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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.21 no.3 Belo Horizonte set. 2015

https://doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2015v21n3p513 

 


ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2015v21n3p513

 

A participação política de pessoas com sofrimento mental: a Associação dos Usuários de Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (Asussam-MG)

 

The political participation of people with mental suffering: the Users Association of Mental Health Services of Minas Gerais (Asussam-MG)

 

La participación política de personas con enfermedad mental: la Asociación de usuarios de Servicios de Salud Mental de Minas Gerais (Asussam-MG)

 

 

Carolina Novaes Cunha*; Maria Stella Brandão Goulart**

 

 


Resumo

O artigo discute a participação política de pessoas com sofrimento mental no contexto do Movimento Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica mineira, abordando os conceitos de participação política cidadã e deliberação. Realizamos um estudo de caso na Associação dos Usuários de Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (Asussam-MG), localizada em Belo Horizonte. Na pesquisa de campo, trabalhamos com observação participante e dinâmicas conversacionais. Realizamos uma apresentação descritiva da associação e apontamos alguns aspectos críticos, do ponto de vista de seus integrantes, que permeiam a prática política dessa entidade. Por fim, destacamos o potencial emancipatório que a participação política promove, tanto no âmbito social quanto no subjetivo, ao proporcionar desenvolvimento de autonomia e liberdade aos usuários de saúde mental, salientando a importância do papel sociopolítico do associacionismo na luta por direitos e cidadania.

Palavras-chave: Participação política. Pessoas com sofrimento mental. Movimento Antimanicomial.


Abstract

The paper discusses the political participation of people with mental suffering in the context of anti-asylum movement and psychiatric reform in Minas Gerais, pointing out the concepts of citizen political participation and deliberation. We conducted a case study by the Association of Users of Mental Health Services of Minas Gerais (Asussam-MG), in Belo Horizonte. In field research, we worked with participant observation and conversational dynamics. We made a descriptive presentation of the association and high-lighted some critical aspects from the point of view of its members, which underlie the practice of this political entity. Finally, we highlight the emancipatory potential that promotes political participation, both in social and subjective aspects, to provide development of autonomy and freedom to the users of mental health, emphasizing the importance of socio-political role of associations in the struggle for rights and citizenship.

Keywords: Political participation. People with mental suffering. Antiasylum movement.


Resumen

El artículo aborda la participación política de las personas con enfermedad mental en el contexto del movimiento antimanicomial y la reforma psiquiátrica en Minas Grais, abordando los conceptos de la participación política ciudadana y la deliberación. Se realizó un estudio de caso en la Asociación de Usuarios de Servicios de Salud Mental del Estado de Minas Gerais (Asussam-MG), en Belo Horizonte. En la investigación de campo, trabajamos con la observación participante y dinámicas conversacionales. Realizamos una presentación descriptiva de la asociación y señalamos algunos aspectos críticos desde el punto de vista de sus miembros, que impregnan la práctica política de esta entidad. Por último, destacamos el potencial emancipador que promueve la participación política, tanto en lo social como en lo subjetivo, proporcionando el desarrollo de la autonomía y la libertad de los usuarios de la salud mental, subrayando la importancia del papel sociopolítico del asociacionismo en la lucha por derechos y ciudadanía.

Palabras clave: Participación política. Personas con enfermedad mental. Movimiento antimanicomial.


 

 

Introdução

A participação política da pessoa com sofrimento mental é uma temática relevante na atualidade, considerando o processo histórico de consolidação das propostas participativas nas sociedades democráticas e da busca pela emancipação e conquista política de grupos historicamente discriminados. Sob uma perspectiva de cidadania, justiça social e garantia de direitos, que vai além do voto em processos eleitorais, a participação da sociedade civil em processos políticos vem se consolidando no Brasil desde a promulgação da Constituição de 1988, a partir de lutas de diversos movimentos sociais pela redemocratização do país e por garantias de direito, tornando-se, a cada dia, um desafio na vivência democrática a ser debatido e construído constantemente.

O envolvimento de pessoas com sofrimento mental em processos participativos é recente. Data de meados da década de 70 do século XX, sintonizado com o movimento de trabalhadores da área de saúde mental, que começou a lutar por melhores condições de assistência aos usuários e melhores condições de trabalho, constituindo um movimento social que ganhou força política, o Movimento Antimanicomial1.

Este artigo tem o objetivo de discutir a participação política de pessoas com sofrimento mental no contexto do Movimento Antimanicomial e da Reforma Psiquiátrica, abordando discussões sobre participação política cidadã e deliberação (Habermas, 1983, 1990, 2003; Teixeira, 1997, 2001). Buscamos apresentar a organização de uma associação de usuários de serviços de saúde mental de Belo Horizonte, abordando também os aspectos críticos, do ponto de vista de seus integrantes, que permeiam a prática política dessa entidade. Apesar da diversidade de atores que compõem o universo do Movimento Antimanicomial, nosso foco de estudo foi nos militantes que são usuários dos serviços de saúde mental. Este trabalho apresenta resultados parciais que compõem um capítulo da dissertação de mestrado defendida em 2013, na Universidade Federal de Minas Gerais, intitulada "Os sentidos subjetivos da participação política para pessoas com sofrimento mental" (Cunha, 2013).

