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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho
versão impressa ISSN 1516-3717
Cad. psicol. soc. trab. vol.22 no.2 São Paulo jul./dez. 2019
https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v22i2p117-130
ARTIGOS ORIGINAIS
DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v22i2p117-130
Trabalho, subjetividade e gestão gerencialista: um estudo com trabalhadores do comércio
Work, subjectivity and management techniques: a study with commerce workers
Ana Luisa Campos MoroI, 1 ; Mayte Raya AmazarrayII, 2
IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, RS, Brasil)
II Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (Porto Alegre, RS, Brasil)
RESUMO
O presente estudo teve como objetivo caracterizar e problematizar as técnicas de gestão gerencialistas utilizadas no contexto de trabalho do comércio varejista. Essa análise teve como eixos teóricos os estudos de Vincent de Gaulejac a respeito das técnicas de gestão da subjetividade e os estudos da Psicodinâmica do Trabalho. Realizou-se uma pesquisa qualitativa, por meio de entrevistas semiestruturadas com cinco comerciários da cidade de Porto Alegre. As entrevistas foram submetidas à análise de conteúdo, a partir da qual foram identificadas quatro categorias temáticas. Destacou-se primazia da gestão do desempenho e da excelência, pautada por técnicas que visam à homogeneização de comportamentos e à mobilização subjetiva dos trabalhadores. Os resultados dão luz a particularidades e precarizações no setor do comércio, assim como às implicações dessas técnicas de gestão para a subjetividade dos trabalhadores.
Palavras-chave: pessoal de vendas, saúde ocupacional, subjetividade, gerencialismo.
ABSTRACT
This study aims to characterize and discuss management techniques applied in the retail business. The analysis was based on the studies of Vincent de Gaulejac on techniques for managing subjectivity and on Psychodynamic of Work. We conducted five semi-structured interviews with retailers from Porto Alegre, Brazil, which were analyzed using qualitative methods. The results showed four categories. It was highlighted the primacy of performance management and excellence, ruled by techniques that aim to homogenize behavior management. The results also shed light on particularities and precariousness in the commercial sector, as well as the implications of management techniques on the subjectivity of the workers.
Keywords: sales personnel, occupational health, subjectivity, management techniques
Introdução
Com expressivo número de funcionários, precarização da remuneração e diversidade de vínculos trabalhistas, os trabalhadores do comércio varejista representam um contingente de assalariados vulneráveis e desvalorizados no mercado de trabalho (Costa, Maciel, Ferreira, & Brandão, 2006). Na mais recente compilação de indicadores sociais divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que possui como principal fonte de dados a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), e apresenta dados relativos ao ano de 2017, o comércio apresentou o segundo maior contingente de funcionários empregados do país, ficando atrás apenas da categoria "demais serviços" (IBGE, 2018). Embora esse grande contingente de trabalhadores seja uma tendência observada desde o início da série histórica, no ano de 2000 (IBGE, 2001), a categoria apresenta, historicamente, um dos piores salários das atividades pesquisadas, com rendimento decrescente desde o ano de 2015, chegando alcançar uma variação negativa de 9% entre 2014 e 2017 (IBGE, 2018).
Sob o domínio de um mercado competitivo e exigente, as corporações de comércio precisaram adaptar-se a novos ritmos produtivos e de arranjos de poder, estabelecendo técnicas que racionalizassem e otimizassem o seu funcionamento, ou seja, instituindo outras formas de gestão do trabalho (Gaulejac, 2007). O trabalho deixou de depender apenas da produtividade advinda da mobilização física do capital humano, em que este ocupava o lugar de engrenagem na máquina de produção (Borges, 1999; Tonon & Grisci, 2015) e passou a operar sob uma lógica de produção hipermoderna, conhecida como gestão gerencialista ou gerencialismo, em que a energia mobilizada é a psíquica e "a repressão é substituída pela sedução, a imposição, pela adesão e a obediência, pelo reconhecimento" (Gaulejac, 2007, p. 109). Entende-se, pois, como gestão, de acordo com Gaulejac (2007), um sistema de organização do poder que diz respeito tanto às práticas de direção das empresas quanto aos discursos sobre os modos de organizar a produção, envolvendo: técnicas, processos e dispositivos que conciliam as atividades, determinam lugares e funções, definem regras de funcionamento e dirigem as pessoas envolvidas em tal finalidade. Com características objetivas, pragmáticas e operatórias, a gestão gerencialista é apresentada como um modo de gestão contemporâneo, calcado na busca constante por excelência (Tonon & Grisci, 2015). Nesse modelo, a subjetividade do trabalhador é moldada por princípios internalizados que são próprios da organização, como permanente busca por resultados e dedicação total. Além disso, o gerencialismo traduz as ações do capital humano em indicadores de produção e qualidade; consequentemente, transformando tais dados em custo e benefício, em eficiência e eficácia (Gaulejac, 2007; Tonon & Grisci, 2015).
As práticas que exigem excelência absoluta dos sujeitos possuem como consequência, segundo Gernet e Dejours (2011), um trabalho caracterizado de forma ambígua e individualista e, por seus ideais de produtividade e homogeneização, acabam por aumentar a lacuna entre o trabalho efetivamente realizado pelo indivíduo (trabalho real) e o trabalho preceituado pela empresa (trabalho prescrito). De acordo com a Psicodinâmica do Trabalho, os conceitos de trabalho prescrito e trabalho real, oriundos da Ergonomia, são cruciais para se compreender o trabalho e a construção da subjetividade.
