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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.6 n.10 Barbacena jun. 2008

 

ARTIGOS

 

A experiência grupal em uma pesquisa interventiva

 

Group work in an interventive survey

 

 

Marisa T. D. S. Baptista1 ; Francisca Cândido Borges Galletti2; Maria de Lourdes Crunfli Mendes3

Universidade São Marcos - UNIMARCO

 

 


RESUMO

Nosso objetivo é apresentar a análise de uma experiência grupal em uma pesquisa interventiva com professores de uma escola pública. Iniciamos com um estudo histórico da forma de abordagem grupal, acompanhando o movimento do grupo de pesquisa no decorrer do processo de busca de uma perspectiva significativa de trabalho. Discutimos a forma utilizada na experiência em pauta, apresentando exemplos de situações que ocorreram ao longo do processo para clarificar o movimento vivido pelo grupo de participantes. No final apontamos alguns aspectos que facilitam a realização da pesquisa interventiva em contextos institucionais.

Palavras-chave: Experiência grupal, Abordagem dialética, Pesquisa interventiva, Identidade.


ABSTRACT

The objective of this work is to present an analysis of a group work experience in an interventive survey involving public school teachers. A historical study of the concept of group work approach was initially presented following the research group movement while searching for a significant perspective of work. We discuss the format used in the experience, presenting examples of situations that had occurred throughout the process to clarify the movement of the group of participants. Finally, we point some aspects that help accomplish this type of survey within institutional contexts.

Keywords: Group work experience, Dialectical approach, Interventive research, Identity


 

 

INTRODUÇÃO

Nosso objetivo com este artigo foi avaliar o significado de uma experiência grupal em uma pesquisa interventiva. O projeto denominado “IDENTIDADE DE PROFESSORES” foi desenvolvido por uma equipe de professores e alunos universitários. A equipe trabalhou durante quatro anos com um grupo de professores de uma escola da rede estadual de ensino, situada na zona sul da cidade de São Paulo.

A transformação da identidade dos professores foi considerada o objetivo fundamental desta pesquisa, em função das constatações de um trabalho anterior, realizado na década de 1990 em escolas públicas estaduais da mesma região. Na ocasião foi investigada a formação da identidade dos diferentes participantes da escola - professores, alunos, diretores e coordenadores pedagógicos (BAPTISTA e GALLETTI, 2005) e efetuada a reconstituição histórica da formação da identidade coletiva dos professores. Nesse primeiro estudo ficou evidenciado um fenômeno que tem sido apresentado com freqüência pela literatura da área da educação: o imobilismo no contexto das instituições escolares, configurando o que, na perspectiva de identidade, chamamos de “mesmice” - processo através do qual há repetição constante de uma mesma situação. Também foi verificado que essa mesmice vem se acentuando em função de uma política autoritária de decisões existente no contexto educacional, que ignora as idéias e avaliações de suas principais personagens. As legislações referentes à educação passaram a estipular como devem ser desempenhados os diferentes papéis dos profissionais de ensino desde a época da colonização, porém com aumento significativo a partir da década de 1930.

Segundo Romero (1996), com a implantação do sistema capitalista no Brasil, ampliado após a 2a Guerra Mundial, foram aprovadas as leis orgânicas que objetivavam a especialização da mão-de-obra para o mercado de trabalho. No âmbito da formação de professores, a Lei Orgânica de Ensino Normal (no 8.530, de 2/1/1946) tinha como finalidades organizar, uniformizar e melhorar a qualidade de ensino, priorizando para isso a qualificação dos professores, principal agente educacional. Posteriormente, algumas outras leis foram aprovadas com finalidades diversas, mas continuando a propor uma política educacional que determinava claramente o papel do professor.

A partir de então, as atividades que esses profissionais vêm desenvolvendo são previamente estabelecidas por outras instâncias do sistema educacional, configurando a existência de uma clara política de identidade. Essa política é reforçada tanto pela formação regular nos cursos de segundo grau e superior (ROMERO, 1996), quanto pelos programas destinados à chamada educação permanente, constituídos de diferentes processos, como os denominados treinamentos, capacitações e atualizações, que têm como objetivo “preparar melhor” o professor para exercer sua função de educador. Em geral esses processos são elaborados e executados por profissionais cuja atividade é bastante distante do cotidiano dos professores, e raramente os professores são chamados a opinar sobre esse tipo de capacitação. Talvez por esses motivos os resultados mostram-se inexpressivos no sentido de provocar mudanças.

