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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.70 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2018

 

ARTIGOS

 

Impulso destrutivo e ambiente: Winnicott em diálogo com Freud

 

Destructive impulse and environment: Winnicott dialogues with Freud

 

Impulso destructivo y ambiente: el diálogo de Winnicott con Freud

 

 

Nadja Nara Barbosa Pinheiro

Docente. Departamento de Psicologia. Universidade Federal do Paraná (UFPR). Curitiba. Estado do Paraná. Brasil. Fomento PDE/CNPq

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Objetivando compreender a trajetória teórica que levou Winnicott, ao final de sua obra, a tecer um franco diálogo com a teoria freudiana, o artigo apresenta as elaborações do autor sobre os processos emocionais primitivos, os quais devem ser entendidos como emergentes a partir das negociações empreendidas entre o impulso original agressivo do bebê e os modos como o Ambiente o maneja e sustenta a possibilidade de que, no processo de diferenciação Eu/Não eu, a destrutividade signifique a criação dos mundos interno e externo, uma vez o Ambiente sobreviva à sua própria destruição. Destaca que, à função paradoxal destrutividade/criatividade, Winnicott conecta o entendimento de pulsão de morte, postulada por Freud, como princípio desagregador necessário ao devir psíquico. À (in)destrutividade do Ambiente, o autor recorre à proposta freudiana sobre a presença paterna como elemento imprescindível ao processo de singularização. Conclui indicando a existência de uma continuidade/descontínua entre as teorias dos autores.

Palavras-chave: Impulso destrutivo; Ambiente; Pulsão de morte; Função paterna; Psicanálise.


ABSTRACT

In order to understand the theoretical trajectory that led Winnicott to open a dialogue with Freud, the article presents Winnicott's thinking on primitive emotional development, that must be understood as emerging from the negotiations stablished between baby's aggressive original impulse and the ways Environment holds it and permits that the process of differentiation between Me and Not-Me occurs, if the Environment survive from its own destruction. The article depicts that Winnicott enlaces the paradox destructivity/creativity to Freud's concept of Death Drive understood as the disintegrating principle necessary to psychic becoming. The (un)destructiveness of the Environment the author links to Freudian notions on father's presence as essential element to singularization process. As a conclusion, it proposes that there is a continuous/not/ continuous link between the two theories.

Keywords: Destructive impulse; Environment; Death drive; Father's function; Psychoanalysis.


RESUMEN

Con el objetivo de comprender la trayectoria teórica que llevó a Winnicott, al final de su obra, a tejer un franco diálogo con la teoría freudiana, el artículo presenta las elaboraciones del autor sobre los procesos emocionales primitivos, los cuales deben ser entendidos como emergentes a partir de las negociaciones emprendidas entre el impulso original agresivo del bebé y los modos como el Ambiente lo maneja y sostiene la posibilidad de que en el proceso de diferenciación Yo/No-yo, la destructividad signifique la creación de los mundos interno y externo, una vez el Ambiente sobreviva a su propia destrucción. Destaca que, a la función paradójica destructividad/creatividad, Winnicott conecta al entendimiento de pulsión de muerte, postulada por Freud, como principio desagregador necesario al devenir psíquico. A la (in)destructividad del Ambiente, el autor recurre a la propuesta freudiana sobre la presencia paterna como elemento imprescindible al proceso de singularización. Concluye indicando la existencia de una continuidad/discontinua entre las teorías de los autores.

Palabras clave: Impulso destructivo; Medio ambiente; Pulsión de muerte; Función paterna; Psicoanálisis.


 

 

Introdução

No campo dos estudos sobre a teoria de Winnicott é frequente ouvirmos que o autor proponha uma ruptura epistemológica radical em relação à obra de Freud a qual implicaria em uma impossibilidade de trabalharmos com os dois autores simultaneamente. Entre os aspectos destacados para sustentar essa proposição, evoca-se as reservas apresentadas por Winnicott em aceitar tanto o conceito de pulsão de morte quanto o privilégio, concedido por Freud, à figura paterna.