Enquanto o trabalho prescrito é constituído das imposições da organização do trabalho para com os trabalhadores, o trabalho real diz respeito às situações reais que se desenrolam na execução das atividades (Costa, 2013). A distância existente entre o prescrito e o real é o próprio conceito de trabalho para a Psicodinâmica do Trabalho, posto que é aí onde o trabalhador mobiliza-se subjetivamente em prol do alcance dos objetivos dessa atividade laboral. É o locus de expressão do saber-fazer, das competências aí depositadas e desenvolvidas, podendo ser tanto fonte de prazer como de sofrimento, a depender do reconhecimento e dos recursos da organização do trabalho, bem como do maior ou menor alcance das estratégias (individuais e/ou coletivas) dos trabalhadores empreendidas para fazer frente às imposições e ao real do trabalho. Este pode ser definido como sendo as situações imprevistas que ultrapassam o domínio técnico e o conhecimento científico, sendo a parte da realidade que se revela ao sujeito por sua resistência aos procedimentos operacionais e aos conhecimentos técnicocientíficos (Ferreira, 2013).
Além das regras de excelência e eficácia pregadas pelo paradigma da gestão, o comércio precisou adaptar-se ao cotidiano do ser humano na contemporaneidade. A cultura da urgência e do imediato, assim como a facilidade crescente de acesso à informação e à tecnologia, exigiram mudanças na organização da rotina de trabalho no comércio, fazendo a inclusão da regra de estar sempre disponível (Santos, 2013). É notável a intensificação do trabalho no ramo comercial, principalmente em shopping centers. Nestes, os "dias de descanso" – sábado e domingo – são substituídos por folgas escolhidas e agendadas, normalmente durante o curso da semana.
Para que a excelência em serviços e em lucros seja alcançada, as organizações atuam no controle daquilo que é vendido e daquele que vende, instaurando práticas de domínio consonantes com o método de gestão gerencialista. O modelo de controle é pautado no domínio sutil e difuso, tendo como objetivos o monitoramento do desempenho do sujeito, a partir da análise de um padrão esperado (Silva, 2003), e a mobilização interna dos trabalhadores, captando desejos e angústias e pondo-as a serviço da organização (Gaulejac, 2007). A mobilização subjetiva dos sujeitos, aliada à valorização do desempenho e da competitividade preconizadas pela gestão, possibilita que a dita "autonomia" gerencialista se transforme em responsabilização. Cada trabalhador acaba por sentir-se responsável pelos resultados – de si mesmo, da empresa –, colocando a serviço da organização suas competências, talentos e criatividade (Gaulejac, 2007). O monitoramento dos trabalhadores é traduzido em métodos avaliativos de seu desempenho, os quais, para Sennett (2001), buscam transformar em números e indicadores o trabalho exercido pelo indivíduo, tendo como cerne a produtividade e a adaptação às regras organizacionais, instaurando uma homogeneização de comportamentos e atitudes.
Diante desse cenário, o presente estudo teve por objetivo a caracterização das técnicas de gestão gerencialistas utilizadas no comércio e a problematização das técnicas de avaliação de desempenho empregadas por esse modelo de gestão. Esta análise teve como questão norteadora as implicações das técnicas de gestão gerencialistas na subjetividade dos trabalhadores comerciários, desde a perspectiva do campo da Saúde Mental e Trabalho. Os eixos teóricos condutores foram os estudos de Vincent de Gaulejac (2007) a respeito das técnicas de gestão da subjetividade, e os estudos das Clínicas do Trabalho, com ênfase na Psicodinâmica do Trabalho, que investiga os processos subjetivos mobilizados pelos indivíduos no trabalho (Dejours, 2004).
Método
O delineamento do estudo seguiu uma abordagem de pesquisa qualitativa, a fim de possibilitar a compreensão de significados, aspirações e valores dos participantes (Minayo, Deslandes, Cruz Neto, & Gomes, 1994). Participaram da pesquisa cinco trabalhadores atuantes em diferentes ramos do comércio, na cidade de Porto Alegre, sendo estes encaminhados pelo sindicato categoria ou contatados por conveniência, por livre adesão. A Tabela 1 apresenta algumas informações sociodemográficas dos trabalhadores entrevistados. A média de idade foi de 30 anos, sendo atuantes no comércio, em média, há quatro anos. Dois participantes encontravam-se na sua primeira experiência no comércio. Os nomes informados são fictícios.
Os dados foram coletados no segundo semestre de 2015 por meio de uma entrevista individual semiestruturada, que funcionou como um disparador, acompanhando o discurso dos participantes. O roteiro teve a função de guiar a entrevista, porém não de forma rígida, visto que a ordem das perguntas poderia ser alterada conforme a oportunidade e outras questões poderiam ser acrescentadas de acordo com o material específico trazido por cada participante. As perguntas de base da entrevista derivaram das questões norteadoras do estudo e versaram sobre: I) percepção do sujeito a respeito: a) do seu trabalho, b) do modo de gestão adotado pela empresa e c) de seu desempenho; e II) implicações das técnicas de gestão empregadas e das avaliações de desempenho na subjetividade do trabalhador do comércio.
