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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.26 no.2 Belo Horizonte maio/ago. 2020
https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2020v26n2p737-759
ARTIGOS
DOI - 10.5752/P.1678-9563.2020v26n2p737-759
Surdez e preconceito: revisando a produção científica
Deafness and prejudice: reviewing the scientific production
La sordera y prejuicio: revisión de la producción científica
Andressa Araújo de Araújo*; Joilson Pereira da Silva**
Resumo
Este estudo objetivou compreender de que modo a surdez e o preconceito vêm sendo investigados na literatura científica nacional. Para isso, realizouse uma revisão nos periódicos, mais especificamente nas bases de dados Portal Scielo e Pepsic, no período de janeiro de 2006 a dezembro de 2016, num total de 15 artigos analisados. Os resultados e a discussão tratam da análise bibliométrica e da análise de conteúdo. Percebe-se que a maioria dos trabalhos são qualitativos. Apesar de a visão socioantropológica ter ganhado espaço, a visão clínico-terapêutica ainda é presente e, por causa disso, preconceitos, humilhações e discriminações são sentidos pelos surdos, que não preenchem o padrão de normalidade imposto pela maioria, ouvinte. Pode-se concluir que há um longo percurso a ser trilhado para familiares, profissionais e pesquisadores desenvolverem a temática e conscientizarem a população, objetivando mitigar o preconceito ainda existente.
Palavras-chave: Exclusão. Deficiência auditiva. Discriminação. Preconceito. Surdez.
Abstract
This study aimed to understand how deafness and prejudice have been investigated in Brazilian scientific literature. To that end, a review was carried out in the periodicals, more specifically in the Scielo and Pepsic website databases, from January 2006 to December 2016, in a total of fifteen articles were analyzed. The results and the discussion are about bibliometric and content analysis. It Is realized that the majority of the works are qualitative. Although the socio-anthropological view has gained ground, the therapeutic clinical view is still present, and, because of this, prejudices, humiliations and discrimination are felt by the deaf, who do not meet the standard of normality imposed by the majority, the listeners. It can be concluded that there is a long way to go for family members, professionals, and researchers to develop the theme and raise awareness of the population, to mitigate the prejudice that still exists.
Keywords: Exclusion. Hearing disability. Discrimination. Prejudice. Deafness.
Resumen
Este estudio tuvo como objetivo comprender cómo la sordera y los prejuicios están siendo investigados en la literatura científica nacional. Para eso, se llevó a cabo una revisión en periódicos, más específicamente en las bases de datos Scielo portal y Pepsic, entre enero de 2006 y diciembre de 2016, un total de quince artículos analizados. Los resultados y el debate se ocupan del análisis bibliométrico y análisis de contenido. Se observa que la mayoría de los trabajos son cualitativos. Aunque la visión socio-antropológica haya ganado terreno, la visión médico-terapéutica todavía está presente y, debido a eso, los prejuicios, la humillación y la discriminación son experimentados por los sordos que no cumplen con los estándares de normalidad impuestos por la mayoría, oyente. Se puede concluir que hay un largo camino a ser recorrido por las familias, profesionales e investigadores para desarrollar el tema y concientizar a la población, con el objetivo de mitigar los prejuicios que aún existen.
Palabras clave: Exclusión. Discapacidad Auditiva. Discriminación. Prejuicio. Sordera.
1. INTRODUÇÃO
Na luta histórica dos surdos, identifica-se que eles foram, por muito tempo, não aceitos na sociedade. Na Antiguidade, excluídos e rejeitados; séculos depois, inferiorizados e perseguidos pelos nazistas. Goldfeld (1997) afirma que os surdos eram percebidos com piedade e compaixão ou como castigo de deuses, sendo, por isso, enfeitiçados, abandonados e castigados. Embora haja avanços significativos na legislação brasileira com relação à inclusão das pessoas com deficiência e discussões sobre as diferenças estejam em evidência, ainda hoje, os surdos sofrem discriminação por não preencherem o padrão cristalizado de normalidade.
No Brasil, os estudos sobre o preconceito apresentam uma história ainda recente: somente aparecem, a partir da década de 1990, em manuais de Psicologia Social; enquanto, nos Estados Unidos, o tema é discutido desde a década de 1920 (Lima, 2006). Muitos autores dedicaram-se a estudar o preconceito, entre eles citam-se: Allport, Adorno e Horkheimer, Arendt, Arnold Rose e Hellu. Allport (1954), um dos primeiros a pesquisar as raízes do preconceito, conceitua-o como uma atitude evitativa ou hostil contra uma pessoa, simplesmente porque ela pertence a determinado grupo. O preconceito, sob o olhar de Hannah Arendt, é percebido como ligado ao passado e, por isso, torna-se tão forte e perigoso, obstando o juízo e a experiência no presente (Peregrino, 2013).
Cada vez mais, o modelo socioantropológico de surdez, que interpreta o surdo como diferente e não deficiente, vem ganhando espaço e respeito, mas, concomitantemente a isso, nota-se que o preconceito definiu e ainda define a história do surdo. A partir disso, a ideia de um estudo de revisão de literatura, denominado estado da arte, deu-se com o objetivo de conhecer o que já existe de produção científica sobre a temática "surdez e preconceito", incluindo os limites, lacunas e informações que possam auxiliar futuras pesquisas. Nesse contexto, foi realizado um levantamento bibliográfico dos artigos científicos, desenvolvidos sobre o tema, no período de janeiro de 2006 a dezembro de 2016, em nível nacional.
