder às pressões da vida contemporânea, que tende a reduzir o tempo às atividades alienantes da produção e/ou do consumo.
Sabemos que este tema levanta questões complexas, como a ambigüidade da ligação irreversível entre criação e morte, ou a condição paradoxal da verdadeira alegria de viver, e pode dar margem a múltiplos desdobramentos. Lembramos que o próprio espaço potencial adquire seus contornos na percepção de uma separação dolorosa, que institui os limites da realidade do mundo e da própria vida. O viver criativo proposto por Winnicott implica sujeição ao princípio de realidade, com a aceitação do sofrimento implícito no reconhecimento de seus limites. Mas inclui também, no ato da apropriação simbólica do mundo, o acesso, pela via da ilusão, às formas possíveis da alegria de viver, para um sujeito não apenas assujeitado a seu destino, mas também criador de sentido para sua vida. A apropriação simbólica, forma de colocar em linguagem os desejos e os sentimentos, e de realizá-los em forma de metafóricas narrativas é o veículo, que pelo dizer associado ao fazer, abre possibilidades de realização e superação pelo ato de criação, que aparece assim em sua dimensão trágica.
A aceitação dos limites inerentes ao princípio de realidade é hoje, porém, freqüentemente recusada, em prol da crença ilusória nas promessas, que buscando transformar concretamente a realidade em sonho, ou o sonho em realidade, são vendidas pela cultura do consumo.
Optamos, em função disso, por colocar em destaque a importância da vivência de um ambiente provedor de condições suficientes de confiança e segurança nas trocas interpessoais e culturais, para que possa se dar o desenvolvimento, ao longo do tempo, do sentimento de uma vida “digna de ser vivida” em um contexto de limites e aberturas.
No que se refere às possibilidades de resgatar este sentimento na vida contemporânea, fechamos com uma referência a Michel de Certeau (1990), autor que nos lembra que as pessoas, ao contrário do que se tende a acreditar, não são necessariamente obedientes nem passivas, e podem também praticar alguma criatividade, mesmo que de modo clandestino, de forma a tentar viver da melhor maneira possível as injustiças da ordem social e a violência das coisas forçadas. Para Certeau, mecanismos de resistência sempre foram exercidos ao longo do tempo, diferindo apenas quanto às formas específicas que assumem de acordo com cada contexto sócio-histórico. A distribuição desigual de forças é uma constante na história, e as práticas de subversão sempre foram o recurso dos mais fracos. Na cultura ordinária, na própria rede das determinações institucionais, é possível insinuar-se um estilo peculiar de trocas, de invenções técnicas e de resistência moral, de modo que a ordem seja “enganada” pelas artimanhas de uma arte.
Na medida em que um ambiente integrador se define por um olhar de aceitação, por cuidados e pelo diálogo, e não se encontra a princípio definido por nenhuma especificidade de ordem cultural, acreditamos ser possível e instigante buscar na cultura contemporânea soluções criativas e enriquecedoras, capazes de promover a construção de subjetividades que permitem fazer face à conformação imposta pela razão técnica – que gerencia nossa sociedade e organiza as coisas e as pessoas, atribuindo-lhes lugares a ocupar e produtos para consumir.
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Endereço para correspondência
Maria Inês Garcia de Freitas Bittencourt
Rua Marquês de São Vicente, 225 / 201 – 22453-900 – Gávea – Rio de Janeiro/RJ tel: (21) 3114-1574
e-mail: carolfalcao@yahoo.com
recebido em 11/03/04
versão revisada recebida em 08/06/04
aprovado em 17/06/04
Nota
IDoutora em Psicologia Clínica (PUC-RJ); Professora Assistente do Departamento de Psicologia da PUC-RJ.
1.No original: “Le temps est le sens de la vie (sens: comme on dit le sens d ‘un cours d’eau, le sens d’une phrase, le sens d’une étoffe, le sens de l’odorat)”.