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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.9  Rio de Janeiro nov. 2006

 

Artigo Científico

 

Táticas da cognição: a simulação e o efeito de real

 

Cognitive tactics: simulation and the effect of reality

 

 

Maria Inês Accioly

Escola de Comunicação (ECO), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


Resumo

Este trabalho tem como objetivo enquadrar a simulação no campo teórico da cognição, propondo a seguinte definição: simulação é uma estratégia cognitiva interativa baseada na produção de efeito de real a partir de modelos. Tal definição apóia-se no pensamento filosófico sobre o simulacro, na tradição das ciências experimentais e na tecnologia computacional contemporânea, cujos modelos algorítmicos de simulação encontram amplo emprego na produção de conhecimento. Procuramos, também, ressonâncias desse tema - simulação - nas teorias formuladas desde o século XIX que incluíram a participação do observador no conceito de cognição, como a tese de Bergson da indissociabilidade entre percepção e ação e o conceito de enação em Varela.

Palavras-chaves: simulação; cognição incorporada; enação.


Abstract

This paper endeavours to put simulation into the frame of cognitive sciences, by proposing the following definition: simulation is an interactive cognitive strategy which consists in producing model-based effect of reality. This definition is supported by the philosophical concept of simulacrum; by the tradition of the experimental sciences, and by the contemporary computational technologies, that makes large use of algorithmic simulation models in scientific research. We aim, also, to seek "resonances" of this subject - simulation - on the theories since 19th century which included the action of the observer into the concept of cognition, such as Bergson's thesis of the indissociability between perception and action and Varela's concept of enaction.

Keywords: simulation; embodied cognition; enaction


 

 

O simulacro e o estigma do falso

Uma genealogia do conceito de simulação nos reconduziria necessariamente à metafísica platônica. Platão hierarquizou o real e o conhecimento segundo uma escala descendente das categorias de modelo, cópia e simulacro, associando esta última aos artifícios que iludiam os sentidos e, conseqüentemente, podiam iludir também a consciência. Assim ocorria com as fascinantes imagens produzidas pelos artistas, que rivalizavam com a natureza parecendo materializar a própria coisa representada; e com sedutores discursos dos sofistas, que emocionavam platéias fazendo ficções parecerem realidade. Simulacro era o signo do disfarce, do fingimento, da falsa identidade.

Alguns séculos depois, o filósofo e poeta Lucrécio desenvolveu uma outra teoria do simulacro, esta nada metafísica e muito menos hostil às ilusões do mundo sensível. Ele definiu os simulacros como emanações dos corpos que compõem o espaço fluente das superfícies, propiciando o contato entre seres e coisas. Michel Serres (2003) vê em Lucrécio um precursor da Física, e com efeito foi na Física que, a partir do Renascimento, a simulação se instalou como uma tática cognitiva legítima. Desde Galileu, e principalmente a partir do século XVII, ensaios com modelos - ou seja, simulações - passaram a ser usados sistematicamente como método experimental para sondar os mistérios da natureza.

Mas que analogia se pode estabelecer entre a simulação-fingimento e a simulação científica? Não seriam dois conceitos radicalmente distintos, uma vez que o primeiro aponta para o falso e o segundo para a busca da verdade? Precisamente por haver esta oposição diametral, esta simetria, arriscamos a hipótese de um eixo conceitual comum, fundado na noção de mimesis1. O modelo de simulação finge ser um corpo interagindo com seu ambiente. A simulação imita o fenômeno - numa palavra, produz efeito de real. Trata-se de um método de síntese, complementar aos métodos analíticos e muito útil na investigação de sistemas dinâmicos. Seja como farsa ou como método de pesquisa, o que uma simulação produz é uma espécie de realidade sintética - uma redução da complexidade do real ao nível do decifrável, do previsível, do controlável. Sendo assim, não parece haver uma diferença de natureza entre a simulação-farsa e a simulação-experimento.