Paralelamente a esse processo autoritário de estabelecimento de uma política de identidade, constatamos que o professor vive uma situação de estigmatização, com uma atribuição pública de valores negativos à sua imagem profissional, imagem esta que ele acaba incorporando como verdadeira. Este estigma é ainda reforçado pela desvalorização econômica, provocada pelo constante rebaixamento de seu nível salarial. Por outro lado, o coletivo de professores também se desmobilizou após as décadas de 1970/80, a partir de uma pressão política que não permitia o desenvolvimento de reflexões críticas e autônomas dos professores. Combinando esses fatos com a característica da atividade do professor extremamente individualista, tendo em vista sua ação em sala de aula, e sem nenhuma perspectiva de espaços e tempos específicos para trocas coletivas, instalou-se a cristalização de seu papel profissional.

Esse panorama provocou a formação de uma identidade profissional muito específica: o professor desempenhando um papel profissional que, além de desvalorizado, é desvinculado de sua realidade pessoal, de tal forma que sua atividade se configura como uma ação automatizada, mecânica, sem investimentos afetivos e reflexivos, o que caracteriza uma identidade negativada. Esta configuração permitiu-nos avaliar que os professores viviam uma impossibilidade de mudança em sua identidade. Tendo em vista essas constatações, e desejando iniciar um processo que pudesse de fato colaborar com a possibilidade de uma transformação, é que elegemos a pesquisa interventiva com a proposta de produzir conhecimento e, ao mesmo tempo, compartilhá-lo com os professores da escola pública, atuando, assim, na realidade estudada.

A construção coletiva do projeto de pesquisa

Em função de nosso objetivo fundamental, consideramos que seria importante propor a construção coletiva do projeto, com a participação ativa e democrática de todos os envolvidos. Houve atuação conjunta de pesquisadores, professores universitários, mestrandos e professores de primeiro grau de uma escola pública. Tínhamos a certeza que era preciso propor ações que possibilitassem a formação e transformação continuada da identidade profissional, acompanhadas de reflexões sobre essas ações, e no final a socialização desse conhecimento produzido no grupo. O projeto envolveu não só a disponibilidade, mas também o interesse de todos os participantes.

A proposta de efetuar intervenções grupais estimulou a reflexão sobre duas questões: que grupo era aquele com o qual iríamos trabalhar e que tipo de ação grupal poderíamos propor.

O processo de conhecimento do grupo

Tivemos alguns encontros preliminares antes de começar a discussão do projeto, e então pudemos compreender como se configurava o grupo de professores da escola em que estávamos atuando. Constatamos que eles tinham dificuldades para estabelecer relações entre sua vida pessoal e profissional, e também, como mencionado, que eles não dispunham de um espaço/tempo coletivo de reflexões. Pensar sobre si mesmo era algo inusitado para eles, que mantinham a atitude de rejeitar o envolvimento de questões pessoais com as profissionais, e principalmente de referir-se à presença da afetividade no exercício de seu papel profissional.

Por outro lado, a única vivência coletiva deles ocorria no horário que a instituição havia disponibilizado para nosso trabalho. Esse horário, denominado HTPc – Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo, era habitualmente usado para avisos coletivos e, ou, execução de tarefas burocráticas, desenvolvidas coletivamente quando solicitadas pelas instâncias superiores, ou individuais, quando cada um precisava organizar algo para sua classe ou atender a pais de alunos. Portanto, as reflexões sobre si mesmo ou sobre o grupo não ocorriam. Observamos também que havia um sistema de comunicação muito negativo na instituição, com muitas rixas entre os professores que trabalhavam no período da manhã e os da tarde, assim como muita dificuldade de comunicação entre a direção/coordenação e grupo de professores.