2. MÉTODO
2.1. DELINEAMENTO
Este estudo consiste em uma pesquisa bibliográfica, denominada estado da arte. Ferreira (2002) esclarece que o estado da arte faz referência às produções científicas de determinado assunto, visando à aquisição de conhecimentos sobre as lacunas e limites para, a partir disso, sugerir novos estudos científicos.
Nesta pesquisa, a busca dos artigos foi realizada pela autora, em conformidade com a base de dados e descritores, critérios de inclusão e exclusão, e procedimentos de coletas e análise de dados, previamente delimitados nas seções seguintes.
2.2. BASES DE DADOS E DESCRITORES UTILIZADOS
A pesquisa foi realizada nos meses de janeiro e fevereiro de 2017, por meio da busca eletrônica de artigos indexados nas bases de dados: Portal Scielo e Pepsic, a partir da palavra-chave "surdez e preconceito", em todos os índices. Foram realizados cruzamentos com as palavras-chave "surdez e rejeição", "surdez e exclusão", "surdo-mudo", "surdez e humilhação", "surdo e acessibilidade", "surdez e deficiência", sendo estas pesquisadas também em todos os índices, a fim de ampliar o alcance da pesquisa.
2.3. CRITÉRIOS DE INCLUSÃO E DE EXCLUSÃO
A busca dos artigos nas bases de dados supracitadas se deu por meio dos seguintes critérios de inclusão:
a) publicações de artigos nacionais que estivessem compreendidos entre o período de janeiro do ano de 2006 a dezembro de 2016;
b) artigos que abordassem o preconceito e a surdez; e
c) estudos em formato de artigo científico.
Fizeram parte do critério de exclusão e não foram considerados para a pesquisa: os artigos repetidos, que não estavam no lapso temporal acima delimitado; e os que não eram no formato de artigos, ou seja, dissertações, teses, etc.
2.4. PROCEDIMENTO DE COLETA E ANÁLISE DE DADOS
Inicialmente, foram identificadas 13 publicações de artigos nacionais no site Scielo do Brasil e 6 no endereço eletrônico do Pepsic, totalizando 19 estudos.
Foi realizada uma leitura minuciosa dos resumos e excluíram-se os trabalhos que não se enquadravam nos critérios de inclusão (4 artigos foram excluídos, 2 do Scielo e 2 do Pepsic, visto não tratarem nitidamente do preconceito e da surdez, foco do trabalho). Assim, quinze artigos nacionais constituem a amostra deste estudo, onze estudos na Scielo e quatro na Pepsic.
Após essa primeira seleção realizada pela avaliação dos resumos, os estudos foram lidos na íntegra e separados os seguintes aspectos: autores, ano, base de dados, periódico de veiculação, tipo de estudo, objetivos e principais resultados.
Dessa forma, foram realizados dois tipos de análise: dos aspectos bibliométricos e do conteúdo dos artigos. Vale destacar que as categorias foram excludentes, ou seja, cada artigo foi incluso em apenas uma categoria de análise.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados e a discussão apresentados a seguir baseiam-se na análise e descrição das características de 15 artigos. Inicialmente, serão expostos os aspectos bibliométricos e, em seguida, a análise de conteúdo, que trata da discussão de três categorias, organizadas de acordo com a similitude dos objetivos e com os principais resultados encontrados.
3.1. ANÁLISE BIBLIOMÉTRICA
Foi realizada essa análise, de acordo com as variáveis: autoria, ano, periódico de veiculação e tipo de estudo, mostrado na quadro 1.
3.1.1. AUTORIA
No que diz respeito à autoria, 5 trabalhos foram escritos por um autor; 5 por dois autores; e outros 5 por três autores. Todos escritos por autores diferentes.
Procedeu-se a um levantamento acerca da formação acadêmica dos primeiros autores de cada um dos 15 artigos considerados neste estudo. Verificou-se que 8 tinham doutorado; 5, mestrado; 1, pós-doutorado; e, num dos artigos, não se encontrou a formação acadêmica do autor, que pertence à University College Dublin (UCD), de Dublin, Irlanda.
Quanto às áreas de conhecimento, constatou-se a seguinte distribuição: 6 da área de estudo da Psicologia (Bevilacqua, Yamada, & Zanardi, 2009; Santos, Vieira, & Faria, 2013; Bisol, & Sperb, 2010; Andrade, & Alencar, 2010; Abreu, Silva, & Zuchiwschi, 2015; Camargos, & Belo, 2010); 4 da área da Educação (Lacerda, 2006; Cruz, & Dias, 2009; Borges, & Costa, 2010; Witkoski, 2009); 1 da área das Ciências Sociais (Francelin, Motti, & Morita, 2010); 1 da Fonoaudiologia (Seno, 2009); e 1 da área Linguística (Gesser, 2008).
3.1.2. ANO
Já com relação ao ano em que foram publicados os trabalhos, percebe-se que a maior parte deles é datada de 2010, representando 33,3% (5 artigos) do total; seguido do ano de 2009, com 26,6% (4 artigos). Os anos de 2007, 2008, 2013, 2014, 2015 e 2016 são representados por um artigo cada.