Entretanto, para a cultura ocidental moderna, que erigiu a verdade como valor supremo e a representação como categoria central do pensamento, tal enunciado soaria extremamente desconfortável. Mesmo consagrada no âmbito das ciências experimentais, a acepção de simulação como ensaio com modelo ficou por muito tempo restrita ao meio acadêmico e aos laboratórios. O sentido que impregnou o senso comum ocidental desde o início da Modernidade foi aquele que, inspirado no platonismo, estabelecia um antagonismo radical entre verdade e simulação. Vejamos o que diz o verbete simulação na Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo Americana (1927):

"Direito - Alteração aparente da causa, índole ou objeto verdadeiros de um ato ou contrato. A simulação é, assim, causa de nulidade dos atos e contratos; delito e meio para tentar eludir uma obrigação jurídica (ex: simulação de loucura para escapar a uma penalidade legal)"... "Como a simulação recai sobre qualidades e estados pessoais anatomofisiológicos e psíquicos, à medicina legal incumbe intervir nestes casos. A ciência tem meios que fazem cada dia mais difícil o triunfo dos simuladores, mas devem abolir-se em absoluto os procedimentos coercitivos e tóxicos".

"Medicina legal - fingimento ou imitação de enfermidade"

"Psicologia - Modernamente, a psicologia tem estudado as alterações que, na manifestação exterior dos estados de consciência, introduz o sujeito psíquico com propósito deliberado. Com o fim de produzir nos demais uma impressão equívoca ou contrária, o homem simula habilmente uma situação de ânimo favorável ao fim que pretende. Em suas finas análises alguns psicólogos chegaram a determinar os modos gerais de simulação que empregam os anormais, perturbados ou criminosos, cuja astúcia chega com freqüência a despistar os profissionais da justiça. O psicólogo vê na simulação o poder da vontade sobre os movimentos expressivos e significativos, e pode descobrir através das deformações voluntárias do 'eu' os caracteres fundamentais da vida psíquica." (1927: 455, tradução nossa)

Nota-se pelo viés do verbete que havia, na época, um saber estruturado sobre a simulação, mas inteiramente abarcado pelas ciências humanas e submetido a poderes disciplinares. Era um saber sobre as insídias do fingimento e que tinha como objetivo identificar e isolar essa prática - coisa de doentes ou criminosos.

Mas o século XIX assistiu a uma ruptura na arquitetura do saber da Modernidade. Foucault (1967) faz referência a essa transformação, que teria se iniciado na virada do século XVIII para o XIX com a emergência de novos objetos dinâmicos e complexos, atravessados pelo tempo e irredutíveis às instâncias da representação, como o trabalho, a vida e a linguagem. A reconfiguração epistêmica das ciências humanas havida nessa época mudou a maneira de recortar objetos no mundo, e as taxinomias clássicas gradualmente passaram a dividir espaço com o estudo de organizações e funções.

A Filosofia não ficou imune a essa mudança. A palavra corrosiva de Nietzsche reconvocou os simulacros expurgados pela filosofia clássica, pela via da arte, e denunciou os fundamentos da ciência como intrinsecamente morais. O elogio da potência do falso, a afirmação da vontade sobre a verdade e do poder sobre o saber foram provocações suas que fizeram tremer o chão da Filosofia no limiar do século XX. Pelas mãos de Nietzsche, entre outros, os sentidos, os afetos e as paixões voltaram a ocupar um lugar no pensamento científico.

 

Bergson e o retorno dos híbridos

Desde a segunda metade do século XIX, e em todo o século XX, a primazia da representação como categoria cognitiva foi questionada sob diversos ângulos, inclusive em pesquisas experimentais no campo da percepção visual e da psicologia. Tornou-se insustentável a tese do conhecimento-representação puro e absoluto, desinteressado, desligado do corpo e do tempo. Os limites entre realidade e ilusão, e entre realidade e ficção, passaram a ser tratados nas ciências naturais como inevitavelmente imprecisos e nas ciências humanas como históricos, culturalmente produzidos. William James, e mais adiante Henri Bergson, participaram desse empreendimento, redefinindo a percepção e o pensamento como categorias híbridas e instáveis, que misturam continuamente subjetividade e objetividade, consciência e inconsciência, vontade e automatismo.

Embora a simulação não tenha sido explicitamente abordada nessa revolução da teoria da percepção, a produção filosófica e científica da época não deixou de refletir uma certa inquietação com o tema. A teoria da percepção de Bergson aplicou à filosofia platônica um golpe audacioso ao atribuir à imagem um estatuto ontológico; e mais, ao recusar dualidades opositivas e excludentes como aparência-essência, em proveito de dualidades complementares, geradoras de híbridos. O par matéria-memória (Bergson, 1939/1999) constituiu a base desse pensamento inovador, em sintonia com as ciências empíricas do século XIX, que, sondando a vida e a matéria sob novos ângulos, depararam-se com estados e condições paradoxais. Contra o pensamento clássico, na filosofia bergsoniana não há lugar para a percepção falsa.