 

Método de pesquisa

Desenvolvemos um estudo de caso (Gil, 2002; Lijphart, 1971) junto à Associação dos Usuários de Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (Asussam-MG), localizada em Belo Horizonte. Para tanto, realizamos observação participante (Patton, 2002; Santos, 2011; Yin, 1994) e conversamos com alguns integrantes da entidade. O processo de observação participante ocorreu no período de maio de 2011 a setembro de 2012. Estivemos presentes nas reuniões quinzenais da diretoria da entidade e nos eventos diversos dos quais os membros da associação participaram ao longo desse período. As entrevistas se deram por meio da técnica da dinâmica conversacional (Rey, 2005). Foram selecionados os membros da diretoria e um do conselho fiscal da Associação para a dinâmica conversacional, uma vez que são pessoas muito envolvidas com as atividades da entidade. O processo de seleção dos entrevistados foi proposto ao grupo durante uma das reuniões e aprovado pelos membros presentes na ocasião. Por fim, para melhor conhecer a Associação, utilizamos documentos institucionais, como o Estatuto da entidade (Associação dos Usuários de Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais [Asussam-MG], 2010/2012).

Nossa discussão se desenvolve sob a ótica da Psicologia Social Crítica, a qual busca o comprometimento com as transformações sociopolíticas, tomando os fenômenos em sua dimensão histórica e transdisciplinar (Goulart, 2009).

 

Participação política e democracia deliberativa: referencial teórico

O debate sobre participação política está incluso nas discussões que envolvem a democracia deliberativa, a qual difere da democracia representativa, que restringe a participação ao voto eleitoral, e da democracia participativa, em que atores sociais representam seu grupo em espaços de discussão públicos sem necessariamente estarem vinculados a processos de eleição. O modelo da democracia deliberativa apresenta uma preocupação que vai além da participação, visando à qualidade do debate. A deliberação é entendida como processo de tomada de decisão, de argumentação e justificação de posições. É caracterizada pela proposição de participação conjunta do Estado e dos cidadãos na formulação e controle de políticas, devendo ser pública e inclusiva. No modelo deliberativo, conforme aponta Pereira (2007):

A participação política se dá através do diálogo entre indivíduos nos espaços públicos, onde terão a possibilidade de expressarem suas opiniões, escutarem as posições dos outros indivíduos, reconhecerem identidades ou divergências entre as posições em debate e, por fim, encontrarem pontos em comum para chegarem a decisões coletivas. (p. 439)

A participação política no Brasil democrático é marcada, desde os anos 80 do século XX, por dois importantes fenômenos: a ampliação da presença da sociedade civil nas políticas públicas e o crescimento das instituições participativas (Avritzer, 2007). A participação política pode ser desdobrada em diversas conceituações e entendimentos. Trabalhamos com o conceito desenvolvido por Teixeira (1997), o qual considera a participação política cidadã como aquela na qual diferentes atores sociais assumem deveres e responsabilidades políticas, criando e executando direitos, inclusive o direito de controle social do Estado e do mercado, contribuindo, assim, para o fortalecimento da sociedade civil, que exerce importante papel nos processos democráticos.

Considera-se uma distinção em relação aos tipos de participação política: participação orientada à decisão e participação orientada à expressão. A primeira caracteriza-se pela intervenção, de forma organizada, no processo decisório; a segunda, voltada para expressão, ainda que possa apresentar impacto ou influência no processo decisório, tem o caráter mais simbólico, de marcar presença na cena política. Ao nos referirmos à participação cidadã, são contemplados dois elementos contraditórios presentes na atual dinâmica política. Primeiro, o "fazer ou tomar parte" no processo político-social, por indivíduos, grupos, organizações que expressam interesses, identidades, valores situados no campo do "particular", mas atuando em um espaço de heterogeneidade, diversidade, pluralidade. O segundo, o elemento "cidadania", no sentido "cívico", enfatizando as dimensões de universalidade, generalidade, igualdade de direitos, responsabilidades e deveres. A dimensão cívica se articula à ideia de deveres e responsabilidades (Teixeira, 1997).

Assim, a participação cidadã se constitui como processo que apresenta demandas específicas de grupos sociais, expressas e debatidas em espaços públicos, que se articula com reivindicações coletivas gerais, combinando o uso de mecanismos institucionais com sociais, inventados no cotidiano das lutas (Teixeira, 1997).

 

A participação política das pessoas com sofrimento mental no Movimento Antimanicomial

O Movimento Antimanicomial, como aponta Goulart (2006), foi, desde o final da década de 80 do século XX,

Um dos mais relevantes atores da sociedade civil brasileira no processo de mudança no campo da saúde mental. Trata-se de um fenômeno associativo de caráter mobilizador e reivindicador que congregou profissionais de saúde mental (particularmente psiquiatras e psicólogos que trabalham no setor público, como técnicos e gestores); os portadores de sofrimento mental, em especial os usuários ou ex-usuários dos serviços de saúde mental; e familiares dos portadores de sofrimento psíquico. (p. 11)

O movimento teve seus antecedentes a partir do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental. Dessa forma, ele começou como uma causa dos trabalhadores e se tornou um movimento social, aberto a todos os interessados em pensar a loucura e a cidadania, principalmente os próprios usuários (Lobosque, 2001).

No ano de 1987, foi realizado o II Encontro Nacional do Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental, em Bauru, onde foi criada a palavra de ordem, "Por uma sociedade sem manicômios", a qual exigia a existência de um movimento social autônomo em relação ao Estado, aos partidos, às corporações profissionais, evitando burocratizações e hierarquias. Nesse encontro, foram discutidos diversos aspectos da atenção em saúde mental no País, abrindo caminho para o nascimento do Movimento Antimanicomial.