3.1.3. PERIÓDICO DE VEICULAÇÃO
Com relação aos periódicos de veiculação, e mais especificamente à área focal de interesse dos estudos, destaca-se a prevalência, nos estudos nacionais, de revistas ligadas à Psicologia, num total de 6 artigos (Bevilacqua et al., 2009; Abreu et al., 2015; Santos, Vieira, & Faria, 2013; Bisol, & Sperb, 2010; Camargos, & Belo, 2010; Andrade, & Alencar, 2010); 1 de Psicopedagogia (Seno, 2009); 6 de Educação (Lacerda, 2006; Cruz, & Dias, 2009; Borges, & Costa, 2010; McDonnell, 2016; Witkoski, 2009; Pivetta, Saito, & Ulbricht, 2014); 1 na área de Saúde (Francelin et al., 2010); e 1 na linguagem (Gesser, 2008). É importante considerar que 40% do total de artigos são da área focal de interesse da Psicologia, o que confirma o quanto ela tem ganhado espaço e se interessado pelo estudo da surdez. Vale ressaltar, contudo, que o campo de possibilidades é imenso, e a área da Psicologia deve continuar e aprofundar suas pesquisas para potencializar as reflexões e possíveis ações futuras.
No que se refere à região geográfica de localização dos autores, a relevância aparece nas regiões Sudeste e Sul, com 10 e 3 artigos, respectivamente, o que, de acordo com Marin, Bueno e Sampaio (2005), deve-se aos estudos avançados sobre o tema, sobretudo no que concerne às duas regiões de maior desenvolvimento do País. Além disso, duas publicações são da Região Centro-Oeste.
3.1.4. TIPOS DE ESTUDO
Quanto aos tipos de estudo dos trabalhos analisados, foram encontrados 10 relatos de pesquisa empírica, natureza qualitativa, o que representa 80% do total de trabalhos. Um deles, entretanto, apresenta também um relato de experiência, por ser a autora surda e dar seu testemunho. Dois são estudo de caso. Do total, 3 artigos são revisão de literatura, ou seja, 20%.
O fato de serem, em sua maioria, pesquisas qualitativas, permite dizer que, a princípio, os pesquisadores dos estudos nacionais tiveram uma preocupação com a análise do mundo empírico em seu ambiente natural, valorizando o contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e com a situação que está sendo estudada, para uma maior compreensão do fenômeno e aproximação com a realidade. Pode-se, porém, considerar uma lacuna no que se refere à investigação dessa temática, sob um viés quantitativo, ou quantitativo-qualitativo.
4. APRESENTAÇÃO DAS CATEGORIAS
A análise de conteúdos permitiu a identificação de três categorias: A influência do modelo clínico-terapêutico e socioantropológico, e sua relação com o preconceito, que trata dos modelos teóricos envolvidos na compreensão da surdez e como alguns estão atrelados ao fenômeno do preconceito; a segunda tem como título Visualizações e manifestações de preconceitos contra os surdos, abordando diversos âmbitos ou situações em que estes ocorrem; e a última categoria, denominada Inclusão e surdez, apresenta o que os estudos discutem sobre a questão do preconceito na educação dos surdos e do mercado de trabalho. Essas foram assim classificadas considerando-se os objetivos deste estudo.
4.1. A INFLUÊNCIA DO MODELO CLÍNICO-TERAPÊUTICO E SOCIOANTROPOLÓGICO, E SUA RELAÇÃO COM O PRECONCEITO
Esta categoria apresenta os modelos teóricos envolvidos na compreensão da surdez: o clínico-terapêutico e o socioantropológico. Fazem parte desse grupo três artigos, de Gesser (2008), McDonnell (2016) e de Bisol e Sperb (2010), o que representam 20% do total de trabalhos aqui analisados. A surdez, no início de sua história, mais especificamente, e por muito tempo, foi concebida a partir do conceito teórico clínico-terapêutico, que, como o próprio nome sugere, refere-se à patologia, ao déficit biológico, focaliza a perda auditiva e percebe o surdo como deficiente. O oralismo, nesse caso, é reconhecido como o padrão da normalidade. Segundo Skliar (2013), nessa concepção, o surdo é considerado uma pessoa que não ouve. "É definido por suas características negativas; a educação se converte em terapêutica, o objetivo do currículo escolar é dar ao sujeito o que lhe falta: a audição, e seu derivado, a fala" (p. 105).
A partir da década de 60 do século XX, o modelo clínico-terapêutico começa a ser questionado, em especial, por duas observações, conforme aponta Skliar (2013), que fazem com que outros especialistas, principalmente educadores que trabalham com surdez, discordem dessa abordagem, originando a perspectiva socioantropológica da surdez. São elas: primeiro, o fato de que os surdos formam comunidades cuja razão que os liga é a língua de sinais; e, segundo, percebe-se que filhos surdos de pais surdos demonstram uma identidade mais equilibrada, melhores níveis acadêmicos, condições de leituras semelhantes aos ouvintes e não apresentam tantos problemas sociais e afetivos quando comparados aos filhos surdos de pais ouvintes.
A partir da década de 80 do século XX, ganha força então o modelo socioantropológico. Este corresponde a uma nova visão sobre a surdez, de respeito à diferença, contrária à concepção de deficiência, imposta pelo modelo clínico (Dalcin, 2009). Percebe a surdez como pertencente a interações normais, nas quais a língua de sinais é respeitada e vista como fundamental para o desenvolvimento linguístico e cognitivo do surdo (Bisol, Simioni, & Sperb, 2008).