As entrevistas tiveram duração aproximada de uma hora e obedeceram à disponibilidade dos participantes, dentro de sua rotina laboral, variando quanto ao local (por exemplo, sala de reuniões do sindicato, espaços reservados para fumantes e praças de alimentação em shoppings centers). Apesar da diversidade de locais, buscou-se garantir o sigilo. Todos os participantes preencheram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), sendo que o estudo foi aprovado previamente pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre. A pesquisa derivou de um trabalho de conclusão de curso de graduação em Psicologia.
As entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas na íntegra. O material empírico foi submetido à análise de conteúdo qualitativa (Bardin, 1979), perseguindose a análise temática do material obtido por meio da identificação de núcleos de sentido (Minayo, 2000). As categorias temáticas emergiram dos núcleos de sentido identificados nas falas dos participantes, ou seja, foram definidas a posteriori, buscando dar conta do sentido e do conteúdo expresso pelos entrevistados, à luz do referencial teórico utilizado.
Resultados e discussão
A partir da análise de conteúdo, foram construídas quatro categorias temáticas, que abarcavam o discurso dos participantes e conversavam diretamente com as questões norteadoras do estudo, sendo elas: 'Competitividade e individualismo', 'Controle subjetivo e difuso', 'Avaliação de desempenho' e 'Autonomia e responsabilização'. Tais categorias apresentaram-se relacionadas entre si, sendo complementares para a compreensão do fenômeno. A seguir, apresentam-se as categorias temáticas, com trechos de falas dos participantes, a fim de ilustrar o conteúdo analisado, bem como as relações com os referenciais teóricos adotados no presente estudo.
Competitividade e individualismo
Nesta categoria temática, foram agrupados os conteúdos trazidos pelos participantes que versavam sobre as estratégias da gestão voltadas ao individualismo e à competitividade entre os trabalhadores. Também foram explorados os impactos dessas práticas no bem-estar dos entrevistados, assim como para a equipe de trabalho e para a própria organização: "Eu acho que pra vendedor sempre tem (competição). O cliente chega e sempre vem dois ou três pra atender..." (Joana, 32 anos).
Para incentivar a produtividade, diversas técnicas de gestão podem ser empregadas, gerando um ambiente competitivo (Santos, 2013). No comércio, a proposta de remuneração variável por comissionamento de acordo com a produtividade é amplamente difundida (de Almeida, 1997). Os comerciários recebem, em geral, um valor pré-determinado – o "fixo" de seu salário – e a esse valor são acrescidas quantias referentes ao comissionamento. Esse percentual é variável, podendo resultar de uma porcentagem específica de vendas individuais ou de uma porcentagem de vendas – ou de lucro – da loja como um todo. A forma de pagamento por comissões mostrou-se muito diversificada entre os entrevistados, os quais se manifestaram ora a favor, ora contra, conforme ilustra o relato a seguir: "...eu tenho uma comissão global (...) entra pra todo mundo do mesmo jeito (...) individual ia ficar uma coisa tubarão. As pessoas se engalfinhando" (Mariana, 41 anos).
Para Mariana, o comissionamento global, que é dividido igualmente entre os funcionários, mostra-se como uma forma justa de divisão de lucros. A trabalhadora complementa: "(...) eu entrei muito por isso, nunca gostei das pessoas ficarem brigando por cliente, passando na frente uma das outras". Em concordância com o apontado, Almeida (1997) indica que a lógica do comissionamento global funciona como um fortalecimento do trabalho em equipe: para que se receba uma boa comissão mensal, é necessário não somente o esforço individual do sujeito, mas que o grupo como um todo se esforce para que as vendas aumentem.
Outro entrevistado, por sua vez, em regime de comissionamento individual, expôs que a margem de lucro pelo seu próprio desempenho funciona como elemento motivador, incentivando-o a buscar melhores vendas e obter melhor desempenho. Para Gaulejac (2007), a valorização do desempenho introduz, no mundo do trabalho, uma concorrência permanente, que põe o conjunto dos funcionários em uma exigência de conquistar sempre mais, influenciando-os a serem mais competitivos entre si, além de superar-se a si mesmo. Horst, Soboll e Cicmanec (2013) alertam que a competitividade está enraizada em nossa sociedade, valorizando o individualismo sob a ótica do sucesso e da flexibilidade. As empresas do Trabalho, subjetividade e gestão gerencialista: um estudo com trabalhadores do comércio comércio, mais do que estabelecer formas de comissionamento, proporcionam meios sutis de valorização da competitividade e do individualismo entre os trabalhadores. O trecho a seguir é ilustrativo: "Na loja (...) tinha o ranking oficial (...) quanto a loja vendeu, quanto cada um vendeu, qual a posição que cada um ficou" (Alexandre, 28 anos).
Na fala de Alexandre, pode-se perceber a exposição pública dos desempenhos, tanto da filial quanto do indivíduo. Os trabalhadores, conforme este exemplo, são classificados conforme uma escala de valores. A complexidade da atividade de trabalho e todos seus percalços permanecem invisibilizados, como é o caso das vendas que não se concretizam por falta de produtos no estoque: "O salário é aquilo e deu. Os vendedores têm comissão, eu não" (Isadora, 25 anos).