O tempo e o movimento são os operadores fundamentais das dualidades e conceitos estabelecidos por Bergson, mas sempre enquanto categorias indivisíveis. Para o filósofo, a fragmentação que levou a uma visão espacializada de um e de outro não passa de um artifício da percepção dirigido à finalidade, inteiramente prática, de estabilizar o incessante movimento das imagens para organizar a ação. "Captamos aqui, em seu próprio princípio, a ilusão que acompanha e recobre a percepção do movimento real", afirma Bergson (1939/1999: 221), para criticar não o artifício em si mesmo, nem tampouco a ilusão sensorial, mas a tendência de que ela se torne uma verdade para a ciência, formando em nós o hábito de pensar o real somente a partir desse filtro.

Pouco antes de Bergson, William James já havia apontado a insuficiência das categorias estáticas da cognição, ao definir a atividade mental como um fluxo contínuo e cambiante que mistura percepções, desejos, pensamentos, afetos, e que apenas parece lidar com objetos independentes de si própria. Os estados da consciência são sempre complexos, segundo James, embora a ciência tenha invariavelmente o propósito de "reduzir a complexidade à simplicidade" (James, 1890/2006: 4). Assim como Bergson, James considera que a concepção de um real descontínuo, formado por objetos, é uma estratégia de linguagem fundada inteiramente no interesse humano.

"Sem dúvida é quase sempre conveniente formular os fatos mentais de uma maneira atomística e tratar os elevados estados de consciência como se fossem compostos de simples idéias imutáveis. É quase sempre conveniente tratar curvas como se fossem compostas por pequenas linhas retas, e eletricidade e força física como se fossem fluidos. Mas nos dois casos não podemos esquecer que estamos falando simbolicamente e que não há nada na natureza para responder a isto." (James, 1890/2006: 6, tradução nossa)

As teses de James, Bergson e outros filósofos e cientistas do século XIX puseram em cheque, em última instância, um postulado central da teoria da representação: a separação entre sujeito e objeto. Mostraram que a percepção humana é tanto objetiva quanto subjetiva, e está inexoravelmente ligada ao corpo, com suas oscilações e mudanças. Assim como não é possível, no nosso aparelho sensório-motor, separar o sensório do motor, também não é possível separar os objetos que percebemos da nossa ação - ainda que virtual - sobre eles. Teses sobre a cognição formuladas no século XX, a partir de pesquisas transdisciplinares envolvendo psicologia, neurobiologia e cibernética, vieram aprofundar essa reflexão e relativizar mais ainda o poder da representação de explicar o processo do conhecimento.

Uma dualidade proposta por Bergson (op.cit.) particularmente interessante para pensar a simulação é a dos modos da memória. Segundo o filósofo, pode-se distinguir uma memória-hábito - a da repetição e do adestramento - que forma padrões e se prolonga quase instantaneamente em ação; e uma memória-imaginação - a da diferença e da invenção - que transforma padrões e precisa de tempo (duração) para se desdobrar em ação. Esta memória da imaginação e do devaneio, que nunca se repete, e a memória-hábito, que só se forma por repetição, apesar de irredutíveis uma à outra são inseparáveis e trabalham em sinergia.

É possível pensar a memória-hábito em termos de representação, mas não a memória-imaginação, que tem a dinâmica dos fluxos. O historiador Jonathan Crary sublinha a importância, para a psicologia científica oitocentista, desse embate havido entre as concepções dinâmicas do funcionamento da mente e as teorias que sustentavam a idéia de uma consciência formada por conteúdos e elementos discretos. Segundo ele, as teses de James e Bergson, entre outros, tiveram um papel central na rejeição dos modelos espaciais ou cênicos da mente, como o da câmara escura, em favor de modelos temporais, que passaram a privilegiar operações e funções. Crary constata que, por iniciativa de filósofos da época, como Johann Herbart, o próprio conceito de representação chega a ser problematizado nessa época.