Avaliamos, a partir dessas observações, que até aquele momento a vivência coletiva do “grupo de professores” não configurava o que Martin-Baró (1989) denomina de “pertencimento”, ou seja, era um fato concreto, um dado, mas não um “pertencimento subjetivo”, uma identificação, que dependeria para sua existência de um processo consciente de escolha e decisão de “pertencer”, de se sentir fazendo parte, de ser comprometido e responsável pela sua existência, pela sua manutenção e transformação.

Reflexões sobre o tipo de trabalho grupal a ser desenvolvido

Nossa segunda preocupação foi pensar como intervir para possibilitar a formação de uma identidade coletiva desse grupo e o despertar de um sentimento de pertencimento. Nosso interesse não era trabalhar com a manipulação dos professores, tendo em vista os objetivos já estabelecidos, e muito menos utilizar a “dinâmica de grupo” de forma essencialmente técnica. A expectativa era oferecer a oportunidade para o professor refletir coletivamente sobre a situação de trabalho e reassumir sua condição de pessoa envolvida com a imagem de profissional. A possibilidade de compreender essa realidade e atuar no sentido de transformá-la sempre foi nosso objetivo, pois consideramos que esse é o movimento necessário e significativo para a educação hoje. Inicialmente decidimos que as estratégias de “dinâmica de grupo” seriam a melhor forma de intervenção, tendo em vista o limite de tempo estabelecido pela escola para trabalharmos com os professores - 1nhora, a cada 15 dias. Avaliamos posteriormente que as propostas, deveriam ser estabelecidas a partir de problemas do grupo. Os participantes se envolviam rapidamente em sua resolução, e o convite para que associassem tanto a situação-problema como as soluções apontadas na resolução com o seu cotidiano ampliava sua perspectiva de entendimento, eliminando “os chavões” tradicionalmente utilizados para entender e explicar essa vivência diária. Ou seja, foi uma oportunidade para pensarem as mesmas questões a partir de referenciais diferentes, de novos olhares, partindo de outros critérios. Para Lane (1988), esse movimento é denominado “consciência das determinações”. Chegamos com essa compreensão a decidir que o trabalho coletivo de forma diferenciada deveria ser realizado na perspectiva dialética, defendida por Lane (1988) e Marti-Baró (1989), cuja ênfase recai no caráter histórico e dialético dos processos grupais. A denominação “processo grupal” implica que o trabalho seja estruturado a partir das necessidades do grupo, e que o produto atenda igualmente a todos.

Além de Lane (1988) e Martin-Baró (1989), que nos permitiram situar essa perspectiva mais abrangente, outros autores nos ajudaram a pensar e planejar a atuação grupal.

Para Macruz et al. (2002), as técnicas utilizadas em processos grupais oferecem oportunidades para a ocorrência de momentos educativos, na medida em que possibilitam aos participantes do grupo “vivenciar situações inovadoras em todos os níveis, ao confrontar comportamentos, hábitos e valores que levam a uma avaliação e (re)elaboração individuais” (p. 11), o que significa, em outros termos, que a vivência das estratégias por nós propostas poderia facilitar o processo de tomada de consciência das determinações, condição fundamental para que ocorra a transformação na identidade.

Para Leif e Brunelle (1978), uma das características do jogo do adulto, utilizado nos processos grupais, é a permissão. As pessoas se sentem como se estivessem em uma pausa de descanso, quando as submissões e obrigações advindas das necessidades habituais de existência são suspensas por algum tempo.

Macruz et al. (2002) também avaliam que o aspecto lúdico e o jogo proporcionam ao grupo alegria e descontração. Esses fatores favorecem a aproximação dos participantes, estabelecendo um clima de confiança e prazer, diminuindo assim os temores e as resistências em se expor aos outros participantes do grupo.

As atividades (estratégias, dinâmicas, vivências e técnicas) por nós escolhidas e utilizadas foram avaliadas como parte dos recursos facilitadores para o aparecimento de diversas questões e temas a serem trabalhados no grupo de professores, constituindo um espaço reflexivo para tratar das diversas questões por eles levantadas. É importante frisar que essas atividades, consideradas por nós estratégias interventivas, se constituíram em instrumentos e atividades de apoio. A partir de objetivos formulados, favoreceram as interações dos participantes do grupo e levaram a reflexões sobre o tema. Consideramos que a proposta de refletir sobre questões cotidianas que incomodavam o grupo permitiu que, coletivamente, os participantes vissem diferentes aspectos da questão, que cada um percebesse como se sentia diante dela, que ações assumiria, e em conjunto elaborassem uma nova forma de abordá-la. Perceber como pensavam e agiam, e de que maneira podiam ou não se apropriar de resoluções coletivas, foi a maneira de iniciar uma mudança. Essas trocas que se deram no coletivo, além de configurarem uma situação não usual no cotidiano escolar, ainda favoreceram o processo de aprendizagem permanente quando aplicadas a outras situações cotidianas, por exemplo, na ação do professor em sua sala de aula.