No entanto, embora tais argumentos sejam constantemente utilizados, acredito que eles mereçam ser melhor esclarecidos. Principalmente porque o próprio Winnicott (1989/2013), ao tecer suas últimas considerações a respeito dos fundamentos primitivos do processo de desenvolvimento emocional, se volta à obra freudiana propondo, com esta, um diálogo interessante. Winnicott afirma que o diálogo com Freud se justifica pelo fato dele ter percebido que ambos estariam tematizando preocupações afins a respeito da constituição da subjetividade, sobretudo no que diz respeito à função da destrutividade e da presença paterna em seus estágios mais primitivos.

No centro dessas reflexões, o objetivo do presente artigo é o de esclarecer as bases sobre as quais Winnicott sustenta a abertura desse diálogo com o texto freudiano para indicar que sobre elas se situam pontos importantes de interlocução entre os dois autores que nos permitem compreender a obra de Winnicott como estando em continuidade, ainda que original, com a obra freudiana. Para tal, percorre as principais ideias a partir das quais Winnicott traça sua teoria sobre a agressividade, focalizando, nessa trajetória, o destaque que o autor confere à negociação estabelecida entre agressividade e Ambiente a qual desemboca na tematização de dois pontos capitais: a positividade da destrutividade e a (in)destrutibilidade do Ambiente. Segundo minha hipótese, é justamente sobre esses pontos, sobre os quais alguns estudiosos sustentam a ruptura promovida por Winnicott em relação a Freud, que se encontra o potencial de diálogo, entre suas teorias.

 

Primeiras demarcações

Segundo Winnicott foi a clínica com pacientes psicóticos que forneceu as bases para o alicerce dos construtos originais de seu edifício teórico (Winnicott, 1988/2014). Ao trabalhar com a psicose, Winnicott (1945/2011) apreende que seus pacientes apresentavam questões que indicam que, na verdade, estariam lutando para estabelecer e manter uma sensação de unidade que, em seus casos, foi alcançada de forma parcial e bastante insipiente os impedindo de se perceberem, a si e aos outros, como pessoas singulares. Fato este que os impediria de vivenciar as questões triangulares relativas ao complexo edipiano. Dessa observação clínica, Winnicott (1945/2011) efetua duas proposições: primeiro, que o alcance da compreensão sobre a etiologia da psicose demanda o abandono do entendimento dessa psicopatologia a partir de uma regressão do complexo edípico; e, em consequência, destaca a necessidade de se empreender um estudo sobre os estágios primitivos do desenvolvimento emocional que levam ao alcance e à estabilização da sensação de unidade.

Preocupado, então, em cernir as bases etiológicas da psicose, Winnicott inicia a construção de seu alicerce teórico sobre os estágios primitivos do desenvolvimento emocional, destacando, no campo da transferência, três movimentos específicos. Ele tomará esses movimentos como sendo a face inversa dos processos básicos que se efetuam ao longo do desenvolvimento emocional de todos os seres humanos. O primeiro desses movimentos diz respeito ao fato dos pacientes psicóticos apresentarem, em regressão transferencial, um processo de desintegração egoica o qual é acompanhado da emergência de um intenso estado de angústia e sensações de despedaçamento, de aniquilamento ou de morte. O autor toma esse fenômeno como indicativo de que, o processo de desenvolvimento emocional parte de um momento de não-integração originário, comum e saudável, que tende à paulatina integração a qual terá como função a construção de limites organizadores do Ego. Processo este que emerge, nos casos graves de regressão na transferência, em seu sentido inverso: a sensação de desintegração. Esta última, por assinalar a possibilidade de perda dos limites e contornos egoicos, produz, como efeito, as sensações penosas de angústia assinaladas acima.

O segundo fenômeno clínico diz respeito ao fato dos pacientes psicóticos apresentarem quadros em que a relação entre a psique e o corpo se apresenta abalada. Os fenômenos de despersonalização, descorporificação, perda da sensibilidade corporal, comuns na psicose, são tomados por Winnicott como indicativos de que eles também expressam, no sentido inverso, um processo básico do desenvolvimento emocional, no qual os contornos corporais são constituídos de forma que o Corpo próprio possa se oferecer como lugar de morada para a sensação de existência singular. Por essas razões, Winnicott denomina de personalização esse processo de construção de limites corporais no interior do qual a sensação de existência singular possa encontrar um local para habitar.