"A representação mental das coisas e dos fenômenos definitivamente não é uma reprodução da realidade exterior, mas sim o resultado de um processo de interação no sujeito mesmo, segundo o qual os conceitos são submetidos a operações de fusão, esmaecimento progressivo, inibição, mistura com outras apresentações ou representações anteriores ou simultâneas." (Crary, 1994: 147, tradução nossa)

Acreditamos que a teoria da percepção de Bergson contribui para elucidar o estatuto da simulação no campo da cognição. Assim como a percepção, a simulação parece ser uma categoria híbrida de matéria e memória, de natureza e artifício, de pensamento e ação. Assim como a percepção, é impossível conceber a simulação fora do tempo e do movimento. Embora necessariamente híbrida, a simulação pode privilegiar o plano da memória - por exemplo, na imaginação - ou o da matéria, que inclui não só os dispositivos sensoriais tecnológicos mas também, e talvez principalmente, o próprio corpo. Nos termos postos por Bergson, arriscamos as seguintes hipóteses acerca do estatuto da simulação:

1. No plano da memória, a simulação corresponderia ao movimento recursivo que articula memória-hábito e memória-imaginação.
2. No plano da matéria, corresponderia ao ensaio das ações delineadas a partir da percepção.

A noção de ensaio nos parece útil - embora não suficiente - para compreender a simulação, porque nos remete ao intervalo entre pensamento e ação. Mesmo quando se trata de uma ação concreta - um ensaio exteriorizado, atuado, e não apenas pensado - supõe uma certa reversibilidade ou indecidibilidade dos seus efeitos. Pode ser para valer ou não. O ensaio é uma atualização que joga de forma sistemática com o virtual2, seja como antecipação de uma ação futura seja como ação efetiva visando alterar a percepção. Um ensaio é sempre ensaio com modelo, ou seja, é pôr em movimento - ou em cena - uma representação.

Representação e simulação parecem operar de forma entrelaçada na atividade cognitiva. Enquanto a representação é uma categoria estática, que concerne aos objetos e aos sistemas, a simulação é uma categoria dinâmica, processual, que concerne ao movimento ou comportamento desses mesmos objetos e sistemas. O pensamento compõe representações e ensaia (simula) comportamentos e eventos a partir delas.

 

A cognição no século XX: emergência e enação

As teorias cognitivas desenvolvidas a partir dos anos 40 do século XX, já sob a influência da cibernética, defrontaram com a mesma armadilha que Bergson identificou nas correntes filosóficas dominantes desde o início da Modernidade; ou seja a de privilegiarem ou o subjetivismo ou o objetivismo, insistindo na dicotomia sujeito-objeto. Segundo Varela e colaboradores (2003), o cognitivismo dos anos 50, com sua aposta na hipótese da cognição como processamento de símbolos - modelo do cérebro eletrônico - recaiu no representacionismo e deixou sem resposta questões relativas ao modo de formação das regularidades simbólicas. Já o conexionismo dos anos 70, inspirado no paradigma da complexidade, teria respondido de maneira satisfatória essas questões, postulando que as interações subsimbólicas fazem emergir padrões - modelo das redes neurais - mas gerou dificuldades para explicar como essas interações chegam a produzir algum tipo de organização.

As propriedades emergentes, que deram origem à tese conexionista, têm sido consideradas o elemento fundamental para a construção de uma teoria formal da simulação. Por definição, modelos computacionais de simulação são sistemas dinâmicos que produzem emergência a partir da interação entre seus componentes, isto é, geram relações e eventos que não foram explicitamente codificados nos subsistemas (Barrett e Rasmussen, 1995). Essas relações e eventos se produzem por efeito cumulativo - o que, mais uma vez, sugere a impossibilidade de se pensar a simulação fora de um contexto processual, temporal - e, nos sistemas mais complexos geram informação nova para os subsistemas, alterando seus padrões de interação.

Na perspectiva da enação3, conceito proposto por Varela, há um entrelaçamento e uma co-determinação recíproca dos níveis simbólico e subsimbólico, o primeiro nível respondendo por funções cognitivas especialistas e o segundo por funções de integração/desintegração; o primeiro correspondendo mais diretamente ao pensar e o segundo se desdobrando no fazer (Varela et al, op.cit: 155). Ou seja, trata-se de uma categoria híbrida de pensamento e ação, assim como a percepção em Bergson é uma categoria híbrida de matéria e memória, e que da mesma forma rejeita qualquer pretensão de hierarquia entre seus componentes. O que articula esses dois níveis e os organiza é precisamente o corpo - daí a noção de "mente incorporada" (Ibid.)