Avaliamos esse processo como uma nova “socialização secundária” (BERGER e LUCKMANN, 1983). Houve reinterpretação da história profissional anterior, abrindo espaço para a aprendizagem de uma nova maneira de ser, em que pessoa e profissional puderam se fundir. Por outro lado, essa vivência coletiva ampliou os laços de convivência, afeto, cooperação e solidariedade, elementos fundamentais para se estabelecer uma identificação, uma pertença psicológica ao coletivo.

A seguir serão apresentadas, em forma de relatos, algumas situações grupais vividas durante a pesquisa, que ilustram a maneira como desenvolvemos o processo para atingir os objetivos propostos.

 

RELATOS

O papel do lúdico no reconhecimento da identidade individual e coletiva

As atividades constituídas por danças e música, como a brincadeira “Escravos de Jó’, que envolvem atenção e concentração, foram vivências apreciadas pela maioria dos professores, que de certa forma demonstravam carência desse tipo de movimento lúdico, que provoca descontração. Pudemos observar que os professores conseguiam brincar e se divertir, e mesmo os costumeiramente mais sérios, aos poucos, se soltavam e se envolviam com alegria nas atividades propostas. Essa atividade reivindicava, além da atenção, o entrosamento entre os participantes do grupo quanto ao ritmo e manejo das pedrinhas. Através das diversas tentativas e erros, aos poucos conseguiam harmonizar os movimentos. Geralmente nesta fase manifestavam grande satisfação.

A estimulação para os professores falarem de si, dos seus sentimentos, de como percebiam os outros, do sentimento de pertencer ou não ao grupo

1) Em um dos encontros, que objetivava trabalhar com a identidade individual dos participantes, solicitamos que fizessem um desenho que representasse a resposta para a seguinte pergunta: Quem sou eu?

O autodesenho como recurso de auto-apresentação foi aqui utilizado como forma de percepção e reflexão da própria identidade. Caixas com giz de cera foram espalhadas no chão, de forma aleatória, nas proximidades do lugar em que as pessoas estavam sentadas, para que pudessem usá-los para desenhar. Ao final, todos mostraram seus desenhos, explicando seu significado e como se sentiram ao desenhar. Um desenho específico, feito só com lápis preto, chamou particularmente a atenção. Ele foi apresentado por uma professora que relatou ter tido receio de incomodar os colegas, pedindo para compartilhar os lápis de cor com eles. Ao explicar seu desenho para o grupo, contou que há alguns meses sentira fortes tonturas, descobrindo a seguir que estava com um tumor na cabeça. Ficou muito assustada, foi operada e no momento se encontrava bem. Nessa hora, os participantes do grupo demonstraram muita surpresa e comentaram que, até então, ninguém sabia do drama vivido por ela. Interessante notar que essa professora realmente não se sentia pertencente ao grupo, pois nem se dava o direito de compartilhar a caixa de lápis de cor com os colegas. A partir desse momento, com o compartilhamento de sua história, sentiu-se acolhida e parte integrante do grupo, passando a participar de forma mais descontraída e a ser mais solicitada pelo grupo nos encontros seguintes.

2) As temáticas das duas situações, relatadas a seguir, foram planejadas a partir da queixa dos professores, que, em encontros anteriores, haviam levantado a questão de vivenciarem sistematicamente perdas de amigos ao final de cada ano letivo. Essas perdas se apresentavam, para eles, na forma de separação de alguns colegas que iam trabalhar em outras escolas, em geral professores não-efetivos, que precisavam se deslocar sistematicamente em busca de lugares vagos. Os relatos nessa fase, final do segundo semestre, estavam repletos de sentimentos de ansiedade e dor.