O terceiro fenômeno clínico diz respeito ao fato de os pacientes psicóticos apresentarem uma grande dificuldade em manter os limites entre as realidades interna e externa operantes. Fenômeno por meio do qual as vivências e experiências perdem seus contornos e se des-realizam, se des-constroem, des-temporalizam, des-espacializam. O autor, postula, então, que há um processo a ser efetuado, ao longo do desenvolvimento emocional, por meio do qual há a efetivação da percepção da exterioridade através da espacialização e temporalização das vivências e experiências cotidianas. Winnicott (1945/2011) denomina esse processo de realização. Por meio dele, mundo interno e externo se comunicam, se inter-relacionam e, simultaneamente, se diferenciam.

Sendo assim, sustentado por sua experiência clínica, Winnicott (1945/2011) propõe a existência de três processos básicos a serem constituídos ao longo do desenvolvimento emocional primitivo: integração, personalização e realização. Cada um deles permitirá o alcance de uma conquista importante na jornada o infante à construção de sua singularidade. No entanto, adverte o autor, esses processos são dinâmicos, se interpenetram, intercambiam, são estabelecidos, perdidos, restabelecidos, sempre de forma parcial, transitória e provisória.

 

A Ilusão como condição fundamental

Partindo de sua hipótese sobre a existência de um estado primitivo de não-integração, Winnicott (1945/2011) começa a traçar suas considerações a respeito dos elementos necessários à ocorrência dos processos básicos do desenvolvimento emocional acima destacados. O fato de o bebê ser, tanto física quanto psiquicamente, dependente da exterioridade para a manutenção de sua existência, faz com que Winnicott tome essa dependência absoluta original como elemento indispensável para que o potencial ao crescimento inerente no bebê possa se realizar. Razão pela qual o autor incluirá em sua proposta teórica, uma estratégia de pensamento paradoxal por meio da qual, o desenvolvimento emocional se processará a partir de duas linhas intercambiantes: a do bebê e a do Ambiente que o gesta e o recebe ao nascer.

Propõe, então, que o processo de integração parte tanto da força dos instintos quanto dos cuidados dispensados pelo Ambiente ao bebê no atendimento de suas necessidades básicas. Dentre essas técnicas de cuidado, Winnicott (1945/2011) destaca o modo como os bebês são banhados, trocados, sustentados ao colo, nomeados, idealizados, amados (o que inclui a capacidade de odiar), ou seja, os modos pelos quais, ao lidar com seu bebê, o Ambiente o percebe como um ser humano integrado. Assim o fazendo, o mundo externo oferece ao bebê material psíquico e emocional que o ajudará a compor, gradativamente, seu mundo interno.

Nesse estágio primitivo, o bebê alterna momentos excitados (pela tensão proveniente das necessidades vitais) e calmos (após a satisfação das necessidades vitais), os quais são vivenciados pelo bebê como não relacionados entre si. Por não possuir recursos psíquicos capazes de integrar tais experiências, o bebê também não é capaz de perceber que ele é o mesmo nos estados calmos (nos quais experiencia sensações sensitivas prazerosas) e nos estados excitados (vivenciando experiências desprazerosas). Da mesma forma, ele também não percebe que é a mesma mãe que exerce ambas as funções, atendendo-o tanto nos estados calmos quanto nos excitados. Ou seja, ele não possui recursos psíquicos para perceber que a mãe é a mesma pessoa que o acalenta e que possui o seio que aplaca sua fome. Um seio que, na urgência da fome, o bebê abocanha, suga, morde, machuca. Um seio sobre o qual o bebê, embora sem a intenção, produz, pela força de seu ato instintivo, danos.