O artigo de Gesser (2008) teve como foco discutir esses dois modelos teóricos, utilizando, porém, os termos patológico e cultural, respectivamente. O autor apresenta conceitos como "deficiente auditivo", "surdo-mudo" e "mudo", e esclarece as conotações negativas que os nomes sugerem, explicando o quanto estão ligados à ideologia dominante ouvinte e aos estereótipos e aos imaginários sociais que constituem o poder e o saber clínico.
A esse respeito, vale ressaltar que os termos "surdo-mudo" ou "mudo" não estão corretos, pois os surdos não apresentam, necessariamente, um comprometimento no aparelho fonador e neurológico e, por esse motivo, não têm nada que o impeça de falar, portanto não são necessariamente mudos (Santos, 2015). O termo "deficiente auditivo" refere-se, de algum modo, a uma patologia que precisa ser tratada, enquanto o surdo representa o indivíduo que pertence a uma comunidade e tem identidade.
Segundo Gesser (2008), o termo "surdo" "rejeita o discurso ideológico dominante construído nos moldes do oralismo, que localiza o surdo em dimensões clínicas e terapêuticas da cura, da reeducação, da normalização", demonstrando o "discurso pautado em paradigmas da diversidade linguística e cultural" (p. 225).
A respeito ainda do desenvolvimento dessa visão e conquista de espaço dos surdos, McDonnell (2016), em seu artigo Deficiência, surdez e ideologia no final do século XX e início do século XXI, traça essa discussão do modelo clínicoterapêutico e socioantropológico, referindo-se à ideologia de normalização e social, respectivamente. O autor explica em seu estudo que existe, basicamente, uma relação de dominação de um lado, e de outro, a existência de um modelo social de deficiência e de um modelo sociocultural de surdez, baseado em ideias de justiça social e de direitos civis.
Assim, McDonnell (2016) conclui que esta última ideologia, a social, marcou mudanças de paradigmas importantes na sociedade ocidental, pois um novo pensamento surgiu em relação à deficiência e à surdez, sendo responsáveis por leis antidiscriminação, além da introdução de reformas estruturais, visando à criação de sociedades mais inclusivas.
Corroborando esse pensamento, Bisol e Sperb (2010), trazem em seu artigo os discursos clínico-terapêutico e socioantropológico tradicionais. Este último termo, segundo eles, gerou não apenas teorias e pesquisas, mas base para diferentes abordagens terapêuticas, de reabilitação e de educação dos surdos, e para o modo como a surdez passou a ser vista em sociedade.
Vê-se que as abordagens teóricas clínico-terapêuticas e socioantropológica são ainda consideradas atuais e relevantes. Não obstante, percebe-se que outras maneiras de compreender e pensar a surdez são exploradas pelos pesquisadores. O autor apresenta, então, que contribuições da psicanálise e das teorias da narrativa amplificam a compreensão do sujeito surdo (Bisol, & Sperb, 2010).
Mesmo utilizando terminologias diferentes, os três artigos referem-se aos modelos teóricos clínico-terapêuticos e socioantropológico: o de Gesser (2008), como paradigma patológico e cultural, respectivamente; de McDonnell (2016), como ideologia de normalização e social; e, por fim, Bisol e Sperb (2010) consideram o modelo clínico terapêutico e socioantropológicos tradicionais e complementam as contribuições já existentes da psicanálise e das teorias das narrativas.
Apesar de a visão socioantropológica ter conquistado espaço, os resultados dos trabalhos dessa categoria mostram como ainda ocorrem resquícios da visão clínico-terapêutica e atos de preconceito, humilhações e discriminações.
4.2. VISUALIZAÇÕES E MANIFESTAÇÕES DE PRECONCEITOS CONTRA OS SURDOS
Essa categoria compreende seis produções que correspondem a 40% do total de artigos, em que se observa o fenômeno do preconceito contra o surdo em diversos âmbitos ou situações. São elas: Witkoski (2009), Andrade e Alencar (2010), Abreu et al. (2015), Bevilacqua et al. (2009), Francelin, Motti e Morita (2010) e Camargos e Belo (2010).
Nesses estudos, observou-se que o preconceito ainda é muito comum no que diz respeito à surdez e a tudo o que a envolve, sendo uma realidade na vida dos surdos. Percebem-se exemplos de preconceitos no cotidiano deles, de forma geral, e de humilhações, em situações específicas, como as implicações da surdez adquirida em adultos; em adolescentes com implante coclear; o duplo preconceito, vivenciado por surdos e homossexuais; e, por fim, a história real de um surdo que foi interpretado como sendo louco.
O preconceito é um "conceito, opinião formada antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos" (Cunha, 2007, p. 629). Aranson, Wilson e Akert (2002) complementam que as pessoas constroem interpretações do mundo com base no que consideram certo; e, daí, impõem sobre as outras uma série de comportamentos, na forma de inclusão ou exclusão e, no caso desta última, os comportamentos podem ser manifestados por preconceito, discriminação e estereótipos.
