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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.9 no.17 São Paulo jun. 2009
RESENHA
Movimentos sociais como zonas de desenvolvimento proletário
Social movements as zones of proletarian development
Movimientos sociales como zonas de desarrollo operario
Fernando Lacerda Jr.*
Pontifícia Universidade Católica de Campinas – Brasil
Obra: Zones of Proletarian Development
Autor: Mastaneh Shah-Shuja
Londres: OpenMute, 2008.
354 páginas.
ISBN: 978-1-906496-06-7
A psicologia, muitas vezes, produziu explicações desqualificadoras das massas ao estudar os movimentos sociais. O estudo de Le Bon que afirmou a irracionalidade das massas é um dos principais exemplos da patologização das massas que perdura até hoje na psicologia social e na psicologia política (uma recente revisão está em Parker, 2007). No entanto, surgiram críticas a tais proposições, com diversos autores articulando psicologia e movimentos sociais de forma que a primeira contribua com os últimos problematizando os limites da psicologia e de ideologias correntes (alguns exemplos: Camino, 2005; Drury, 2003; Lacerda Jr. & Guzzo, 2006; Prado, 2001; Sandoval, 2001).
O livro de Mastaneh Shah-Shuja pode ser categorizado entre aqueles que fazem das teorias psicológicas instrumentos de apoio aos movimentos sociais. O livro é apresentado como um "estudo-extensão" da luta de classes, uma contribuição às lutas anticapitalistas que recorre, principalmente, a categorias da psicologia crítica para analisar manifestações revoltosas e para apresentar propostas para problemas de organização da classe trabalhadora.
Shah-Shuja é uma pesquisadora independente de origem afegã-iraquiana que vive em Londres. Por isso, ela se apresenta como uma "proletária transcultural" (p. 50). Tal independência resultou em um livro nada convencional, construído com diversas transgressões de padrões acadêmicos: utilização de imagens editadas com o fim de impactar o leitor (inspirada nas técnicas de detournement de Debord e no efeito de distanciamento de Brecht), termos usualmente reprovados nos círculos acadêmicos (proletariado, comunismo, etc.), ataques ferinos a teóricos ou grupos políticos com os quais diverge e um explícito compromisso ativista. Teoricamente, a autora é bastante eclética. De um lado, adota contribuições dialéticas e materialistas, de outro, teóricos liberais e pós-modernos. A autora cita Castoriadis, Deleuze, Guattari, Negri e Hardt, ao lado de Marx, Pannekoek e outros.
O livro é dividido em cinco capítulos e uma introdução que analisa a fase atual do capitalismo. Shah-Shuja argumenta que o capitalismo vive complexas transformações em diversas frentes. A primeira transformação se dá no processo de extração de mais-valia do capital, marcado pela combinação de distintas modalidades de exploração: além das explorações formal e real, o capitalismo usa modalidades "pré-formais" (trabalhos escravo, infantil e etc.) e "pós-reais" (o "trabalho imaterial" teorizado por Negri). Outra transformação ocorre na frente ideológica: emerge uma ideologia que combina a elasticidade da acumulação flexível com elementos fascistas. As ideologias contemporâneas empregam elementos como misticismo, elitismo, religiosidade, conquista da estabilidade mediante recurso à ameaça exterior e fascismo liberal – dois representantes são Leo Strauss e H. G. Wells.
Em seguida, Shah-Shuja formula as duas teses cruciais do livro: (1) a nova fase do capital cria novas subjetividades que têm nas coletividades espaços transformativos e de crescimento intra-, inter e extrapsicológicos; (2) as novas condições resultarão em um crescimento de lutas contra a ordem, pois: (a) o retorno do modo de exploração pré-formal resgata modalidades de repressão explícitas que geram indignação; (b) a exploração pós-real cria novos proletários de alta qualificação e cujo descontentamento não será canalizado por "instituições reacionárias de mediação como sindicatos" (p. 16); (c) a fragmentação do novo proletariado criará interações mais voláteis e, assim, facilitará a generalização de conflitos.
O capítulo seguinte faz uma apresentação geral da perspectiva teórica de Shah-Shuja. Inicialmente, ela explica que usa a definição de Harding da epistemologia como conjunto de suposições sobre possibilidades de conhecimento; da metodologia como análise teórica que define problemas de pesquisa; e do método como técnicas e estratégias de pesquisa. Em seguida, afirma que sua epistemologia é o materialismo e a dialética, sua metodologia é guiada por Vygotsky, Bakhtin e Teoria da Atividade (TA), enquanto seus métodos foram a etnografia, a pesquisa ação participante e a análise do discurso.
Os três capítulos seguintes analisam diferentes lutas coletivas utilizando diversas categorias teóricas. Cada capítulo analisa casos (experiências de luta) segundo um procedimento padrão: (1) descrição histórica dos eventos analisados; (2) apresentação e discussão do instrumental teórico utilizado para analisar o caso; (3) análises do caso utilizando o instrumental teórico; (4) considerações críticas sobre o instrumental teórico; (5) síntese sobre a utilidade do referencial teórico para compreender situações de luta.