No entanto, o autor percebe que é importante levar em conta que, nesse momento de construção subjetiva, não havendo uma distinção entre sujeito e objeto, destruir o objeto significa, em última instância, destruir-se a si próprio. O que demanda do autor um esforço para compreender como se torna possível ultrapassar tal relação mortífera. Winnicott (1945/2011) indica, então, que deverá haver a ocorrência de uma operação psíquica/emocional que seja capaz de contornar o potencial destrutivo inserido no processo de satisfação instintiva. Para tal, o autor propõe que seja necessário a ocorrência de uma integração egoica mínima que permita uma ínfima distinção entre o Eu e o Não Eu sobre a qual a superação da relação mortífera se torna possível. E aqui, o autor faz valer, novamente, sua estratégia de pensamento paradoxal, ao propor que a possibilidade de ultrapassamento da relação mortífera seja decorrente dos esforços empreendidos tanto pelo ambiente quanto pelo bebê. Pelo lado do bebê, há a emergência de um impulso em direção a algo/objeto que aplaque sua fome. Esse impulso inclui em seu bojo a potência agressiva necessária para o abocanhamento, a sucção do seio e a ingestão do leite. Por seu turno, a mãe possui a capacidade de produzir leite e o desejo de oferecer seu seio para aplacar a fome de seu bebê. O fato da mãe ser a mais madura emocionalmente entre os dois permite que ela sustente o encontro de seu bebê com seu seio de forma que esse encontro se configure como o primeiro contato que o bebê estabelece com a realidade externa. Para tal, faz-se necessário que ambos vivam, em conjunto, uma experiência compartilhada, isto é, uma experiência de Ilusão. Ilusão que, em termos winnicottianos, significa que o bebê tenha a sensação que o seio apareceu devido a seus próprios esforços, e, que a mãe sinta que ofereceu exatamente aquilo que seu bebê precisava naquele momento.

Introduzindo uma ideia paradoxal, o autor propõe que o seio, nesse momento, é um objeto alucinado (criado), isto é, pertencente à realidade interna, e, simultaneamente, real (encontrado), isto é, pertencente à realidade externa. Ou seja, O autor destaca que esse "encontro" provê ao bebê um material (cheiros, gostos, texturas, temperaturas, sons, imagens, sensações) que poderá ser, por ele, evocado em seu próximo estado de excitação e de eclosão do processo alucinatório. Tal material comporá a malha subjetiva do bebê, na medida em que ele continue a alucinar (desejar) o seio, e a mãe continue a oferecer material a ser usado pelo bebê, sustentando as vivências de experiências de Ilusão.

Nessa perspectiva, a construção do mundo interno se enriquece com o material oferecido pelo mundo externo. Material que ao ser organizado de forma subjetiva, constitui o campo das fantasias primitivas indicando um modo de relação com o objeto/criado/encontrado, inicialmente, onipotente e mágico.

Porém, o fato de ser a realidade externa aquela que oferece o material que comporá a malha subjetiva das fantasias primitivas, tal fato permite que esse modo mágico e onipotente (e destrutivo) de se relacionar com os objetos seja, parcialmente, ultrapassado, pois, o objeto real não se encaixa exatamente no objeto/desejado/ alucinado. Há sempre uma decalagem, um desencaixe entre os dois. E será, justamente, essa não identificação total aquilo que possibilitará o ultrapassamento de uma relação objetal onipotente e mágica, em prol do encontro de uma relação objetal percebida como real. Interessante perceber que Winnicott esteja, paradoxalmente, indicando que o ultrapassamento do circuito mortífero do desejo se estabelece por duas linhas contraditórias. Por um lado, ele é dependente de uma ilusão que o seio alucinado é o mesmo que o seio real. Por outro lado, é necessário que ocorra a percepção de uma diferença entre os dois. O importante será que o bebê vá, gradativamente, adquirindo a capacidade de fazer a integração/distinção entre seio/alucinado/criado e seio/real/encontrado o que o permitirá, progressivamente, ir enlaçando e separando as realidades interna e externa.

Dessa forma, dos cuidados dispensados ao bebê e das experiências de satisfação instintivas, gradualmente, o processo de integração vai se tornando possível, demarcando a transição de um estado de apercepção a um estado de percepção da diferenciação interno/externo, o qual, no entanto, nunca é alcançado em completude. Não à toa, para Winnicott (1951/2011), faz-se necessária a introdução de objetos que permitam essa transição: os objetos transicionais. Objetos estes que vão permitir um enlace entre a construção do objeto alucinado, inicialmente, aparentemente independente da realidade externa, posto que constituído a partir do desejo onipotente do bebê, e a possibilidade de usar a realidade externa para o enriquecimento do mundo interno. No entanto, cabe incluir aqui, a ideia do paradoxo, ou seja, não há como se pensar na construção do desejo alucinatório sem a participação do seio/real como complementar à excitação. Problemática que indica a Winnicott a necessidade de melhor cernir como se processa essa negociação entre experiências instintivas e ambiente em prol da subjetivação.