A lógica do lucro aparece também no trecho de Isadora, para quem o comissionamento é visto como um benefício para poucos. Na loja onde a entrevistada trabalha, existem os cargos de vendedor comissionado e de auxiliar de vendas, sendo que este abarca também funções como caixa e estoquista. Os auxiliares desempenham vendas diretas e atuam sob a lógica de metas e resultados da organização, porém não participam do comissionamento. Cria-se, dessa forma, um abismo entre os pares: os vendedores comissionados e os auxiliares de venda. A competição e o individualismo, independentemente da sua forma de manifestação, proporcionam ao indivíduo um sentimento de isolamento. Segundo Caniato e Rodrigues (2012), o termo "igual" é substituído por "rival". A coletividade é destruída e cada um deve preocupar-se com a sua segurança e o seu desempenho, deixando à margem os laços emocionais e o sentimento de pertença ao grupo (Castelhano, 2005). Para Gaulejac (2007), o trabalhador é incentivado a produzir mais e melhor, tendo seus pares como parâmetro. Os antes colegas passam a ser concorrentes em uma disputa por produtividade e desempenho, cuja "linha de chegada sempre se move mais veloz que o mais veloz dos corredores" (Bauman, 2001, p. 86).
Controle subjetivo e difuso
Esta categoria reúne as manifestações dos participantes a respeito do controle organizacional empregado no comércio, apontando as formas subjetivas e difusas de atuação desse domínio. Também é problematizado o uso de características pessoais a serviço da organização e alguns efeitos do controle na subjetividade dos trabalhadores, assim como na equipe e na própria empresa: "A gente não quer se sentir um estranho no ninho (...) a gente quer trabalhar num lugar legal, se dar bem com os colegas, ganhar bem... a gente quer ser feliz" (Isadora, 25 anos).
Enquanto o poder disciplinar, exposto por Foucault (1977), possui paralelos com o método de gestão taylorista, em que os corpos deveriam ser tornados dóceis e produtivos em espaço e tempo bem delimitados, o gerencialismo traz consigo semelhanças com o Biopoder (Foucault, 2004). Ao dirigir-se não somente ao homem-corpo, mas também ao homem-vivo, essa tecnologia de poder incide sobre a multiplicidade dos sujeitos, massificando-os para gerir, organizar e torná-los mais produtivos. A convocação subjetiva passa a ser uma técnica utilizada no Biopoder e encontra seu paralelo no gerencialismo (Hypolito, Vieira, & Pizzi, 2009): os trabalhadores são mobilizados, internamente, a alcançarem os objetivos da produção, tendo seus desejos e angústias captados e colocados a serviço da organização, transformando energia libidinal em força de trabalho (Gaulejac, 2007). No gerencialismo, não existe a necessidade de um controle constante e concreto; o "você deve" é substituído pelo "é preciso" e, ao trabalhador, é introjetada a noção de ser parte integrante e voluntária desse processo (Horst et al., 2013).
A mobilização subjetiva, portanto, é acionada a serviço da empresa e o capital humano reverbera as lógicas sutilmente impostas pelo sistema. Para manter a mobilização a seu favor, a empresa vai além da gratificação financeira, oferecendo aos trabalhadores um objetivo mais nobre do que o dinheiro: o sucesso pessoal (Gaulejac, 2007). Vende-se ao sujeito a possibilidade de trabalhar para se tornar um vencedor (Horst et al., 2013). Assim, tornar-se bem-sucedido torna-se um ideal: "Foi um momento que vi a equipe dando o sangue (...) eu trabalhava das 9h da manhã às 10h da noite (...) queria que aquela venda fechasse, queria tá junto" (Mariana, 41 anos).
A fala de Mariana demonstra o comprometimento e a dedicação a favor da concretização da venda, mesmo que, neste caso específico, a comissão não seja diretamente computada em seu salário, pois seu regime de comissionamento faz-se por rateio geral entre todos os vendedores. O aspecto financeiro, portanto, aparenta não ser a motivação única ou principal de sua dedicação naquele momento; o sucesso e o reconhecimento profissional parecem despontar como fatores primordiais. A continuação de sua fala complementa a importância da realização profissional, nomeada pela participante de "felicidade": "...tava todo mundo muito feliz... trabalhando muito, focando muito". Alexandre (28 anos) também tem uma fala nesse sentido: "Eu conseguia auxiliar (...) porque eu gosto... porque eu leio por fora, é uma paixão minha (...) então eu sempre acabava ficando bem informado".
No discurso dos entrevistados, o interesse pelo objeto de venda carregou consigo a justificativa de entrada – e permanência – no comércio, como se vê na fala de Alexandre. Se, de um lado, a empresa fornece alguns meios para que o trabalhador obtenha "sucesso" e possibilita que o sujeito trabalhe com aquilo que gosta, ou tenha acesso a experiências agradáveis e prazerosas, conforme se observa no relato de Alexandre, em contrapartida, cabe ao trabalhador oferecer sua capacidade produtiva e subjetiva com comprometimento e excelência. A ideia de crescer junto com a empresa, de vestir a camisa e de "ter sucesso juntos", segundo Gaulejac (2007), torna-se um compromisso que os funcionários devem assumir por convicção, e não mais por simples obediência: "Não tenho uma formação, uma faculdade... então acho ok (...) eu gosto de fazer o que eu faço. Eu sei como fazer. Eu domino" (Isadora, 25 anos).
Ao mesmo tempo em que o "gostar do que se faz" torna-se um marcador do controle organizacional por parte da empresa, constatou-se, nas falas dos entrevistados, que a percepção de falta de qualificação profissional – seja em escolaridade, seja em cursos de aperfeiçoamento – reforça a sujeição dos trabalhadores (Linhares & Siqueira, 2014). Sob a ótica gerencialista, cada um deles deve se sentir responsável pelos resultados – de si próprio e da empresa – para que possa desenvolver suas competências, seus talentos e sua criatividade. A falta de qualificação, portanto, passa a ser de inteira responsabilidade do sujeito, pois, sem ela, este não é capaz de evoluir na hierarquia de cargos e, enquanto sujeito de seu desempenho e gestor de si (Gaulejac, 2007), deverá "fazer por onde" (Isadora, 25 anos) para receber uma promoção.