A primeira situação proposta consistiu de uma história sem final, que foi contada por uma das pesquisadoras:

Havia um reino governado por um rei que tinha três filhos. Eles eram muito unidos e viviam todos de forma harmoniosa no castelo. Certo dia o rei solicitou que um dos seus filhos partisse para um lugar bem distante dali, a fim de realizar uma missão muito importante. O filho do rei não queria ir, porém percebeu que não tinha escolha...

Após a narrativa foi solicitado aos professores, divididos em quatro subgrupos, que criassem um final para essa história. Cada subgrupo construiu seu final de acordo com as sensações que estavam tendo com relação a mudanças inevitáveis em suas vidas. Houve um final com uma visão romântica e feliz – o príncipe encontra princesas belas e ricas. Outro com parecer pessimista e até trágico – o príncipe morre, pois ninguém havia conseguido ajudá-lo. Os outros finais não foram tão extremados.

A partir dessa vivência os professores conseguiram exteriorizar os sentimentos intrínsecos à percepção e aos temores que cada um tinha com relação à separação e mudança do ambiente de trabalho, pois logo estabeleceram relação com a situação concreta de perdas que estavam vivendo. Os depoimentos a seguir ilustram essa percepção:

Você chega lá (na outra escola) é tudo diferente, outras pessoas, outro jeito de trabalhar.
Aqui estamos todos, como nessas histórias. Não sabemos aonde vamos. Lidar com o novo é difícil É cômodo estar aqui, o novo assusta um pouco.
Embora você vá fazer outros amigos... É estranho.

Podemos dizer que essa vivência proporcionou, além da oportunidade de os professores falarem sobre os seus sentimentos e pensamentos relativos à separação, momentos reflexivos necessários à melhor elaboração e ressignificação dos acontecimentos. Uma nova concepção a respeito da separação e das mudanças foi formada pelos participantes, a partir dessa vivência, o que fica claro nos relatos a seguir:

Uma situação nova deixa a gente ansiosa, sim. Você vai para outro lugar, tem que dar uma reagida.
Eu já saí uma vez desta escola e não gostei, porém algo bom aconteceu, conheci uma pessoa que é a minha amiga até hoje.

A segunda situação apresenta a mesma temática anterior: a dificuldade de lidar com as perdas e separações de colegas. Também foi relatado como sentiam a perda não só por si, mas pelos outros.

Solicitamos que os professores fizessem um desenho, com os dedos molhados em tintas, procurando demonstrar como estavam se sentindo naquele momento. Posteriormente mostraram o desenho, fazendo referência a esses sentimentos. Uma das professoras mencionou ter sentido raiva, explicitando em seguida a sua preocupação e indignação diante das mudanças que ocorreriam na escola, no ano seguinte, quando passaria a abrigar cinco novas salas de Ensino Fundamental II. Esse fato prejudicaria vários colegas do grupo, obrigados a sair da escola, sem direito de escolher o local para onde seriam transferidos. Ela disse explicitamente: “Estou sentindo essa raiva não por mim, mas sim pelos colegas que serão atingidos”.

3) A seguir apresentamos o depoimento de alguns professores a respeito dos encontros ocorridos no semestre. Explicitaram claramente o novo significado do grupo para eles, e ao mesmo tempo revelaram o início da constituição de uma identidade coletiva. Concomitantemente expressaram espontaneamente uma avaliação dos objetivos propostos:

Se vocês não estivessem aqui, não ia acontecer nada... Tive um dia péssimo, me sentia péssima e iria para casa péssima. Aí chegam vocês, querendo que a gente faça um monte de coisas, com música. O estímulo são vocês e o apoio é aquilo de tocar um ao outro. Agora estou bem relaxada, sei que não irei para casa do jeito que eu estava.
Ter alguém para me ouvir é muito bom.
Precisamos ter mais tempo juntas.
O mais importante é servir de estímulo e apoio aos colegas.
Você tem que ser aceita pelo grupo. O que mais magoa é você ficar de fora, sabe? Ficar de lado, no grupo. Não é falar a verdade. O que magoa é quando te isolam.
Nem sempre precisamos falar para estimular os colegas. Os gestos também dizem muita coisa.