O I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial, que ocorreu em 1993, em Salvador, foi um marco importante na história do movimento, uma vez que buscou sustentar as consequências do que foi proposto no Encontro do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental, em 1987. Nesse encontro de 1993, Minas Gerais marcou sua presença na história do Movimento Antimanicomial quando o Fórum Mineiro de Saúde Mental assumiu a primeira Secretaria Executiva Nacional do Movimento (Lobosque, 2001). No mesmo ano, foi realizado, em Salvador, o III Encontro Nacional de Usuários e Familiares da Luta Antimanicomial, quando foi elabora a carta "Direitos dos Usuários dos Serviços de Saúde Mental" (Vasconcelos, 2000).

Em 2001, no V Encontro Nacional do Movimento de Luta Antimanicomial, o movimento se dividiu em duas correntes principais, reunindo diferentes núcleos e grupos pelo País, o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA) e a Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA), constituída em 2003 (Grunpeter, Costa & Mustafá, 2007; Vasconcelos & Rodrigues, 2010).

Destacam-se, no cenário mineiro, duas entidades importantes no processo de participação política dos usuários no Movimento Antimanicomial: o Fórum Mineiro de Saúde Mental e a Associação dos Usuários de Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (Asussam-MG). O Fórum constitui-se como "uma entidade da sociedade civil, que articula usuários, familiares e trabalhadores da saúde mental na luta pela extinção da lógica manicomial" (Lobosque, 2001, p. 164). A Asussam é uma entidade sem fins lucrativos, composta exclusivamente por usuários em sua diretoria, e será apresentada em seguida. Ambas se constituem como núcleos da luta antimanicomial vinculadas à Renila (Minas Gerais, 2006). Destacamos aqui a importância da parceria que a Asussam tem com o Fórum Mineiro de Saúde Mental e enfatizamos que, apesar de serem duas entidades bastante próximas em termos de práticas sociopolíticas e de compartilharem o mesmo posicionamento diante das questões relacionadas à política de saúde mental, são entidades separadas e independentes. O Fórum é constituído por pessoas de diferentes segmentos sociais (trabalhadores, familiares e usuários de saúde mental); já a Asussam é constituída exclusivamente por usuários (assim era até o ano de 2013, quando encerramos nossa pesquisa), apesar de ser aberta à participação de outros segmentos.

 

Associacionismo no Movimento Antimanicomial

As associações se constituem como a base institucional da sociedade civil, seu papel na vida política e civil é o de fortalecer a cidadania, renovar sentimentos e ideias (Teixeira, 1997). As associações são geralmente designadas como "sem fins lucrativos" ou "não governamentais", sendo que essas expressões as caracterizam em sua negatividade em relação ao estatal e econômico. Sua especificidade está nas relações sociais envolvendo indivíduos na busca de objetivos coletivos ou públicos (Teixeira, 2002). Apesar das associações defenderem direitos individuais, seu caráter privado depende de seus objetivos, pois os direitos individuais se tornam sociais e coletivos, passando assim para a esfera do público. Dessa forma, as associações não representam simplesmente seus associados, um grupo privado, elas exercem papel público ao defenderem bens públicos. As associações descobrem temas de relevância para o conjunto da sociedade, contribuindo para possíveis soluções para os problemas, interpretando valores (Habermas, 1990). As associações também têm uma função de controle social, a qual não é entendida apenas como fiscalização, mas como uma atividade estratégica para monitorar ações e decisões do poder público. O papel das associações apresenta uma perspectiva emancipatória, no sentido de reconstruir uma vida pública democrática. "As associações podem exercer um papel significativo no campo da construção da cultura política, na mudança de valores da sociedade, hoje envolvida na apatia e no individualismo" (Teixeira, 2002, p. 87).

As associações de usuários e familiares de pessoas com sofrimento mental vêm se constituindo como fortes atores no processo de reforma psiquiátrica. Vasconcelos & Rodrigues (2010) apontam que há escassez de estudos sobre organizações de usuários e familiares em saúde mental no Brasil, e enfatizam a importância de fomentar a organização e a luta dos usuários e familiares, apontando para a perspectiva ético-política de base que identifica nos atores sociais mais diretamente oprimidos os principais sujeitos políticos no processo de superação radical das diferentes formas de opressão.

Ao analisar o perfil da maioria das associações de usuários no Brasil, Vasconcelos (2009) assim as descreve:

Perfil típico e mais frequente de dispositivo associativo no Brasil: associação mista (usuários, familiares, e técnicos), fundada depois de 1992, criada a partir de e ligada a um CAPS, com um funcionamento central baseado em plantão ou atendimento regular por técnico do CAPS e membro da associação, com uma reunião quinzenal ou mensal, cobrando uma contribuição financeira quase simbólica (2 a 5 reais), apoiando a reforma psiquiátrica, expressando sua missão em termos da defesa dos direitos do usuário e familiar, e desenvolvendo pelo menos alguma oficina, projeto ou atividade de trabalho e geração de renda. (p. 5)

Vasconcelos & Rodrigues (2010) verificaram que as iniciativas são geralmente induzidas por profissionais a partir das discussões e da cultura política gerada dentro dos movimentos de reforma psiquiátrica e antimanicomial, e que um dos problemas principais de tais associações está em suas bases de sustentação econômica, organizacional e política. Muitas vezes, as associações são ligadas a serviços (CAPS, por exemplo) e têm como fonte de recursos as coordenações de saúde mental municipais, estaduais e nacional comprometidas com a reforma ou as organizações corporativas de profissionais. Os autores salientam os riscos de se estabelecer uma relação de dependência dessas associações em relação aos seus parceiros (governo e entidades profissionais), o que poderia promover certa fragilidade organizacional das bases do Movimento, mas apontam que há algumas associações com estrutura organizativa e consciência política mais avançada (Vasconcelos & Rodrigues, 2010).