O artigo de Witkoski (2009) teve como objetivo, considerando os preconceitos que envolvem o ser surdo, discutir as práticas oralistas muitas vezes impostas. Dessa forma, o estudo traz, pelo resgaste de vivências de surdos e da própria vivência da autora, surda, exemplos de formas de preconceito nas diversas esferas pessoais: trabalho, escola e sociedade. Ressalta que, além do preconceito dos outros, é comum o desenvolvimento do autopreconceito.
O preconceito sentido na família do surdo é abordado no estudo de Witkoski (2009), especialmente na aceitação da Língua Brasileira de Sinais (Libras) como forma de comunicação com seus filhos surdos e na resistência para aprenderemna. Já no âmbito escolar, a autora retrata que, apesar de ter direito a estar incluso em uma sala de aula regular, o surdo percebe dificuldades nesta, pois esbarra na linguagem diferente, e isso acaba por excluí-lo.
A este respeito, Lima, Maia e Distler (1999) advertem que a falta de comunicação pela utilização de outra língua e a resistência para utilizar a Libras reflete a não aceitação pelos pais da surdez do filho. Essa realidade impulsiona uma troca limitada, ou quase inexistente, de informações e experiências, o que distancia o surdo de sua família e vice-versa. Já relacionado à escola, a grande dificuldade enfrentada pelo surdo é o não compartilhamento de uma língua comum e, em muitos casos, a falta de ajuda de um intérprete de Libras, o que não permite seu avanço no ambiente de aprendizado.
Andrade e Alencar (2010), no artigo Juízos de pessoas surdas sobre humilhação: passado e presente, trata da humilhação sobre o surdo e teve como objetivo comparar os juízos morais de pessoas surdas sobre a reação a uma humilhação, vivenciada no passado, e sobre a reação hipotética a uma humilhação similar no presente.
Como resultado, no artigo de Andrade e Alencar (2010), a diferença temporal influenciou os juízos dos participantes: as reações ligadas ao passado significam "ausência ou rompimentos de vínculos em relação ao agressor" e "defesa da integridade física"; quanto ao presente, trata-se de "ausência ou rompimento de vínculo", "solução de conflito" (p. 8).
A perspectiva do ouvintismo, em voga durante tanto tempo, ainda é presente, e suas medidas provocaram constantes humilhações e constrangimentos aos surdos desde sua infância, uma vez que sua identidade surda não foi concebida, reconhecendo-se a surdez não como uma diferença, e sim como anormalidade, baseando-se na concepção clínico-terapêutica de que isso precisaria ser corrigido pela oralização (Andrade, & Alencar, 2010).
O ouvintismo teve e tem espaço na sociedade, mesmo com tantas conquistas dos surdos, pois, conforme destaca Skiliar (1998), contou com a cumplicidade da Medicina, considerando-se, inclusive, o implante coclear (IC), e também dos pais e familiares dos surdos, professores, profissionais de saúde e de alguns surdos que concordam com a visão da ciência e da tecnologia, idealizando que estes falem e escutem. "Trata-se de um conjunto de representações dos ouvintes, a partir do qual o surdo está obrigado a olhar-se e a narrar-se como se fosse ouvinte" (Skiliar, 1998, p. 15). Ainda sobre o preconceito e os discursos baseados na norma, Abreu et al. (2015), em seu artigo Surdos e homossexuais: a (des)coberta de trajetórias silenciadas, abordam o enfrentamento do duplo preconceito: ser surdo e homossexual. O artigo apresentou como objetivo investigar as primeiras experiências homossexuais dos surdos e o confronto do preconceito duplo que estes vivenciam.
Na visão dos autores, a heterossexualidade ainda é vista como a descrição da norma, sendo institucionalizada, e a homossexualidade foi assumida como um discurso médico-moral. Existe uma dualidade opositora entre os dois, distinguindo o anormal e o normal (hierarquizado), bem como uma valorização de um sobre o outro. Assim também acontece com a surdez como deficiência ou diferença. Por essa razão, o surdo e o homossexual sofrem duplo preconceito por estarem, duas vezes, indo "contra" o padrão cristalizado de normalidade imposto pela sociedade. Os sujeitos da pesquisa negam, inclusive, a condição de homossexual para a sociedade, como forma de proteção ao duplo preconceito.
Bevilacqua et al. (2009), por meio do artigo intitulado A experiência do adolescente usuário do implante coclear, entrevistou quatro adolescentes do sexo feminino com implante coclear (IC), objetivando compreender a vida desses adolescentes com IC e como vivem diversos contextos: escola, família, namoro; enfim, questões que permeiam o fenômeno adolescer.
Os resultados obtidos demonstram que o contexto escolar era marcado por dificuldades, especialmente no que se referem à língua portuguesa. Com relação ao namoro, ou ao "ficar", percebem-se sentimentos de vergonha, inferioridade e preconceito e estereótipo. Já com relação à amizade, os participantes comentaram que o IC favoreceu a comunicação e o relacionamento interpessoal, mas a exclusão e rejeição também fazem parte da realidade vivida por elas, assim como o estigma da deficiência.
Francelin et al. (2010), no artigo que objetivou analisar as implicações da surdez adquirida em adultos, na vida familiar, social e no trabalho, perceberam que a vergonha e discriminação fazem-se muito presentes na vida dos sujeitos, resultando na exclusão social, na dificuldade de adaptação, no isolamento e na frustração, e até na depressão.