A atividade cognitiva se desenvolve, na concepção de Varela, por uma interação recursiva de modelos mentais (sistemas de símbolos agregados numa memória) com sua contraparte física, material - a rede sensório-motora, que por sua vez muda incessantemente nas interações com o meio. Essa condição híbrida e processual, bem como a dinâmica baseada na circularidade entre modelo/pensamento e ensaio/ato, a nosso ver aproximam as categorias de enação e simulação, sugerindo que esta última, antes de apontar para o verdadeiro ou para o falso, seja simplesmente um modo de operar da cognição humana.

Com base nas elaborações teóricas que conduziram ao conceito de cognição incorporada, propomos a seguinte definição de simulação: estratégia cognitiva interativa baseada na produção de efeito de real a partir de modelos. Tal formulação procura respeitar o caráter paradoxal dessa categoria. Não parece possível conceber simulação como um conceito sólido, uno e de contornos bem definidos, mas sim como um conceito fluido, híbrido, pensável somente segundo o paradigma da complexidade.

Por estratégia cognitiva entendemos, com Foucault (1979), uma operação que concerne simultaneamente ao poder e ao saber. Seja no sentido de farsa ou no de método experimental, a simulação visa sempre alguma forma de domínio, de controle, ainda que seja para desmascarar outro controle ou escapar dele.

O atributo da interatividade é o que distingue simulação de representação em termos propriamente operacionais. Enquanto a representação é uma categoria estática, que supõe uma separação radical entre sujeito e objeto, a simulação, ao contrário, se define pela interação - pela ação do observador sobre aquilo que ele constituiu como objeto e, recursivamente, também pela ação desse objeto sobre o observador.

A expressão efeito de real é o elemento que dá a tonalidade paradoxal do conceito. A simulação se refere inexoravelmente à categoria do real - sem ela não faria sentido - mas ao real assumido como produção, como artifício. Tomei a expressão emprestada de Barthes, que a utilizou para analisar o realismo literário do século XIX, em particular na obra de Flaubert. Para esse autor:

"há ruptura entre a verossimilhança antiga e o realismo moderno; mas, por isso mesmo também, nasce uma nova verossimilhança, que é precisamente o realismo (entenda-se todo discurso que aceita enunciações só creditadas pelo referente)." (Barthes, 2004: 189)

Segundo o autor, essa forma de verossimilhança tem a estrutura semiótica de uma "ilusão referencial" (Ibid: 189).

"A verdade dessa ilusão é a seguinte: suprimido da enunciação realista a título de significado de denotação, o 'real' volta a ela a título de significado de conotação; no momento mesmo em que se julga denotarem tais detalhes diretamente o real, nada mais fazem, sem o dizer, do que significá-lo; o barômetro de Flaubert, a pequena porta de Michelet afinal não dizem mais do que o seguinte: somos o real; é a categoria do 'real' (e não seus conteúdos contingentes) que é então significada; noutras palavras, a própria carência do significado em proveito só do referente torna-se o significante mesmo do realismo: produz-se um efeito de real, fundamento dessa verossimilhança inconfessa que forma a estética de todas as obras correntes da modernidade." (Ibid: 189-190)

Mesmo admitindo que ilusão é uma categoria problemática, na medida em que pode suscitar a suposição da existência de um real verdadeiro por trás do efeito, insistimos na adequação da expressão, evocando a idéia nietzschiana do jogo infinito de máscaras, retomada por Deleuze (1988) em sua crítica da representação. No mundo que chamamos real, por trás de uma máscara há sempre outra máscara.

Ainda que possamos prescindir aqui da noção de ilusão, é forçoso reconhecer que o efeito de real, como tática de simulação, implica necessariamente uma interferência no fluxo sensório-motor-cognitivo visando alterar a percepção. Mesmo quando não tem o sentido de farsa, ou seja, quando não procura iludir a consciência, a simulação, para ser eficaz, precisa enganar os sentidos de alguma forma. Um exemplo bem conhecido é o do simulador de vôo, um dispositivo que, para cumprir satisfatoriamente sua função de treinamento, deve se apresentar da forma mais realista possível para os sentidos do aprendiz.

A articulação entre as noções de simulação e modelo, finalmente, apóia-se na própria tradição filosófica e científica. Seja opondo essas categorias, como fez o pensamento platônico, ou tratando-as como complementares, como fizeram as ciências experimentais, parece evidente que há uma afinidade entre modelo e simulação. A tecnologia informacional contemporânea, com seus modelos computacionais de simulação, brinca com esses dois modos de articulação quando mistura aprendizado e jogo4, conhecimento e entretenimento.