 

A Asussam-MG

A Asussam-MG2 foi fundada em 15 de março de 1994, no Centro de Convivência Arthur Bispo do Rosário, então localizado no Hospital Raul Soares, em Belo Horizonte.

Apresentamos o nascimento da instituição por meio da fala de um de seus membros, que participava da entidade desde então:

A Asussam surgiu o seguinte: tava eu e o G. sentado num banco fumando um cigarro: "Precisamos defender nossos direitos, estamos sendo maltratados, tratados feito cachorro, estão fazendo psicocirurgia na maioria das pessoas que estão começando a ter lucidez". E quando a pessoa começava ficar curada, não era aposentada, ou era aposentada, corria o risco de se curar lucidamente e ter uma participação política real, em 94, a pessoa era psicocirurgiada. [...] O G. F. [primeiro presidente da Asussam] frequentava o Arthur Bispo do Rosário3, no Instituto Raul Soares, e eu frequentava o hospital-dia. Nós nos encontramos pra brigar um com o outro, porque tinha uma briga entre o Arthur Bispo, que não tinha comida, não tinha remédio, [...] e o hospital-dia [que] era patrocinado pelo governo... que fornecia remédio, café da manhã, café da tarde, almoço, janta e ainda dava cigarro picado pra gente. [...] Foi o primeiro hospital-dia que surgiu aqui em Belo Horizonte. Não tinha a luta antimanicomial ainda. Existiam os hospícios. O hospital-dia [do Instituto Raul Soares], por incrível que pareça, foi a célula da qual brotou o primeiro sistema alternativo de tratamento. [...] Um dia, ele [G. F.] falou assim: "José4, eles tão querendo me lobotomizar, eles tão me dando choque, o que nós vamos fazer?". "Vamos fazer uma organização pra defender nossos direitos, despistados, vamos trabalhar igual mineiro, em silêncio".

Não apresentamos aqui a fundação da entidade de forma objetiva, mas sim pelo olhar de um de seus membros. Localizamos na seguinte fala: "Não tinha a luta antimanicomial ainda", como sendo esse o momento em que essa pessoa especificamente entrava em contato com o Movimento Antimanicomial, uma vez que, em 1994, o movimento já existia. Observa-se que o contato com o centro de convivência, profissionais e outros usuários parece ter oferecido um novo olhar para esse usuário, que o levou a se inserir na luta como militante de forma ativa, vislumbrando a constituição de uma organização de usuários.

Segundo o Estatuto da Asussam, (2010/2012), a diretoria executiva da entidade deve ser composta exclusivamente por usuários e o Conselho Fiscal é aberto à participação de usuários, familiares, técnicos e simpatizantes à luta antimanicomial (Ferreira, Lopes, Sena, Carvalho & Braga, 2008). A posse da primeira diretoria ocorreu em 12 de maio de 1994, em sessão solene na Câmara Municipal de Belo Horizonte, como relatam os próprios usuários nesse texto redigido pelos membros da associação e publicado em 2008 (Ferreira et al., 2008). As finalidades da entidade, conforme seu estatuto, são:

a) cultivar a mais ampla e perfeita cordialidade entre seus sócios;
b) promover atividades sociais, culturais e desportivas;
c) fazer cumprir as deliberações da Carta de Direitos e Deveres dos Usuários e Familiares dos Serviços de Saúde Mental;
d) divulgar e defender os princípios e propostas do Movimento da Luta Antimanicomial;
e) sensibilizar os familiares para garantir participação efetiva e defesa dos princípios da Luta Antimanicomial;
f ) promover ações preconizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e pelos princípios e diretrizes da Reforma Psiquiátrica;
g) organizar serviços de documentação e informação;
h) promover a ética, a paz, a cidadania, os direitos humanos, a democracia e outros valores universais.

A partir de seus objetivos, a Associação propõe projetos políticos (Dagnino, 2004) que se inserem na proposta de fortalecimento da cidadania e de transformação da dinâmica social e política. Seus objetivos não se restringem à defesa de direitos de um grupo específico, mas visam à construção de novos horizontes nas relações sociais, permeados pelos valores universais dos direitos humanos. "Projetos políticos se referem a conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade que orientam a ação política dos diferentes sujeitos" (Dagnino, 2004, p. 98).

O estatuto da entidade Asussam (2010/2012) preconiza que a Associação é constituída por número ilimitado de associados, sendo que esses não devem responder pelas obrigações da entidade nem utilizar seus símbolos ou falar em seu nome sem expressa autorização da diretoria. A diretoria é composta por um presidente, um vice-presidente, primeiro e segundo secretários e primeiro e segundo tesoureiros, tendo um mandato de dois anos, com apenas uma reeleição. A diretoria é eleita ordinariamente em processo eleitoral previsto no estatuto da entidade. O voto é direto, secreto e individual. As reuniões de diretoria são abertas aos associados e ocorrem com uma média de sete a dez pessoas. Constitui, também, a administração da entidade, o conselho fiscal, sendo este composto por seis membros eleitos individualmente pela diretoria no momento da posse. A Assembleia-Geral elege, extraordinariamente, os substitutos a cargos vacantes da diretoria.

Conforme apontado no estatuto da entidade Asussam (2010/2012), são possíveis fontes de recurso financeiro da Associação: contribuições de associados ou colaboradores, doações, subvenções destinadas pelo poder público, rendas originárias de seus projetos, bens de outras instituições congêneres que venham a ser extintas, recursos provenientes de vendas de publicações ou outros bens produzidos pela Associação, receita proveniente de contratos e convênios de prestação de serviços.