O crescimento almejado e o reconhecimento tão esperado pelo trabalhador passam, então, a não depender somente de competências técnicas e de um bom desempenho. É esperado que o indivíduo interiorize regras e procedimentos organizacionais, adapte-se às exigências e reproduza ideologias (Pagès, Bonetti, & Gaulejac, 1987), ou seja, interiorize um modelo de trabalhador esperado (e valorizado) pela empresa. Na fala dos entrevistados, foram identificadas ideias daquilo que seria "um vendedor perfeito". Passagens como "...tu tens que Trabalho, subjetividade e gestão gerencialista: um estudo com trabalhadores do comércio ser multifacetado..." (Mariana, 41 anos) e "tu espera de um vendedor (...) proatividade, que seja comunicativo..." (Isadora, 25 anos) demonstram a ideologia gerencialista mesclada ao imaginário dos trabalhadores. Em consonância, Santos (2013) aponta que, para cada comportamento, são exigidas habilidades específicas as quais devem ser exercidas no cotidiano de trabalho. O trabalhador, portanto, passa a criar alternativas para viabilizar a realização desse trabalho previsto e idealizado. Entre aquilo que estava prescrito e o trabalho de fato realizado, tem-se a ação de trabalhar, que possibilita o preenchimento de tal lacuna, mediante produção de invenções, atos criativos e alternativas encontradas na solução de imprevistos e resolução de problemas (Dejours, 2012). Neste processo de mobilização subjetiva envolvido na ação de trabalhar, tem-se, também, o desenvolvimento de diferentes formas de resistência, conforme ilustra o trecho a seguir: "Aquela pessoa que tem liderança (...) pode acabar sendo cabeça de revolução (...) tu não é (...) aquele boi manso, que qualquer coisa que te mandarem fazer tu vais fazer. Tu vais contestar" (Mariana, 41 anos).
A resistência dos trabalhadores perante o cerco ideológico da corporação não é encorajada ou valorizada no ambiente laboral. Para Gaulejac (2007), existem duas condições para a liberdade de opinião nos modelos gerencialistas de gestão: deve estar a serviço do aumento da produtividade e do desempenho, e deve conter soluções e não problemas. Complementando a fala de Mariana, segundo Linhares e Siqueira (2014), na gestão gerencialista, a reflexão rende-se à eficácia e o trabalhador que levanta questionamentos poderá ser percebido como um perturbador que deverá ser eliminado (Gaulejac, 2007).
Avaliação de desempenho
Na categoria temática que diz respeito à avaliação de desempenho, discute-se o trabalho efetivamente realizado pelo sujeito e o trabalho que é avaliado, assim como as diversas formas de avaliação utilizadas no comércio e suas implicações para a subjetividade dos trabalhadores, para a equipe e para a organização. A fala a seguir é ilustrativa: "(antes de ser avaliado) tá todo mundo preocupado em fazer bem (...) passam o ano todo fazendo um péssimo trabalho e (...) na hora é só pra tirar nota boa" (Isadora, 25 anos).
Conforme exposto pela entrevistada, o trabalho que percebe nos momentos de avaliação é diferente do trabalho usual. Os estudos da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours, 2004; 2007) apontam essa ambivalência no que se refere à dimensionalidade das avaliações de desempenho. Tomando-se as dimensões do trabalho prescrito e do trabalho real (Dejours, 2004) como eixos de análise, em que esse último caracteriza-se pela situação de trabalho e tudo o que ela demanda dos trabalhadores, e o prescrito compreende as regras e os procedimentos organizacionais, depreende-se que a complexidade do trabalho real exercido pelo sujeito perdese na objetividade dos métodos de avaliação (Gaulejac, 2007; Sennett, 2001). A avaliação de desempenho carrega consigo uma falsa neutralidade, que, por trás do discurso racional e científico de sua prática, traz as exigências do sistema e favorece a adaptação às regras institucionais (Sennett, 2001; Tonon & Grisci, 2015).
A falsa noção de neutralidade dos métodos de avaliação aparece na fala de Mariana: "Tu lês um comentário que às vezes não compete com a tua competência (...) Às vezes tu não és avaliado pela tua competência, tu és avaliado pelo pessoal". Na loja em que trabalha, a avaliação de desempenho é realizada por gestores e por pares, de forma anônima: "...num determinado momento do ano, tu recebe uma lista de cinco pessoas que tu vais avaliar. Podem ser colegas de setor (...) pode ser de setor que tu não fazes nem ideia...".
Em uma avaliação de desempenho conduzida por pares, portanto, o indivíduo não mais presta contas somente a seus superiores, mas também a seus iguais. Seu desempenho é meticulosamente avaliado por aqueles que exercem a mesma função e recebem a mesma remuneração. Para Gaulejac (2007), na gestão gerencialista, há uma valorização exacerbada do desempenho e, assim, também da competição entre os sujeitos para se tornarem e permanecerem excelentes; cada um deve fazer melhor do que antes e melhor do que os outros, tornando seus colegas concorrentes. Um desempenho medido por pares e com fins avaliativos, portanto, proporciona que estes atuem não só como concorrentes, mas como algozes do desempenho.