As dificuldades do processo grupal

Há situações que, contrariamente a essas apresentadas, mostram problemas na constituição do processo grupal. Ao longo do tempo alguns temas produziram ou a volta às idéias pré-concebidas, após um momento de consciência sobre o preconceito, ou a dificuldade para aceitar discutir algo difícil de ser assumido ou a dificuldade para analisar o tema sobre um prisma diferente do tradicional. Em um primeiro momento nos assustamos com o fato, imaginando que todo o trabalho anterior teria sido perdido, pois as reflexões dos professores voltavam para os mesmos argumentos “chavões”/“estereótipos”. Avaliamos posteriormente que a utilização dos estereótipos, para explicar as dificuldades, é algo muito arraigado, e só em longo prazo se torna passível de questionamento.

Os avanços e recuos do grupo permitiram concluir que há momentos diferenciados no percurso, e que essa diferenciação faz parte do processo: em alguns momentos o grupo se mostra muito participativo, cooperativo, envolvido; em outros, desanimado, agressivo, distante.

Em geral, as situações que exigem mudanças ou perdas modificam substancialmente a postura do grupo e causam ruptura. Silva (2000) sugere que a resistência a mudanças, a transformações, pode ser quebrada pelo estabelecimento de relações mais autênticas e, ou, mais solidárias. Quando planejamos o processo de pesquisa, estávamos cientes de que poderia haver resistência às transformações por parte de alguns participantes, enquanto outros estariam receptivos para vivenciar as mudanças. Por isso nossa preocupação foi oferecer um ambiente afetivo, no qual as atividades desenvolvidas com os professores contribuíssem para o estabelecimento de relações mais significativas entre todos os participantes.

O retorno sistemático a idéias já avaliadas e superadas deixava o grupo de pesquisadores com dificuldade de entender o que se passava. Foi preciso muita reflexão e leitura por parte dos pesquisadores para entendimento do processo de “ida e volta” grupal. Posteriormente avaliamos que, quando isso acontecia, a nossa persistência em continuar o trabalho fazia com que rapidamente o grupo atingisse um patamar de discussão, que mostrava um modo diferente do inicial para analisar os fatos.

Uma questão que não conseguimos introduzir como tema durante todo o período em que atuamos na escola foi a das relações dos pais com a escola. Por ocasião dos planejamentos que fazíamos no início de cada semestre, tentamos, sem sucesso, sugerir a abordagem dessa temática. Em nenhum momento houve unanimidade quanto à importância da questão, e os professores preferiram sempre estabelecer outros objetivos, mesmo considerando, na maior parte do tempo, que as famílias eram as responsáveis pelo fracasso escolar de muitas crianças.

Outros dois temas foram particularmente difíceis de ser trabalhados. O primeiro foi sobre a quem cabia a responsabilidade da não-aprendizagem dos alunos. Desde os primeiros contatos, os professores tiveram dificuldade de colocar a relação professor-aluno como algo que pudesse explicar, pelo menos em parte, essa não-aprendizagem. Consideravam como causa dessa não-aprendizagem a família ou o governo, que não dava condições aos professores, mas como profissionais se eximiam da responsabilidade.

As situações descritas a seguir ilustram diferentes momentos desse processo.

Em uma das primeiras atividades em que pedimos que representassem graficamente os pais da escola, ficaram evidentes os conceitos pré-formados que os docentes tinham em relação aos pais dos alunos. Uma participante desenhou uma mulher grávida, com uma barriga bem grande, e comentou que este simbolizava o único papel dos pais, o de reprodutores. Na opinião dela, os pais só fazem os filhos, mas não se responsabilizam por cuidar deles e educá-los.

O relato a seguir refere-se ainda a uma imagem dos pais muito próxima dessa primeira: Os pais dos alunos não querem nem saber dos seus filhos. Pensam que a escola é um depósito.

As frases a seguir referem-se a outros momentos em que os professores conseguem ver a família e sua participação no processo de ensino de outra maneira:

Falta parceria, precisamos trazer a família para a escola.
Outro dia eu pedi para que os alunos escrevessem onde moravam e um deles me perguntou como é que se escrevia beco. Muitas vezes, esquecemos a realidade do aluno e os vemos através da nossa realidade.
Eu não consigo ajudar meus alunos.