A entidade tem parcerias5 com diversas instituições da sociedade civil, como o Fórum Mineiro de Saúde Mental e a Frente Mineira de Entidades pela Cidadania, Dignidade e Direitos Humanos na Política Nacional sobre Drogas, bem como com a Escola de Saúde Pública do Estado de Minas Gerais. Parceria também ocorre com organizações profissionais como o Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais, que tem acompanhado a estruturação da entidade, oferecendo infraestrutura (espaço físico para reuniões, utilização de computadores, internet, material de escritório) e apoio técnico.

Tais parcerias com organizações que contam em sua composição com técnicos simpatizantes às propostas da reforma psiquiátrica levam a discussões polêmicas sobre o caráter de tutela ou de apoio que pode ser aplicado a essa relação. Ferreira et al. (2008), integrantes da Associação, explicitam que é importante discernir o papel dos parceiros e adotar uma visão otimista em relação à independência administrativa da entidade, consolidando e conciliando as parcerias existentes e as que podem vir a ser feitas.

A Associação também desenvolve parceria com a Coordenação Municipal de Saúde Mental de Belo Horizonte. Segundo Ferreira et al. (2008), a parceria da entidade com o Estado propicia conquistas de suas propostas e permite a prática do controle social. A Associação, na busca por seus objetivos, manifesta sua insatisfação e objeção aos gestores públicos nos casos em que estes venham a se opor aos princípios da luta antimanicomial (Ferreira et al., 2008). Dessa forma, a relação de parceria com a gestão pública pode ocorrer, mas pontos de divergência e de convergência fazem parte do constante processo deliberativo de negociações entre sociedade civil e Estado. As parcerias que ocorrem com instituições compostas por profissionais militantes são de grande importância para o desenvolvimento da Asussam e de seu potencial como organização política, mas a entidade tem clareza de sua função de representação dos direitos dos usuários distinto dos profissionais.

A entidade participou de Conferências Municipais de Saúde, o que foi de extrema importância, conforme aproximou atores da sociedade civil das estruturas e decisões do Estado, abrindo possibilidade para que pessoas com sofrimento mental pudessem participar como conselheiras de Conselhos de Saúde, e colocando, assim, a temática da saúde mental na pauta dos conselhos de forma mais evidente. Ferreira et al. (2008) apontam a II Conferência Municipal de Saúde Mental de Belo Horizonte (2001) como importante evento que possibilitou tanto a implementação de assistência 24 horas em serviços substitutivos de saúde mental quanto a constituição da Comissão de Reforma Psiquiátrica6 no Conselho Municipal de Saúde, da qual a Asussam participa com um membro efetivo e um suplente.

Participamos de reuniões da diretoria da Asussam entre maio de 2011 e setembro de 2012, quando encerramos nossa pesquisa de campo. As reuniões ocorrem no espaço físico do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais e se desenvolvem com estrutura organizada. Há um momento inicial com leitura da ata da reunião anterior, quando os membros discutem o conteúdo da ata, que é feita por uma das secretárias da Associação, fazem correções quando necessário e, por fim, assinam a ata. Em seguida, é aberto espaço para os informes. Por fim, é discutida a pauta, que é proposta pelos próprios membros da Associação.

Observamos, durante o período em que estivemos presentes nas reuniões da Associação, que a presença de membros do Conselho Regional de Psicologia não é constante nas reuniões, sendo participações pontuais, muitas vezes para fazer um convite para algum evento ou discutir algum ponto de pauta específico. A reunião somente ocorre se houver quórum mínimo de três membros da diretoria presentes. Muitas vezes, um membro da Associação assume a função de inscrever os interessados em falar, no intuito de organizar o processo de comunicação no grupo. O presidente coordena a reunião. As secretárias organizam as atas das reuniões, fazem a interface com o Conselho Regional de Psicologia na organização da estrutura física da reunião, e as tesoureiras organizam e prestam contas dos recursos e das atividades desenvolvidas pela Associação, com elaboração de relatórios de atividades ao final de cada gestão de diretoria.

Os membros da Associação estão inseridos em diversos espaços políticos e culturais da sociedade, levantando a temática da saúde mental por onde circulam. Alguns integrantes são representantes dos usuários em instâncias políticas deliberativas de relevância na política de saúde, como a Comissão de Reforma Psiquiátrica do Conselho Estadual de Saúde, por exemplo. Participam também de conferências de saúde e de fóruns, como o Fórum Mineiro de Saúde Mental e a Frente Mineira de Entidades pela Cidadania, Dignidade e Direitos Humanos na Política Nacional sobre Drogas. Além disso, os membros da Associação também se inserem em projetos culturais que não estão diretamente vinculados à Associação, como grupos de teatro, produção literária, produção musical.

Percebemos que os membros da Asussam exercem a participação cidadã, proposta por Teixeira (1997), tomando parte no processo político-social por meio da expressão de seus interesses e seus valores, e também exercendo a cidadania no que tange à dimensão de busca pela igualdade de direitos, enfatizando também os seus deveres e responsabilidades. Identifica-se, ainda, a concretização da função de controle social, que o potencial do associativismo na sociedade civil pode propiciar mediante o monitoramento e a participação ativa na construção de políticas públicas.