O terceiro capítulo analisa celebrações do 1º de maio (May Day) em Londres entre 2001 e 2003 utilizando as idéias de Vygotsky sobre consciência, linguagem, significado, sentido, ferramenta e, especialmente, zona de desenvolvimento proximal – que inspira o conceito da autora de zona de desenvolvimento proletário (ZDP). De forma esquemática, pode-se dizer que a zona de desenvolvimento proximal é a distância que existe entre o que a pessoa pode fazer sozinha e o que ela pode fazer com a colaboração de outros, enquanto a ZDP se refere tanto a um espaço de luta, quanto a uma atividade (greves, manifestações, etc.), em que há atividades colaborativas e sociais que possibilitam a suspensão temporária da alienação e possibilitam relações de promoção de desenvolvimento psicológico.
O quarto capítulo analisa tumultos (riots) no Irã que ocorreram após jogos de futebol entre outubro e dezembro de 2001. Foram levantes generalizados, marcados por diversos elementos reprimidos pelo estado iraniano: consumo de álcool, músicas, gritos, sexualidade, profanação ao "sagrado" e etc. A análise emprega categorias bakhtinianas como enunciado, gênero de discurso, polifonia e carnaval. Este é definido como espaço de ação ativa, de resistência e, portanto, o oposto do consumo passivo imposto pelas sociedades do espetáculo (aqui a referência é Debord). Os levantes iranianos são carnavalescos e, portanto, constituem uma ZDP por três razões: os tumultos enriqueceram a comunicação pela criação de espaços de convergência suspendendo, temporariamente, o isolamento individual; as transgressões da cultura iraniana foram intencionais; ocorreram ações violentas contra o aparato estatal.
O quinto capítulo analisa uma manifestação que ocorreu março de 1990 em Londres durante a campanha contra o "Poll Tax" – um imposto regressivo apresentado por Thatcher (um relato sobre a luta contra o "Poll Tax" e como ela contribuiu para a queda de Thatcher é encontrado em Taaffe, 1995) – e a manifestação contra a invasão do Iraque de fevereiro de 2003 em Londres usando categorias da TA: sistema de atividade, ferramentas abstratas e concretas, comunidade, motivação, regras e outras. A meta da autora é discutir potenciais das mobilizações para uma aprendizagem expansiva e promover elementos que levam ao desenvolvimento proletário.
No fim do livro, há uma análise dos problemas de organização do proletariado para lutar contra o capitalismo. A autora resgata debates políticos e teóricos passados sobre organização para, em seguida, apresentar suas propostas. Na primeira parte, diferenciam-se a Zona de Desenvolvimento Burguês (ZDB) e a ZDP. A ZDB é uma combinação entre ciência moderna, tecnologia e academia, seus principais produtos são o conhecimento instrumental e o individualismo burguês. Nos movimentos sociais, essa zona se reflete nas teses da socialdemocracia clássica, do leninismo e do anarquismo. Já a ZDP é espaço de aprendizagem que prefigura a nova sociedade. No campo político, ela aparece em diversas tradições: comunismo conselhista, autonomismo, situacionismo, críticas à forma-partido e outras.
Em seguida, a autora apresenta as suas próprias idéias para a questão da organização proletária fazendo uma síntese entre as idéias discutidas anteriormente e as contribuições de Vygotsky, Bakhtin e da TA. A autora elabora quatro princípios que, se combinados em uma organização, servem para a construção de organizações que são ZDPs.
O primeiro é atividade-dialeticamente-associada, porque além de buscar derrubar o capitalismo, uma organização deve conter as sementes do futuro, isto é, buscar reconstruir o ser humano. Para tal, três elementos devem ser associados: resgate do trabalho morto de gerações passadas incorporado nas ferramentas já existentes; as atividades e as necessidades imediatas dos proletários; os objetivos de longo-prazo dos movimentos sociais.
O segundo princípio é heterogeneidade organizacional. Heterogeneidade é fonte de força e por isso deve ser reconhecida e não suprimida. A questão aqui é que: "A ZDP deve se esforçar para destacar os sinais visíveis e invisíveis da heterogeneidade com o fim de facilitar a associação horizontal entre subconjuntos proletários" (p.300). O problema principal é construir intersubjetividade – que pode ser estabelecida a partir de um conhecimento compartilhado entre colaboradores dando atenção para a qualidade das interações entre diferentes grupos.
O terceiro princípio é carnaval organizacional. Carnaval é diametralmente oposto ao espetáculo graças as seus distintos elementos – paródia, ironia, agressão, polifonia e outros – que possibilitam a participação e destruição da alienação por meio da criação de espaços de convergência e da subversão da hierarquia. Estas noções levam a autora destacar a necessidade de que as reuniões políticas sejam, também, espaços de socialização.
Por fim, o último princípio é fortalecimento (empowerment) organizacional. Toda ZDP deve incentivar fortalecimento, processo coletivo que é tanto produto quanto pré-condição para mobilização. O fortalecimento de coletividades possibilita a tomada de iniciativas e espontaneidade pelas massas e é crucial para fortalecer o proletariado com o objetivo de dar um fim à questão do poder.