O segundo tema, difícil de ser trabalhado, foi a dificuldade de comunicação entre os professores. Essa dificuldade foi constatada desde o início, e por isso procuramos desenvolver atividades que pudessem sensibilizá-los a respeito da importância da comunicação clara e objetiva entre as pessoas.

Uma das estratégias utilizadas para atingir esse objetivo solicitava que os professores desenhassem uma figura que estava sendo descrita verbalmente por um dos pesquisadores. No caso de terem dúvidas sobre as instruções, não poderiam fazer nenhum tipo de pergunta. A vivência dessa atividade gerou muita angústia nos professores, pois a maioria não conseguia entender as instruções e, mesmo cientes das regras, faziam perguntas (O que é elipse? O que é reta divergente? O que é triângulo isósceles?) no sentido de esclarecer as dúvidas, mas não obtinham respostas. Outros não faziam perguntas, mas faziam expressões de surpresa e perplexidade, ou mencionavam que precisariam estudar mais geometria.

As reflexões finais mostraram que o objetivo tinha sido atingido, pois os professores conseguiram relacionar suas dificuldades na realização do exercício com algumas ocorrências em sala de aula, presentes na comunicação deles com os alunos.

Não gostei da experiência, senti muita dificuldade.
Ficamos com receio dela não responder. Como a gente se sente burra...
Faltou a comunicação. Ficamos com receio de perguntar.
Como me senti pressionada por não poder perguntar! Pensei em meus alunos. Se eu falar com meus alunos do jeito que você falou, “Deus me livre!” “Eu já falei, e não vou repetir”. Como os alunos se sentem pressionados! Pensei... sou burra mesmo, nem vou dizer mais nada. Deu para perceber o que a criança sente na pele.

Outra atividade proposta solicitava que, divididos em subgrupos, deveriam argumentar a favor e contra o “rádio corredor”. Este termo, usado por eles, referia-se às fofocas que surgiam nos corredores da escola. Uma parte do grupo defendia essas fofocas e a outra parte mostrava as conseqüências negativas. Em certo momento, os participantes que foram vítimas das fofocas expuseram seus sentimentos na situação. Os depoimentos finais nos permitiram perceber certas mudanças. Avaliamos inicialmente que havia alguns subgrupos informais (duplas que vinham caminhando juntas para a escola, professores que trabalhavam no mesmo andar, em salas contíguas) que estabeleciam alguns estereótipos entre si. Esse fator funcionava como impeditivo para que pudessem olhar para si próprios e para os colegas mais próximos com outro olhar que não fosse o formado pelos consensos, ou até que se propusessem a experimentar novas formas de agir.

No final do processo eles disseram, entre outras, frases que demonstram a mudança de perspectiva sobre a importância das relações com os colegas:

Temos que ser humildes.
A área da educação é muito difícil e precisa ter coleguismo, pois o ambiente de fofoca é terrível.
O importante é a gente conversar.
Conviver é difícil e temos que ser colegas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As estratégias aqui mencionadas, e todas as outras escolhidas durante o processo de pesquisa, funcionaram como mediadoras das ações dos pesquisadores, responsáveis pelo planejamento das atividades no processo de pesquisa, e instigadoras de uma atitude reflexiva e crítica dos professores, tornando-se, portanto, facilitadoras de uma nova socialização secundária. Para que as estratégias funcionassem como instigadoras, introduzimos outras linguagens diferentes das usuais e usamos de muita criatividade, que nesse caso permitiram integralmente a experiência de um “novo olhar”.

Do ponto de vista da atuação dos pesquisadores, também consideramos que o clima afetivo e o respeito pelas idéias dos professores permitiram que eles se expressassem de forma mais espontânea, sem bloqueios avaliativos e sem a preocupação de utilizarem uma forma “politicamente correta” de comunicação, o que foi fundamental para que pudesse haver a ruptura de sua identidade negativada. Esse processo de comunicação em que basicamente a figura principal é a do professor e a secundária a do pesquisador facilitou a retomada de um processo de autonomia por parte dos professores, permitindo que resgatassem valores significativos para eles, como pessoas e como profissionais. Essa perspectiva de trabalho foi denominada por nós de “processo de produção de conhecimento construtivo/interpretativo” (AGUIAR e BAPTISTA, 2003). Esse processo é compreendido como uma possibilidade de não se dicotomizarem os papéis no grupo, ou seja, de o poder/dominação não permanecer na mão dos pesquisadores e de os professores não assumirem o papel de submissos.