Vasconcelos (2007) elaborou uma tipologia das associações de usuários e familiares no campo da saúde mental no Brasil. Segundo o autor, poderíamos considerar cinco perfis de associações:

a) de ajuda mútua;
b) de suporte mútuo;
c) de defesa de direitos;
d) de transformação do estigma e dependência na relação com a loucura e o louco na sociedade;
e) e de participação no sistema de saúde/saúde mental e militância social mais ampla.

Considerando tal tipologia, a Asussam se caracterizaria de modo muito específico ou mesmo polivalente. Não seria uma associação de "ajuda mútua" ou "suporte mútuo" por não ter grupos de trocas de experiências e ajuda emocional estruturados, ou atividades de cuidado e suporte concreto na vida cotidiana. A questão do suporte mútuo ocorre informalmente. Não há propostas ou orientações específicas sobre cuidado da pessoa com sofrimento mental, mas no cotidiano das relações entre os membros há uma interação que permite o suporte mútuo entre os membros, mediante as relações afetivas ali desenvolvidas.

Poderíamos enquadrar os objetivos da Asussam em um perfil de associação de "defesa de direitos", pois capacita os usuários a defenderem seus direitos, por meio de elaboração de cartilhas7,participação em eventos, convocação de fóruns de políticas públicas reunindo diversos atores. Além disso, pode ser entendida como uma associação de "transformação do estigma e dependência na relação com a loucura e o louco na sociedade", pois seus membros participam de movimentos culturais em toda a cidade, mostrando outro olhar sobre a loucura por meio de atividades culturais diversas, além das atividades políticas. Ainda tomando a classificação de Vasconcelos (2007), ela poderia ser entendida como associação de "participação no sistema de saúde/saúde mental e militância social mais ampla", pois seus membros participam de instâncias de controle social, como os conselhos municipais e estaduais de saúde, estimulam a participação cidadã na comunidade e participam em campanhas e reivindicações por mudanças mais globais nas políticas e legislação em saúde, saúde mental e outras políticas sociais.

Segundo Ferreira et al. (2008), os propósitos perseguidos pela entidade são amplos e somente podem ser realizados quando os usuários se unem e acreditam na possibilidade das transformações dos serviços assistenciais e no reconhecimento da pessoa com sofrimento mental como cidadã, portadora dos direitos sociais básicos.

Até aqui, buscamos apresentar a Asussam de forma descritiva em seus aspectos funcionais e salientamos que não pretendemos esgotar nesta apresentação a discussão sobre uma instituição tão rica e dinâmica. A seguir, pretendemos trazer à tona algumas perspectivas colocadas pelos membros da Associação sobre como eles percebem alguns aspectos institucionais da entidade.

 

A Asussam sob a perspectiva de seus membros

A percepção que os membros da Associação têm em relação à entidade e ao trabalho que eles mesmos vêm desenvolvendo é importante para entendermos o processo de construção e amadurecimento de uma instituição como esta, que vem ganhando espaço na esfera pública ao longo das últimas décadas, colocando em pauta temáticas de relevância sobre processos de igualdade social e democracia, com vistas a projetos de emancipação e de dignidade humana.

Acreditamos ser importante mostrar que há visões críticas dentro do grupo, críticas internas que podem possibilitar crescimento e amadurecimento da instituição como entidade de defesa de direitos autônoma. Veremos, em alguns depoimentos, como os membros percebem as fragilidades políticas e econômicas da Associação. Assim, mostramos também que uma entidade como esta, que surgiu apoiada por outras instituições mais organizadas e fortes politicamente, pode desenvolver sua autonomia, inclusive com base em críticas internas.

Trazemos para este debate as contribuições de dois membros que foram por nós entrevistados, José e Flávia8. Selecionamos os seus depoimentos por acharmos que são pontos de vista críticos e que podem contribuir para o amadurecimento da entidade. É importante pontuar que as opiniões apresentadas são dos dois entrevistados e não condizem necessariamente com as opiniões de outros membros do grupo, de forma que mostramos aqui apenas alguns pontos de vista, para enriquecer a descrição sobre a Asussam e não nos propomos a fazer uma análise objetiva da efetividade das ações da entidade.

Vasconcelos (2009), ao falar sobre o perfil das associações de usuários de serviços de saúde mental no Brasil, aponta alguns aspectos que dificultam a atuação de tais entidades. Ele afirma que um dos problemas principais das associações de usuários e familiares, e do próprio Movimento Antimanicomial, está em suas bases de sustentação econômica, organizacional e política. O autor demonstra que muitos dos recursos de tais associações vêm de coordenações de saúde mental comprometidas com a Reforma Psiquiátrica e salienta que essa dependência é problemática para a continuidade da entidade. Ele mostra também que é comum a vinculação de tais entidades com corporações profissionais e, novamente, afirma que isso pode se constituir como risco.

Isso gera dependência em relação aos recursos de seus aparelhos institucionais, centralização política nos principais detentores de cargos e lideranças, descolamento das bases do movimento e continuidade da concentração do poder nas mãos dos profissionais (Vasconcelos, 2009, p. 2).

A Asussam, atualmente, tem parcerias tanto com a Coordenação Municipal de Saúde Mental de Belo Horizonte quanto com o Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais (CRP-MG), que oferecem espaço e infraestrutura básica para a realização das reuniões, entre outras instituições. Não nos propomos aqui a fazer uma discussão sobre os aspectos estruturais, organizacionais e sociopolíticos que permeiam tais parcerias. Propomo-nos a observar qual é a percepção que os membros da Associação têm em relação aos aspectos institucionais da entidade, na forma como está atualmente constituída.