O livro de Shah-Shuja é uma tentativa interessante de articular idéias da psicologia crítica com as lutas correntes na contemporaneidade, no entanto, há diversos problemas nas análises da autora. Em primeiro lugar, cabe destacar que, apesar da tentativa de transgressão dos limites da academia, o livro acaba realizando discussões desnecessárias e repetitivas na tentativa de demonstrar o amplo leque teórico da autora. Por exemplo, algumas discussões realizadas no capítulo que discute epistemologia, metodologia, métodos de pesquisa e análise praticamente desaparecem do segundo capítulo em diante – como, por exemplo, as discussões sobre etnografia, análise do discurso, pesquisa ação participante.
Mas, o principal problema do livro é certo "psicologismo às avessas". A tentativa de compreender a história recente de lutas anti-capitalistas pelo olhar de Vygotsky, Bakhtin e da TA parece uma inversão da psicologia hegemônica: ao invés de uma psicologia individualista que funciona para adaptar indivíduos à uma ordem social injusta, vemos um discurso psicológico aplicado à subversão da ordem social. A seguir são citados alguns exemplos.
A fragmentação de diferentes grupos de esquerda em pequenos sectos é descrita, citando Freud, como "narcisismo das pequenas diferenças" (p. 80); diversão, performance e gestos são instrumentos para superar a "vergonha burguesa" (p. 102); um dos problemas da massiva marcha contra a guerra em Londres em 2003 foi que seu tamanho enorme deu "pouco espaço para ‘espaços de reflexão'" (p. 207); explosões de violência em protestos são explicadas como expressão de emoções (por ex. 209-11 e as análises dos protestos iranianos); grupos leninistas são apresentados por todo o livro como setores obcecados por poder.
Trata-se de um recurso à psicologia para explicar a história. Ilustrativa disso é a análise da luta contra o "poll tax", quando Shah-Shuja afirma que um grande problema foi a não convergência entre o objeto da atividade dos manifestantes – abolição do "poll tax" – e a motivação para a luta – romper com o capitalismo (p. 189 e 216). Isto seria suficiente para explicar o enfraquecimento de um movimento de massas que foi um golpe letal ao governo de Thatcher? Ao buscar nos "sistemas de atividade" explicações para os caminhos e descaminhos das mobilizações proletárias, a autora secundariza a análise aprofundada do efeito que tiveram as derrotas da classe trabalhadora ao longo do século XX.
O mesmo psicologismo resulta em um exagero na avaliação dos tumultos no Irã. Se é correto tomar os tumultos como sinal de que há algo errado no Irã, é um equívoco tomar de forma romântica toda e qualquer manifestação. A visão positiva das manifestações por parte de Shah-Shuja exagera a capacidade de questionamento do regime iraniano pelos participantes dos episódios analisados resultando em afirmações proféticas sobre a futura queda do regime teocrático do Irã.
Ainda que algumas afirmações de Shah-Shuja reproduzam certas análises psicologizantes dos movimentos sociais e, muitas vezes, as promessas da autora são muito maiores que suas realizações, "Zones of Proletarian Development" produziu uma articulação interessante da psicologia com os movimentos sociais, dando ao leitor a oportunidade de conhecer algumas elaborações inovadoras da psicologia crítica.
Referências
Camino, Leoncio. (2005). A construção de uma perspectiva psicossociológica no estudo do comportamento político. Em A. R. Torres, M. E. Lima e J. da Costa (Orgs.), A psicologia política na perspectiva psicossociológica (pp. 9-42). Goiânia: Editora da Universidade Católica de Goiás. [ Links ]
Drury, John. (2003). What critical psychology can(‘t) do for the anti-capitalist movement. Em Melancholic Troglodytes (Orgs.), Annual Review of Critical Psychology (pp. 88-113, Vol. 3). Manchester: Discourse Unit.
Lacerda Jr., Fernando, & Guzzo, Raquel S. L. (2006). MST e consciência de classe: Estudo a partir da trajetória de vida de um militante. Revista Psicologia Política, 6(12), 289-336. [ Links ]
Parker, Ian. (2007). Revolution in psychology: Alienation to emancipation. Londres: Pluto. [ Links ]
Prado, Marco A. M. (2001). Psicologia política e ação coletiva: Notas e reflexões acerca da compreensão do processo de formação identitária do nós. Revista Psicologia Política, 1(1), 149-172. [ Links ]
Sandoval, Salvador A. M. (2001). The crisis of Brazilian labor movement and workers political consciousness. Revista Psicologia Política, 1(1), 173-195. [ Links ]
Taaffe, Petter. (1995). The rise of militant. Londres: Militant Publications. [ Links ]
Endereço para correspondência
Fernando Lacerda Jr.
E-mail: fernando_lac@yahoo.com.br
Recebido em: 13/07/2009
Aceito em: 05/08/2009
* Pontifícia Universidade Católica de Campinas – Brasil.