Fundamental para que essas propostas se concretizassem foi o fato de a pesquisa ter sido realizada a partir de um “contrato aberto”, em que tanto pesquisadores como professores estiveram disponíveis para novas experiências e atuaram significativamente na proposição, execução e avaliação dessas mesmas experiências. Também fez parte desse contrato um tempo curto de execução, tendo sido renovado semestralmente nos quatro anos em que durou a experiência. O fechamento do contrato, antes de cada nova etapa começar, foi fundamental para que se estabelecesse uma situação em que ambas as partes se sentissem em igualdade de condições para viver as situações de maneira comunicativa, cooperativa e afetiva.

Desde o início, nossa disponibilidade como pesquisadores interessados não só em produzir conhecimento, mas também em tentar possibilitar a resolução de problemas existentes no grupo, permitiu que naturalmente nossas ações fossem carregadas de afetividade. Também consideramos importante nossa perspectiva de entender que suas necessidades estavam sempre ligadas à realidade da instituição à qual pertenciam, assim como à estrutura do sistema de ensino. Pudemos entender que os acontecimentos em quaisquer desses âmbitos, assim como no âmbito pessoal, poderiam deslocar ou conduzir as necessidades e os interesses dos participantes. Nossos planejamentos, portanto, sempre tiveram um caráter organizativo, mas com aberturas para acolher essas “precisões” decorrentes da própria história coletiva e, ou, individual.

Avaliando o processo grupal proposto, com o objetivo de trabalhar as questões de identidade individual e coletiva, podemos considerar que houve o desenvolvimento de uma percepção de si mesmo, bem como a consciência de ser membro de um coletivo, o que provocou uma interdependência e um movimento de solidariedade entre os professores, ou seja, um sentimento de pertencimento.

 

 

REFERÊNCIAS

AGUIAR, W. M. J.; BAPTISTA, M. T. D. S. A transformação do professor como elemento mobilizador de mudança na realidade escolar. Psicologia da Educação, São Paulo, v. 16, p. 83-100, 2003.         [ Links ]

BAPTISTA, M. T. D. S. et al. As histórias que nos constróem: pesquisa interventiva e identidade de professores. São Paulo: Unimarco, 2006.         [ Links ]

BERGER, P.; LUCKMANN, T. H. A construção social da realidade. Petrópolis: Vozes, 1983.         [ Links ]

CIAMPA, A. C. A estória de Severino e a história de Severina: um ensaio de psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1985.         [ Links ]

LANE, S. T. M. O que é psicologia social. São Paulo; Brasiliense, 1988.         [ Links ]

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MACRUZ, F. M. S. et al. Jogos de cintura. Petrópolis: Vozes, 2002.         [ Links ]

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ROMERO, D. M. F. Professores que formam professores: a constituição da identidade profissional dos professores do curso de magistério. 1996. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – UNIMARCO, São Paulo, 1996.         [ Links ]

SILVA, M. V. O processo grupal, afetividade, identidade e poder em trabalhos comunitários: paradoxos e articulações. 2000. Tese (Doutorado em Psicologia Social) – PUC, São Paulo, 2000.         [ Links ]

 

 

Artigo recebido em: 22/4/08
Aprovado para publicação em: 20/5/08

 

 

1 Doutora em Psicologia Social - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP. Coordenadora do Grupo de Estudos “Identidade e Educação” Universidade São Marcos - UNIMARCO. Email: marisatdsb@terra.com.br
2 Mestre em Psicologia - Universidade São Marcos - UNIMARCO, Membro do Grupo de Estudos “Identidade e Educação”
3 Mestre em Psicologia - Universidade São Marcos - UNIMARCO/SP, Membro do Grupo de Estudos “Identidade e Educação”, Universidade São Marcos

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