José diz da parceria entre a Associação e o CRP-MG, apresentando sua opinião sobre o fato de a Asussam não ter uma sede própria, realizando suas reuniões de diretoria no espaço do Conselho:

Agora nós temos uma sede, que é aqui, praticamente aqui a sede da Asussam, no CRP. Mas aqui a estrutura é toda psicológica, e nós somos tutelados pelos psicólogos e, apesar de tudo, não mudou nada. Nós estamos lobotomizados, porque nós não temos uma expressão, nós não temos voz. Não é porque a gente não quer não [...]. A Asussam é uma organização séria, competente, muito criança, 18 aninhos, não sabe nada da vida, é virgem, não desmamou ainda. Quando ela desmamar, vai ser quando ela tiver a sede, a estrutura, um lote: "Aqui chama Asussam". Mesmo que seja um lote de dois metros quadrados [...]. Ela é virgem, ela não tem dinheiro, não tem infraestrutura porque ela não tem uma sede. Apesar daqui parecer uma sede, aqui é a sede do CRP. Aquela bandeira é do CRP, ela é sua, porque você é psicóloga, você pode pegar ela e levar pra sua casa, na maior.

Para José, a importância de ter uma sede própria está ligada à autonomia da associação e também ao potencial de constituição de identidade coletiva que uma instituição pode propiciar. Ao dizer que a entrevistadora pode levar a bandeira do CRP para a sua casa, por ser uma psicóloga, ele aponta para o aspecto de identidade e pertencimento. O sentimento de pertencimento a um grupo social é potencializado pelo espaço físico que esse grupo tem para se organizar. José tem uma visão crítica em relação ao relacionamento tutelar que a Associação tem com o CRP e considera que isso dificulta a possibilidade de maior expressão e talvez atuação da entidade em um âmbito mais amplo que seja de sua competência. Para ele, a aquisição de uma sede propiciaria aquisição de recursos e potencializaria a autonomia da entidade, o que ele denominou processo de "desmamar".

Para Flávia9,outra integrante do grupo, a Asussam ainda não tem a autonomia jurídica suficiente e necessária para promover atividades de defesa de direitos que ela considera importantes, uma vez que a entidade não está inscrita no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ).

Ela [a Asussam] é registrada, mas ela não tem força política pra fazer uma oficina, pra gerar uma oficina de produção e renda, pra criar um projeto, pra colocar os usuários pra concorrer [...] em prêmios [...]. E, pra fazer alguma coisa pelo usuário, ela tem que ter um CNPJ. Porque não existe ONG para lutar pelo direito do usuário se nem ela não tem um CNPJ, porque, dentro dos trâmites da lei, ela já está irregular. Não tem sede própria, ela não responde por ela mesma, judicialmente não responde.

Flávia considera que uma associação, para ser considerada um "órgão político", precisa ter existência jurídica. A formalização da entidade, "nos trâmites da lei", segundo a entrevistada, é essencial para a força política, ou seja, a capacidade de ação política efetiva diante dos demais órgãos públicos e da sociedade. Para Flávia, a autonomia da entidade está relacionada ao seu registro junto ao CNPJ, pois, assim, ela poderá adquirir recursos para convênios e parcerias com outros órgãos, poderá também responder juridicamente em ações de denúncias de violação de direitos às pessoas com sofrimento mental, por exemplo. Em relação à sede própria, ela salienta:

Sede já tem no Conselho Regional de Psicologia, né. Só que uma ONG sem CNPJ não existe. Aqui dentro do Conselho ela não pode fazer oficina com os usuários, ela não tem uma sede pra receber, ela tem uma sede pra fazer reunião, pra fazer oficina ela não tem. Porque o mais importante para um cidadão em situação de sofrimento mental é a desenvoltura da inserção social.

Aqui, a necessidade de sede própria está ligada ao objetivo de promoção da inserção social. A entidade, na opinião de Flávia, teria como função desenvolver tal objetivo por meio de oficinas. Flávia mostra que, sem espaço físico, fica difícil a promoção de atividades mais amplas pela Associação. Observamos que, nas reuniões da Asussam, os membros discutem as atribuições da entidade, estando com um constante incômodo em relação ao fato de que poderiam expandir seu campo de atuação. Uma das atividades muito comentada nas reuniões de diretoria são as reuniões itinerantes. Em períodos anteriores, a Associação tinha essa prática, os membros iam até os serviços de saúde mental para conversar com os usuários, prática que se perdeu há algum tempo e vem sendo discutida pelos membros do grupo.

A autonomia jurídica e estrutural são questões discutidas e vislumbradas por alguns integrantes da Associação. Percebemos que, apesar de sua dependência estrutural em relação a instituições parceiras, os membros têm clareza de seu papel de controle social e de sua autonomia como entidade da sociedade civil separada das demais instituições parceiras. Assim, podemos perceber a postura crítica de alguns membros da Associação, que aparece em suas opiniões sobre a estrutura, o funcionamento e as atribuições da entidade para que ela seja efetiva e alcance seus objetivos.

A participação política na Asussam, como seus membros colocam, abrange a conquista de direitos e de autonomia por parte das pessoas com sofrimento mental, o que aponta para os ganhos político-sociais e também subjetivos das pessoas (Ferreira et al., 2008):

Com a participação dos usuários na cena pública e centros de decisões vê-se a conquista crescente de seus direitos e de sua autonomia [...] Esse protagonismo tem ganhado espaço em um regime democrático, em que a Asussam, representando os usuários, tem podido cobrar do Poder Público as ações da Reforma Psiquiátrica condizentes aos princípios da luta Antimanicomial: lutando pelos direitos humanos, dentre eles, a liberdade e a cidadania (p. 233).