É importante salientar que existe uma Política Nacional de Atenção à Saúde Auditiva, implantada a partir de 2004 (Portaria nº 2.073, 2004), que ampara o deficiente, mas nem sempre é assimilada pela sociedade e pela própria pessoa com deficiência. São necessários recursos para reabilitação e divulgação de conhecimentos que garantam ultrapassar os, até então, desafios de uma sociedade ouvinte-majoritária (Francelin et al. 2010).
No artigo Quando a lei é surda: um caso recente na história da relação entre Psicologia e Direito, Camargos e Belo (2010) analisaram o caso de José, um surdomudo que foi tomado como louco. Ele cometeu uma tentativa de homicídio e foi considerado louco, recebendo uma medida de segurança para internação, o que revela a periculosidade em torno da ideia de loucura e o preconceito que estigmatiza a deficiência, além da falta de acessibilidade. A lei, inicialmente, revelou-se surda, visto que não tinha recursos e pessoas que pudessem compreender sua linguagem. O Tribunal de Justiça, posteriormente, conseguiu um programa auxiliar, e José teve reconhecidos seus diretos de defesa e de se expressar, não com o objetivo de isentar-se de sua responsabilidade, porém de ser tratado com um sujeito de direito e deveres. Esse fato demonstra o desconhecimento da sociedade, a estigmatização existente e a falta de acessibilidade, imposta ao surdo nos diversos âmbitos.
Diante do exposto, verifica-se que os estudos compilados nessa categoria revelaram que, apesar das leis e dos progressos já existentes, as pesquisas comprovam o quanto os surdos ainda sofrem humilhação, discriminação, exclusão e preconceito.
5.3. INCLUSÃO E SURDEZ
Esta categoria compreende 6 artigos, ou 40% do total de artigos, dos quais 5 têm como propósito investigar a inclusão escolar, e 1 artigo, a inclusão e acessibilidade do surdo no mercado de trabalho.
Cinco artigos, mais especificamente dos autores Seno (2009), Borges e Costa (2010), Pivetta, Saito e Ulbricht (2014), Lacerda (2006) e Cruz e Dias (2009), trazem a realidade do processo educativo com a proposta da inclusão, demonstrando suas dificuldades, sobretudo de diferença de linguagem/ comunicação, o que acaba culminando em uma forma de preconceito.
Antes de apresentar os achados, é importante ressaltar que a prática social da inclusão no Brasil iniciou-se na década de 1980. Entretanto o processo da inclusão deu-se somente em 1990, com um modelo de educação denominado inclusão escolar (Minghetti, & Kanan, 2010), o qual tem como proposta que todos os alunos sejam aceitos e recebam uma educação de qualidade.
Atualmente, nota-se que a inclusão escolar se constitui em um dos temas mais debatidos no contexto educacional. Vários fatores impulsionam esse fato, por exemplo, o caráter excludente da sociedade contemporânea, a situação da escolarização no País e as políticas educacionais em relação à inclusão escolar das pessoas com necessidades educativas especiais. Porém, na prática, a inclusão ocorre? Existe discriminação ou preconceito? É basicamente sobre isso que os artigos escolhidos para esta categoria tratam.
Em seu artigo, Seno (2009), ao entrevistar 34 professores da Rede Municipal de Ensino do Município de Marília que lecionam para alunos com perda auditiva, percebeu que a maioria dos participantes demonstrou preocupação em atuar com o aluno surdo, sobretudo por causa da falta de conhecimento específico para lidar com ele. O despreparo do professor, confirmado nesse estudo, é um dos fatores mais relevantes na inclusão.
Nessa visão, Borges e Costa (2010) investigam as representações docentes acerca dos temas relacionados ao universo do ensino de surdos e observam também que os educadores não têm uma formação que contemple o preparo para atuar com a educação especial. No caso particular do surdo, a comunicação, ou sua falta, acaba acarretando prejuízo de ensino e aprendizado para os surdos. Os autores esclarecem que, mesmo contando com a presença de um intérprete com conhecimento amplo de Libras, este nem sempre tem entendimento do conteúdo, e acaba passando o que entendeu, transmitindo, muitas vezes, informações divergentes do professor.
O trabalho de Lacerda (2006), por sua vez, focaliza uma experiência de inclusão de aluno surdo da quinta série do ensino fundamental de uma escola da rede privada. Os participantes do estudo foram 2 alunos ouvintes, 1 criança surda, 2 professores e 2 intérpretes, e os resultados indicam problemas no espaço escolar, como desconhecimento da surdez e suas implicações no que se referem à educação, dificuldades com adaptações curriculares e estratégias de aula, dificuldade na interação professor/intérprete, a incerteza de seus papéis em sala de aula e a exclusão do aluno surdo nas atividades. A inclusão no ensino fundamental, objeto do estudo, é muito restritiva para o aluno surdo, oferecendo pouca oportunidade de desenvolvimento em seus diversos aspectos: sociais, afetivos, de identidade, linguístico, visto que não partilham de uma língua comum (Lacerda, 2006).
Na prática, a inclusão ainda caminha a passos lentos, afinal, era, e ainda é, um grande desafio encontrar uma escola que realmente seja inclusiva. Damázio (2005) questiona que "ser contrário à inclusão escolar de alunos com surdez é defender guetos normalizadores que, em nome das diferenças existentes entre pessoas com surdez e ouvintes, se caracterizam, homogeneízam a educação escolar".