A avaliação realizada por gestores, por sua vez, foi descrita pelos entrevistados de forma ambígua. Para alguns trabalhadores, essa avaliação é quantificada e parcialmente clara: o tradicional feedback é mesclado com gráficos de "perfil", performance, "o que a empresa espera de mim?". Para Isadora, submetida a uma avaliação conjunta por pares e gestores, a nota final obtida em feedback com a gestão pode ter diferentes interpretações: "...eles dizem que uma nota ruim é melhor que uma nota boa (...); se tu causas algum desconforto com o teu colega (...) tu tá fazendo certo (...) se tu quer que algo funcione, ninguém vai gostar de ti" (Isadora, 25 anos).
Percebe-se, no discurso da trabalhadora, uma desvalorização do coletivo por parte da gestão; o grupo é destruído em nome de uma boa avaliação e de um bom desempenho. A solidão e a desolação sobrepõem-se à solidariedade entre os colegas e "agora é cada um por si e todos os golpes são permitidos" (Dejours, 2012, p. 368).
Outro método apreendido na fala dos participantes diz respeito à avaliação de desempenho realizada pelo meio externo. Isto ocorre quando clientes ou avaliadores profissionais são contratados para classificar e quantificar a sua percepção sobre o trabalho dos comerciários. Os construtos avaliados, muitas vezes, não são de conhecimento dos trabalhadores, assim como a identidade daqueles que os estão avaliando. Muitas vezes, desconhecem o fato de estarem sendo avaliados naquele momento e/ou situação: "...tu já começavas a se perguntar, conforme o cliente ia se comportando... tu já começavas a pensar no questionário que ele poderia fazer pra ti" (Mariana, 41 anos).
A técnica de avaliação narrada por Mariana é conhecida como "Cliente Oculto" ou "Cliente Misterioso", que se caracteriza não somente por ser um método avaliativo, mas também como um método de controle. O trabalhador é vigiado por uma avaliação não constante e impossível de ser prevista. A possibilidade da avaliação, portanto, leva a um estado de tensão e imprevisibilidade constantes, instituindo um comportamento padronizado que abarque as exigências da avaliação (Horst et al., 2009; Santos, 2013). Na fala de Mariana, pode-se perceber o incômodo perante a sistematização e a homogeneização de comportamentos e procedimentos no atendimento ao público, o que se exacerba nas avaliações de desempenho: "...não é um cliente oculto que consegue avaliar isso com meia dúzia de perguntas (...) ele dá mais medo. Torna teu atendimento mais mecânico".
Em contrapartida ao que foi previsto pelas técnicas de gestão, há, no sujeito, a necessidade de enfrentar o real do trabalho e modificar as prescrições. Para Dejours (2012), o prazer no trabalho está diretamente relacionado à capacidade de modificar e de criar, de inventar soluções para preencher a distância existente entre o trabalho prescrito e o real. Contudo, em algumas situações de avaliação de desempenho, apresentadas e percebidas como formas de controle e eventual punição (tal como o cliente oculto), a criação e os macetes são desencorajados em nome da maior observância possível ao prescrito. A criação dá lugar à Trabalho, subjetividade e gestão gerencialista: um estudo com trabalhadores do comércio repetição, que possibilita fazer com mais rapidez. Entretanto, isso não significa, necessariamente, mais eficiência e qualidade (Gaulejac, 2007).
Desse modo, não obter a performance esperada na avaliação de desempenho pode levar ao isolamento do trabalhador, e o resultado insuficiente é rotulado pela gestão e pelos colegas (Mendes & Siqueira, 2013). O desempenho exposto em números, gráficos e notas, muitas vezes, não está de acordo com aquilo que o sujeito efetivamente realizou em seu trabalho. Algumas passagens das entrevistas demonstram o sofrimento causado pela ambiguidade entre o trabalho real e o trabalho avaliado, entre a capacidade de criar e a repetição de padrões: "...mas às vezes machuca..." (Isadora, 25 anos) e "Aí estoura a bomba. É cara chorando pelos cantos, é cara debochando" (Mariana, 41 anos). Como podemos ver em Dejours (2007, p. 17), "os que trabalham vão cada vez mais se convencendo de que seus esforços, sua dedicação, sua boa vontade, seus 'sacrifícios' pela empresa só acabam por agravar a situação".
Autonomia e responsabilização
Nesta categoria de análise, são apresentados conteúdos e reflexões sobre o ideário de autonomia e o sentimento de responsabilização dos trabalhadores reforçados pelas técnicas de gestão. Também foram agrupados os conteúdos relativos às conformações subjetivas a partir desses modos de trabalhar.
Constatou-se um paradoxo, pois ainda que existissem prescrições, as tarefas eram pouco definidas e insuficientemente prescritas: "Tu fazes a tua rotina de trabalho..." (Mariana, 41 anos); "...tinha que ficar perguntando pra eles (...) sempre perguntando" (Joana, 32 anos). O controle organizacional e as avaliações de desempenho possuem uma posição de destaque na gestão do trabalho. Todavia, enquanto "como fazer" é monitorado pelo controle e avaliado pelo desempenho, buscando a excelência, "o que fazer" é deixado em segundo plano. O importante é a eficácia, a eficiência, a qualidade e o lucro (Gaulejac, 2007), cabendo ao trabalhador a incumbência de gerir seu tempo e suas prioridades, tornando-se gestor de si mesmo.