Observa-se que as potencialidades do associativismo, nesse caso, possibilitam desenvolvimento de cidadania, no sentido amplo e democrático do termo. As ações da Associação, além do aspecto cívico, que abrange a representação em instâncias políticas formais com efetiva contribuição nas discussões sobre saúde mental e políticas públicas, são ações voltadas para a expressão, o "fazer parte", que Teixeira (1997) salienta. Os membros da Associação estão inclusos na cidade por meio de suas ações, não somente políticas, mas culturais e sociais. Nossas observações das atividades da Associação nos permitiram considerar que participar de um espaço deliberativo propicia o desenvolvimento de autonomia nos indivíduos e, dialeticamente, contribui para o processo de emancipação da sociedade que, como afirma Habermas (1983), é um caminho duro e incerto. Diante das dificuldades e incertezas, ainda é possível acreditar no caminho de emancipação. Como os próprios membros da Associação afirmam: "A mudança social só ocorrerá na medida da nossa liberdade interior" (Ferreira et al., 2008, p. 233).

 

Considerações finais

Após uma discussão teórica sobre os aspectos que envolvem a participação política, sobretudo na perspectiva deliberacionista, buscamos apresentar, de forma descritiva, a estrutura e funcionamento de uma associação de pessoas com sofrimento mental que atua de maneira ativa e propositiva no cenário político da cidade de Belo Horizonte. A associação conta, em sua composição, exclusivamente com usuários de serviços de saúde mental, tendo parcerias importantes com outras instituições que lutam pelos direitos das pessoas com sofrimento mental. Tais parcerias proporcionam um apoio para o desenvolvimento da instituição e para a efetividade de suas ações. Observa-se que as potencialidades do associativismo, neste caso, possibilitam desenvolvimento de cidadania. As ações da associação abrangem tanto o aspecto cívico, de representação em instâncias políticas formais com efetiva contribuição nas discussões sobre saúde mental e políticas públicas, quanto o aspecto voltado para a expressão de interesses e identidades, o "fazer parte" (Teixeira, 1997).

Quanto ao perfil típico de associações de usuários e familiares de serviços de saúde mental apresentado nos estudos de Vasconcelos (2009), podemos identificar que a Asussam apresenta características muito específicas e que seus membros têm uma visão crítica em relação à finalidade e estrutura organizacional da entidade o que, a nosso ver, é um ponto forte, pois a crítica interna potencializa o amadurecimento e o desenvolvimento de maior autonomia da entidade e, consequentemente, dos usuários.

A Asussam, portanto, é uma associação que se propõe a defender os direitos de seus associados, mas, mais que isso, está integrada a um movimento social amplo, de defesa dos direitos humanos e busca pela dignidade humana, exercendo, assim, papel importante ao colocar em debate questões sociais e políticas de interesse coletivo. Sua existência aponta para o potencial sociopolítico e crítico dos usuários no Movimento Antimanicomial em Minas Gerais.

 

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Texto recebido em 9 de maio de 2013 e aprovado para publicação em 22 de fevereiro de 2015.

 

 

* Mestra em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Endereço: Rua Hermilo Alves, n.º 159, ap. 603 - Santa Tereza, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 31010-070. E-mail: carolina.novaescunha@gmail.com.
** Doutora em Ciências Humanas, Sociologia e Política pela UFMG. Endereço: Rua Cura D'Ars, n.º 1357, ap. 102 - Barroca, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 30431-083. Telefone: (31) 99698-5187. E-mail: goulartstella2011@gmail.com.
1 Escolhemos a terminologia "Movimento Antimanicomial" por ser assim referido na cartilha elaborada pelos usuários de saúde mental da Associação dos Usuários de Serviços de Saúde Mental de Minas Gerais (Asussam-MG) em parceria com a Escola de Saúde Pública de Minas Gerais (ESP/MG). Goulart (2006) utiliza o termo "Movimento Antimanicomial" como sendo a nomenclatura mais conhecida e que facilita a identificação do movimento em seu contexto geral, incluindo ambas as correntes que hoje compõem o movimento no Brasil, a Renila (Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial) e o Movimento Nacional de Luta Antimanicomial (MNLA).
2 Agradecemos à Asussam-MG, sobretudo ao presidente da entidade, quem contribuiu para a escrita deste material, realizando a leitura e oferecendo informações sobre a estrutura da entidade. O texto é resultado da observação participante desenvolvida ao longo do processo de pesquisa.
3 Arthur Bispo do Rosário é o nome do primeiro centro de convivência criado em Belo Horizonte.
4 Nome fictício usado para o entrevistado.
5 Salienta-se que todas as parcerias citadas no texto se davam durante o período de observação participante no qual estivemos acompanhando as atividades da Asussam, de forma que não fazemos referência a parcerias anteriores nem posteriores ao período da pesquisa.
6 A Comissão de Reforma Psiquiátrica do Conselho Municipal de Saúde de Belo Horizonte é regulamentada pela Resolução CMS–105/2003(Resolução CMS/BH,2003).
7 A cartilha denominada "Saúde Mental em Letras Mineiras" foi desenvolvida a partir de uma ação conjunta entre a Escola de Saúde Pública de Minas Gerais (ESP-MG) e a Asussam, no intuito de ser um texto feito por usuários e para usuários, com apoio do Grupo de Produção Temática em Saúde Mental da ESP-MG.
8 Os nomes dos entrevistados foram modificados a fim de manter o sigilo, como proposto no termo de consentimento livre e esclarecido por eles assinado.
9 Nome fictício usado para a entrevistada.

 

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