O estudo de Cruz e Dias (2009) objetivou conhecer as condições dos surdos que frequentam o ensino superior. Os resultados apontam que as condições dos surdos nesse grau de ensino são de dificuldades, de impedimentos, de abandono e de rejeição. Os surdos têm dificuldade de aprendizagem e, muitas vezes, fazem trabalhos extraclasse para recuperar suas notas. A grande dificuldade enfrentada é o não compartilhamento de uma língua comum e, em muitos casos, a falta de ajuda de um intérprete de Libras, o que não permite seu avanço no ambiente de aprendizado.
Na realidade, percebe-se que a principal problemática que envolve a questão da inclusão escolar é a comunicação divergente e a falta de preparo da escola para receber esses alunos; e dos professores, para adaptar seus currículos, suas aulas e garantir um processo de aprendizado por parte do aluno surdo.
Conforme afirmam Borges e Costa (2010), "O sistema escolar parece ser incapaz de lidar com a deficiência, haja vista que suas deficiências se revelam maiores que as dos deficientes" (p. 582). Dessa forma, como se percebe na realidade do surdo, as políticas de inclusão, muitas vezes, acabam trazendo efeito contrário: maior isolamento e menores possibilidades educativas.
Teoricamente a tecnologia é considerada uma das formas encontradas para garantir a inclusão e acessibilidade da maioria das pessoas, uma vez que permite a inserção, em um mesmo espaço, de todos os autores sociais possíveis, eliminando barreiras de espaço físico, apresentando conteúdos e informações de diversas formas. Assim, buscou-se verificar, no artigo de Pivetta et al. (2014), se o ambiente MOODLE1 tem acessibilidade para pessoas surdas. A pesquisa foi realizada por meio de dois tipos de avaliação: avaliação automática e avaliação subjetiva por usuários, sendo que, posteriormente, os resultados foram confrontados.
Como resultados desse estudo, percebeu-se que a tecnologia facilita, mas existem algumas possibilidades de melhoria: aliar o uso de recursos visuais aos conteúdos apresentados em português bem como valorizar o uso da língua de sinais e suas variantes (como o SignWriting)2 para maior compreensão do ambiente. O autor esclarece que é fundamental que os surdos participem dos conteúdos dos cursos, no que se referem às ferramentas pedagógicas, que devem ser tratadas com características da língua de sinais (Pivetta et al. 2014).
Notou-se que o campo inclusivo é amplo e merece atenção, pois envolve grandes discussões e controvérsias. Muita coisa pode e deve ser feita em prol das pessoas com necessidades especiais e da sua educação, buscando sempre a inclusão escolar e não somente a integração. A efetividade da inclusão escolar ainda se apresenta como um grande desafio e necessidade.
A discussão sobre a inclusão no mercado de trabalho foi vista no artigo de Santos, Vieira e Faria (2013), que objetivou investigar a percepção de empregadores referente à contratação e à inclusão social dos funcionários com surdez. Percebeu-se que a motivação dos funcionários de recursos humanos para contratação das pessoas com deficiência auditiva se deu, pela maioria dos entrevistados, por tentativa de cumprir a determinação do Ministério Público do Trabalho, e dois dos entrevistados responderam que para promover a inclusão social.
Mesmo existindo o Decreto 3.298/1999, que obriga as empresas com cem ou mais empregados preencherem de 2 a 5 por cento de seus cargos com beneficiários da Previdência Social, reabilitados ou com pessoa portadora de deficiência, notase que a inserção do surdo no mercado de trabalho pode ainda ser considerada um privilégio para poucos. Algumas empresas, por sua vez, apenas contratam para cumprir a lei, utilizando os surdos para garantir a percentagem legal de indivíduos a serem contratados, não se preocupando com as reais necessidades e com a inclusão e acessibilidade. Geralmente, nessas empresas, o surdo assume cargos considerados de baixo prestígio, com jornadas de trabalho extensas e com baixos salários.
Magaldi (2011, p. 65) explica que "a dificuldade do acesso à escola de boa qualidade, a precária formação profissional e o preconceito de grande parcela do empresariado brasileiro, tem repercutido diretamente na empregabilidade das pessoas surdas". Santos et al. (2013) esclarece que a inserção ou integração dos surdos nas empresas, na maioria das vezes, é um processo unilateral, existindo esforços para se atender à lei vigente, esquecendo-se da necessidade de modificação da dinâmica da empresa, sobretudo das soluções para equacionar os problemas relacionados à comunicação.
A respeito da dificuldade de comunicação, os surdos passam a sofrer com o isolamento, privando-se de compreender o que se passa naquele ambiente. É necessária a contratação de intérpretes nas empresas ou de cursos de capacitação em Libras para os funcionários, de forma que diminuam a distância entre surdos e os ouvintes e permitam a compreensão e comunicação. Além do ambiente de trabalho ter predominantemente ou, às vezes, completamente como língua o português (falado e escrito), a baixa escolarização do surdo, proveniente da não condição de inclusão vista acima, impacta substancialmente no acesso, permanência e ascensão dessas pessoas no mercado de trabalho (Miraglia, 2011).