Para Tonon e Grisci (2015), a capacidade de ser gestor de si pode ser entendida como a disposição do sujeito de crescer, prosperar e se adaptar aos códigos e condutas esperados pela organização. O indivíduo passa a ser uma empresa dentro de si mesmo, a Você S/A, como apontado pelos autores, e "deve tornar-se gestionário de sua vida, fixar-se objetivos, avaliar seus desempenhos, tornar seu tempo rentável" (Gaulejac, 2007, p. 177). O incentivo a tornar-se seu próprio gestor e a falsa noção de autonomia promovida pela gestão fomentam um senso exacerbado de responsabilização no trabalhador. Subordinados aos planos de venda, os trabalhadores devem ser capazes de inovar perante a indefinição precisa de atividades, as adversidades encontradas na rotina de trabalho e responsabilizar-se pelos resultados obtidos, da equipe e da própria empresa (Santos, 2013). O trabalhador perde a alcunha de empregado/funcionário, passando a ser designado como "colaborador". Entretanto, como apontam Mendes e Siqueira (2013), a participação relegada ao colaborador é restrita, pois é permitida desde que não altere e não interfira nos jogos de poder já instituídos na organização.
Para Santos (2013), o "trabalhador colaborador" é capaz de exercer múltiplos processos simultâneos, dedicar-se e ir além, sempre a serviço das necessidades da empresa. A falsa noção de autonomia do trabalhador em seu contexto laboral, que naturaliza e valoriza atitudes de invenção e de improvisos, desde que estas estejam de acordo com os princípios organizacionais, é incentivada pela própria organização do trabalho, conforme trazido na fala das participantes: "Eu sou cobrada porque não tá vendendo (...) a culpa é sempre tua, tu não fizeste certo. E isso me incomoda" (Mariana, 41 anos).
Os sentimentos de cobrança e de responsabilização expostos pela trabalhadora expressam muito mais do que a perda financeira própria pela não concretização da venda; há um sentimento de impotência, em que fazer "o certo" seria a garantia para o sucesso. Para Santos (2013), em um ambiente de cobrança por metas, cria-se uma linha tênue entre o que é correto ou não de ser feito. Segundo os entrevistados, a cobrança por metas é constante e diária, conforme completa Mariana: "Tu tens que vender tantos livros, tantas revistas (...) isso é cobrado todos os dias, todas as reuniões". A meta, portanto, é direcionada ao sujeito, sendo ele o responsável pelo seu êxito e pelo sucesso da organização. Nesse sistema, são esperados sacrifícios intermináveis dos trabalhadores, "já que nos seus ombros é depositada a responsabilidade pela sobrevivência da organização" (Linhares & Siqueira, 2014, p. 111).
A meta, por sua vez, é variável conforme a empresa, podendo ser individual ou coletiva. Segundo apontado pelos entrevistados, essa meta é comumente baseada em resultados anteriores – a meta mensal é superar em "x por cento" os lucros do mesmo mês no ano anterior – e não leva em consideração o número de funcionários, o número de clientes atendidos ou a situação econômica atual, pois é sempre necessário fazer mais e melhor (Gaulejac, 2007): "Nós (comércio) temos um problema econômico hoje (...) mas acaba parecendo que é nossa culpa. Que nós não estamos fazendo o suficiente" (Mariana, 41 anos).
O sentimento de impotência é apontado novamente por Mariana, demonstrando que a contrapartida objetiva da mobilização, do investimento e do engajamento – o salário comissionado ao final do mês – não vem apresentando bons dígitos. Dados sobre a variação do volume de vendas no comércio no período de 2013-2015 corroboram o discurso dos entrevistados no momento de realização da pesquisa (FEE, 2015). Estatísticas mostram que o volume de vendas decaiu substancialmente naquele período. O mês de dezembro de 2014, por exemplo, que concentra a data comemorativa de maior rentabilidade para o comércio (Natal) atingiu um volume de vendas 75% menor se comparado ao ano anterior. Ao passo que o retorno financeiro não atinge os níveis esperados, a dita "situação de crise" emana a responsabilização pela sobrevivência – de si próprio e da organização: "A comissão não tá boa, o dinheiro não tá entrando (...) tá todo mundo esperando o pior, esperando uma demissão... esperando que a loja vai fechar (...) amanhã tu podes não ter mais o teu emprego" (Is adora, 25 anos).
Para Santos (2013), a ameaça constante de demissão pode aumentar a competição entre os pares e a responsabilização do trabalhador pela manutenção do seu emprego, e o cenário bélico de crise e de retenção iminente contribuiria para disseminar o conceito de vulnerabilidade da empresa, que dependeria da excelência e da total dedicação dos funcionários para a sua sobrevivência (Linhares & Siqueira, 2014; Gaulejac, 2007). O medo de demissão pode, também, atuar como marcador do controle organizacional, propiciando que os trabalhadores se entreguem à consecução das metas organizacionais, "mesmo que para isso tenham que ignorar seus desejos, inteligência, autonomia e até a própria identidade" (Linhares & Siqueira, 2014, p. 108). O depoimento a seguir evidencia o exposto pelos autores: "...se não tiver satisfeito pede as contas... sempre essa pressão de portas abertas né... se quiser a porta tá ali" (Felipe, 24 anos).