 

Considerações finais

A ambigüidade - ou melhor, o paradoxo - parece ser uma condição inescapável da simulação. De certa forma essa categoria cognitiva se caracteriza precisamente pela capacidade de embaralhar fronteiras cognitivas e desviar-se de qualquer enquadramento dicotômico. A simulação mistura o subjetivo e o objetivo, o real e o fictício, o ativo e o passivo. Assim, arrasta para o terreno do indecidível a oposição verdadeiro-falso.

Antagonizadas pelo pensamento clássico mas, por ironia, sinônimas nas artes cênicas, as categorias da representação e da simulação parecem formar um par conceitual. Há um jogo entre elas, que Baudrillard descreveu com elegância nesta proposição:

"Enquanto a representação tenta absorver a simulação interpretando-a como falsa representação, a simulação envolve todo o edifício da representação como simulacro". (Baudrillard, 1991: 13).

 

Agradecimento

Ao CNPq, pela bolsa de doutorado.

 

Referências Bibliográficas

Barrett, C. e Rasmussen, S. (1995). Elements of a Theory of Simulation. Retirado do endereço eletrônico http://www.santafe.edu, em 03/03/2006.         [ Links ]

Barthes, R. (2004). O rumor da língua (Laranjeira, M., Trad.). São Paulo: Editora Martins Fontes (original publicado em 1984)

Baudrillard, J.(1991). Simulacros e Simulação (Pereira, M.J.C., Trad.). Lisboa: Relógio d'Água (Original publicado em 1981)

Bergson, H. (1999). Matéria e memória (Neves, P., Trad.). São Paulo: Editora Martins Fontes (Original publicado em 1939)

Crary, J. (1994). L'Art de l'Observateur - Vision et modernité au XIX siécle. Nimes: Jacqueline Chambon Ed.         [ Links ]

Deleuze, G. (1988). Diferença e repetição (Orlandi, L. e Machado, R., Trads.). Rio de Janeiro: Graal (Original publicado em 1968)

Deleuze, G. (1998). Diálogos (Ribeiro, E.A., Trad.). São Paulo: Editora Escuta (Original publicado em 1998)

Enciclopedia Universal Ilustrada Europeo Americana (1927). Vol. 56. Madrid: Espasa-Calpe S.A. (70 volumes)

Foucault, M. (1967). As palavras e as coisas (Rosa, A.R., Trad.). Lisboa: Portugália (Original publicado em 1966)

Foucault, M. (1999). Microfísica do poder (Machado R., Trad. e Org.). Rio de Janeiro: Graal (1ª edição publicada em 1979)

James, W. (2006). The principles of psychology. Em: Classics in the history fo psychology, an Internet resource developed by Christopher Green. Toronto: York University (37 p.). Retirado do endereço eletrônico http://onlinebooks.library.upenn.edu, em 22/09/2006 (Original publicado em 1890).

Serres, M. (2003) O nascimento da física no texto de Lucrécio - correntes e turbulências (Trevisan, P., Trad.). São Paulo: Editora UNESP: EdUFSCAR (Original publicado em 1977)

Varela, F.; Thompson, E. e Rosch, E. (2003). A mente incorporada - Ciências cognitivas e experiência humana (Homeister, M.R.S., Trad.). Porto Alegre: Artmed (Original publicado em 1991)

 

 

Notas

M. I. Accioly
E-mail para correspondência: accioly@centroin.com.br.

(1) Adotamos aqui o termo mimesis na acepção corrente, de imitação.

(2) Segundo Deleuze, o atual e o virtual se opõem e se complementam, sendo o virtual regido por "um princípio de incerteza ou indeterminação" (Deleuze, 1998: 173).

(3) O neologismo enação corresponde à tradução do termo inglês enaction, proposto por Varela para substituir a representação como categoria cognitiva privilegiada. Vem do verbo enact, que significa efetivar ou atuar, daí ter sido traduzido também como atuação. Optamos pelo neologismo no intuito de valorizar a especificidade do conceito.

(4) A noção de jogo nos reporta à dimensão lúdica do fingimento - o faz de conta - e implica uma suspensão do juízo moral baseado na oposição verdadeiro-falso.