Na análise do artigo de Santos et al. (2013), correlacionada com as fundamentações teóricas sobre o assunto, compreende-se que as maiores dificuldades do surdo no mercado de trabalho são a inserção e permanência desses profissionais, uma vez que muitas contratações dos surdos se limitam a cumprir a lei, não se atentando às suas reais necessidades de adaptação e formação profissional. Na prática, o surdo precisa se adaptar ao ambiente de trabalho e não o inverso. Percebe-se, ainda, a falta de respeito às diferenças e a descrença em suas capacidades cognitivas e profissionais, o que configura o ainda preconceito contra os surdos.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo, denominado estudo bibliográfico, ou estado da arte, objetivou compreender de que modo a surdez e o preconceito vêm sendo investigados na literatura nacional, entre 2006 e 2016, para observarem-se as tendências e lacunas sobre o tema.
Com esse propósito, realizou-se tanto uma análise bibliométrica quanto de conteúdo, evidenciando que os estudos são, em sua maioria, qualitativos, representando 80% do total de trabalhos, seguidos de trabalhos teóricos, com 20%. Essa tendência indica que o fenômeno urge em ser mais explorado, principalmente por meio de metodologias quantitativas ou qualitativas e quantitativas.
Observou-se que as produções que se têm hoje sobre surdez e preconceito, em âmbito nacional, dizem respeito à apresentação e à discussão da influência do modelo clínico-terapêutico e socioantropológico e sua relação com o preconceito, ou ainda a explanação dos preconceitos vivenciados, de forma geral, pelo surdo, ou, de maneira específica, ao considerar adolescentes com o uso do implante coclear, ou a surdez adquirida na fase adulta e suas implicações, por exemplo. Notaram-se também alguns estudos sobre a inclusão escolar e um sobre a acessibilidade e inclusão (ou falta de) no mercado de trabalho.
Quanto aos conteúdos destes últimos estudos sobre a inclusão, destacados acima, já existe uma produção que foca didaticamente o tema, e os preconceitos são o reflexo da não inclusão, ou da integração, ou mesmo, da exclusão causada pela falta de acessibilidade e de instrumentos que satisfaçam as necessidades do surdo na educação e no mercado de trabalho.
Apesar de a visão socioantropológica ter conquistado espaço, a clínicoterapêutica ainda se apresenta. Conclui-se que:
a) no âmbito educacional, além de se oferecer o atendimento educacional especializado, que permita um ensino de qualidade (pelo conhecimento também da língua de sinais) e a participação de um intérprete, é importante que os profissionais e alunos envolvidos no âmbito escolar, de forma geral, tenham conhecimento sobre a surdez, quanto às diversas identidades surdas e à Libras. Hoje os surdos são tratados no ambiente escolar ainda como deficientes. Por isso, torna-se imprescindível que suas diferenças sejam aceitas e compreendidas, para que os preconceitos sejam diminuídos;
b) no mercado de trabalho, ainda não se encontra acessibilidade para as pessoas surdas, contratando-se, basicamente, por determinação legal;
c) no ambiente familiar, é interessante que pesquisas continuem a ser feitas, para que se aumente a consciência dos pais e os ajudem a lidar com o impacto da notícia da surdez, pelas diversas adaptações que esse fato exige. Os pais precisam ter em mente a necessidade de contar com as redes de apoio e estimular estratégias de enfrentamento das dificuldades e preconceitos vivenciados.
Diante desse cenário, cabe indagar quais reflexões, posicionamentos e ações a Psicologia pode (ou deve) assumir. Uma das sugestões é pensar o desenvolvimento de uma política de saúde mental e social para os surdos e familiares, a fim de se encontrarem estratégias de enfrentamento ou de escuta, visando a mitigar o impacto negativo dos sentimentos envolvidos nas ações sofridas de discriminação e humilhação.
Apesar de já existir um interesse pela temática, ao se considerar sua importância, pode-se afirmar que ainda se encontra pouco documentada no Brasil, tendo sido encontrado um total de 15 artigos empíricos sobre o tema, pesquisados em duas bases de dados. Com o propósito do surgimento de um cenário mais amplo de produções, como sugestão, para futuros levantamentos, enfatiza-se a realização de estudos, considerando-se novas estratégias de busca, como focar em teses e dissertações. Julga-se necessária uma agenda de estudo que venha a suprimir as lacunas observadas, ampliar e aprofundar questões mais específicas sobre a surdez e o preconceito, como as implicações na educação dos surdos, o modo como a família percebe o surdo, a escuta do surdo sobre as questões de preconceito e uma análise quanto ao autopreconceito.
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Texto recebido em 19 de abril de 2017 e aprovado para publicação em 6 de junho de 2018.
*Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), psicóloga. E-mail: dekaaraujo@hotmail.com.
**Doutor em Psicologia pela Universidade Complutense de Madri (Espanha), professor no Departamento de Letras Libras e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFS.E-mail: joilsonp@hotmail.com.
1 MOODLE é o acrônimo de "Modular Object-Oriented Dynamic Learning Environment", um software livre de apoio à aprendizagem, executado num ambiente virtual
2O SignWriting (ou Escrita de Sinais) é um sistema de registro gráfico das línguas gestuais. "O sistema pode representar línguas de sinais de um modo gráfico esquemático que funciona como um sistema de escrita alfabético, em que as unidades gráficas fundamentais representam unidades gestuais fundamentais, suas propriedades e relações. O SignWriting pode registrar qualquer língua de sinais do mundo sem passar pela tradução da língua falada. Cada língua de sinais vai adaptá-lo à sua própria ortografia"(Stumpf, 2012).