A chamada "política de portas abertas" (Felipe, 24 anos) imposta pelas empresas visa diminuir despesas com a demissão de funcionários insatisfeitos, mas o pedido de demissão é Trabalho, subjetividade e gestão gerencialista: um estudo com trabalhadores do comércio encarado como última alternativa pelos trabalhadores. Existe a disseminação da fantasia que "...é uma premiação tu demitir" (Mariana, 41 anos), segregando aqueles insatisfeitos e aqueles com o desempenho abaixo do esperado pela empresa, até que a pressão organizacional e de pares culmine em um pedido de demissão, carregado de desistência e esgotamento. Para Gaulejac (2007), ou ganhamos ou desaparecemos; no comércio, isso poderia ser traduzido como 'ou ganhamos ou pedimos para sair'.
A falsa noção de autonomia e a responsabilização acentuada dos trabalhadores no contexto organizacional possibilitam, também, lacunas para a criação de estratégias de enfrentamento. Ao passo em que, no prescrito, o trabalhador é um colaborador, gestor de si, autônomo e responsável pela venda, o trabalho real pode abarcar realidades distintas: "Fiquei um ou dois meses sem vender (...) passava pros meus colegas (...) não tirava nada" (Felipe, 24 anos).
Felipe conta que, quando possuía aproximadamente um ano de empresa, percebeu-se discordando de técnicas específicas de gestão do trabalho e da remuneração. Insatisfeito, ouviu que "se tá insatisfeito, pede pra sair", mas buscou ir contra o sistema de comissionamento e remuneração postulado pela empresa. Sob o comissionamento individual, quanto mais Felipe vendia, mais ele ganhava. Manteve-se realizando as vendas; porém, colocando-as em nome de seus colegas, buscando que suas insatisfações chamassem a atenção dos gestores. Experiências como essa revelam a existência de formas singulares para enfrentar ou superar o individualismo e a competitividade ensejados pelos modos de gestão gerencialistas, buscando, justamente, resgate de modos cooperativos de realização do trabalho. Entretanto, essa parecia ser uma vivência isolada desse trabalhador, dificilmente resultando em mudanças significativas em escala mais ampla.
Considerações finais
O presente estudo propiciou uma aproximação com o trabalho exercido por comerciários da cidade de Porto Alegre, buscando compreender as técnicas de gestão gerencialistas em vigor nesse contexto. Buscou-se traçar problematizações acerca dos modos de trabalhar entrelaçados à conformação da subjetividade desses trabalhadores. Percebeu-se uma valorização exacerbada, por parte da gestão, em torno do desempenho, da eficácia e da excelência no trabalho junto às empresas dos trabalhadores entrevistados. Com a desvalorização do grupo e do coletivo, a competitividade e o individualismo marcaram o discurso dos participantes, caracterizando-se, de maneira mais ou menos evidente, como algo naturalizado. Entretanto, ainda que pouco esparsas, formas alternativas à competitividade também existem, conforme pôde ser visto a partir dos relatos dos trabalhadores.
O comissionamento mostrou-se como uma técnica difusora e reforçadora da competitividade, valendo-se de estratégias de exposição de resultados e de divisão entre cargos. As técnicas de gestão que padronizam "como fazer" o trabalho e as técnicas empregadas para avaliá-lo também perpassaram a fala dos participantes, culminando em técnicas prescritas e que não abarcam o real da atividade de trabalho. As avaliações de desempenho se caracterizaram como ambíguas e com falsa neutralidade, visto que não necessariamente contemplam o trabalho real exercido pelo indivíduo. O trabalho, portanto, se dissolve na objetividade dos métodos avaliativos, e dá lugar a avaliação da adaptação a regras e a comportamentos prescritos.
O controle organizacional, por sua vez, se mescla ao discurso do coletivo de trabalhadores, possibilitando que os indivíduos acreditem que, na verdade, estão realizando projetos do seu interesse e que estão sendo valorizados e reconhecidos. Entretanto, por trás desse discurso, identifica-se a lógica de lucratividade e qualidade da corporação. Atrelada ao controle organizacional, encontrou-se uma noção de autonomia que perpassou o discurso dos participantes, despontando como uma necessidade daqueles trabalhadores. A capacidade de criar, resistir e tornar-se sujeito de seu trabalho contrapôs-se às estratégias organizacionais de transformar o trabalhador em colaborador e o indivíduo em gestor de si mesmo.
A autonomia almejada pelos participantes se diferencia daquela propiciada pela gestão gerencialista, como aponta Gaulejac (2007), que carrega consigo uma responsabilização extremada. O senso de responsabilização no comércio pode ser objetificado pelo sistema de metas, que coloca o trabalhador no posto de responsável por si e pela organização, gerando o sentimento de impotência perante falhas e adversidades.
O estudo possuiu como limitações o âmbito municipal de abrangência e pouca diversidade de ramos comerciais. Estudos futuros ampliando a população estudada e a diversidade de áreas do comércio poderão contribuir para melhor avaliar as tendências relatadas e as implicações para a subjetividade desses trabalhadores. De qualquer modo, a realidade evidenciada pelo estudo possibilita que seja dada atenção à saúde dos trabalhadores comerciários, dando luz a particularidades e precarizações do trabalho no setor e as formas de estabelecimento da gestão desse trabalho.
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Endereço para correspondência
analuisacmoro@gmail.com,
maytepsi@gmail.com
Recebido em: 28/03/2019
Revisado em: 30/09/2019
Aprovado em: 01/10/2019
1 https://orcid.org/0000-0003-1143-7876
2 https://orcid.org/0000-0002-4519-8570