 

Ambiente e impulso original: negociações

No esforço em tecer maiores considerações sobre a função do ambiente pari passu às experiências instintivas, Winnicott retoma a tematização sobre os impulsos primitivos constituintes das vivências de criação/encontro do objeto, para depois tematizar as qualidades do ambiente. E nesse esforço de teorização, o autor (1947/2011; 1950/1987) recorre à sua clínica com a psicose para dela extrair os fundamentos de sua proposta de compreensão. Pelo trabalho demandado, no eixo da transferência/contratransferência, Winnicott (1950/1987) destaca duas percepções bastante interessantes. Primeiro ele percebe que, nesses pacientes, os impulsos eróticos e os agressivos se apresentam desfusionados. Tal percepção permite a ele supor a existência de um momento do desenvolvimento emocional no qual os impulsos eróticos e agressivos não se encontravam fusionados. Ideia que o faz propor que a própria fusão constitui, ela mesma, uma conquista a ser efetuada ao longo do desenvolvimento emocional.

Em segundo lugar, Winnicott (1950/1987) percebe que, para o analista, lidar com os impulsos agressivos desfusionados de seus pacientes se apresenta como uma tarefa que exige muito mais esforço do que lidar com os impulsos eróticos. Dessa percepção, o autor propõe que tal fato se efetive porque o impulso agressivo seja aquele que demanda, para sua realização, a presença da exterioridade para que seu circuito se efetive e, em decorrência, a experiência seja sentida como real. Por seu turno, o impulso erótico, percebe o autor, pode se realizar com os objetos subjetivos, fantasmáticos, prescindindo (em parte) da realidade externa para que o circuito alucinatório do desejo seja concluído. Dessa forma, ele conclui que o índice de exterioridade, e de realidade, é dado pelo encontro com a alteridade via impulso agressivo.

Dessas duas percepções clínicas, Winnicott (1950/1987) retoma o estudo sobre o componente agressivo incluído no impulso do amor primitivo. Vimos que o impulso de amor primitivo contém em si uma quota de agressividade que permite que o bebê premido pela urgência da fome vá em busca de algo que a aplaque, abocanhando e sugando o seio com vigor. A pergunta que o autor se impõe a partir daí se refere às raízes desse impulso agressivo. Pois, se o impulso de amor primitivo pode ser inferido como possuindo suas raízes na emergência dos instintos que se iniciam com o nascimento do bebê, situando-o diante da tarefa de ter que lidar com a pressão daí decorrente, o autor se questiona sobre onde poderia situar a emergência do impulso agressivo que dá sustentação, em termos de força e vigor, à constituição do circuito do amor primitivo.

Winnicott (1950/1987) propõe que se os instintos (e o impulso erótico) se iniciam depois que o bebê nasce, a vida do bebê já se iniciara intrauterinamente. Ao longo desse modo singular de viver, o feto dispõe de uma atividade motora que o permite se movimentar no ventre materno, se expandir e ir de encontro a algo diferente dele mesmo (o útero). Segundo sua proposição, essas experiências, repetidas vezes efetuadas, vão constituindo os primeiros elementos que compõem o encontro do feto com a alteridade e constituiriam o solo para as experiências primitivas de diferenciação Eu-Não/Eu. Experiências que necessitam que o impulso motriz expansivo encontre uma oposição (o útero) para sua efetivação. Caso não encontre oposição, a motilidade espontânea restaria incompleta e não se configuraria como uma experiência que produziria uma sensação de realidade. Podemos perceber que Winnicott indica que mesmo nesses momentos mais primitivos, uma negociação entre feto e ambiente já esteja sendo estabelecida. Dessa negociação primitiva, os destinos da erotização e da agressividade já estão sendo jogados de forma a definir um posicionamento fantasmático do sujeito na trama de sua constituição subjetiva frente à alteridade.

A esse respeito, Winnicott (1950/1987) propõe três padrões de negociação possíveis entre a motilidade e o ambiente. No primeiro deles, o ambiente permite que as experiências motrizes de expansão sejam efetuadas de forma que o feto sinta que "encontrou" algo que a ele se opôs de forma adequada resultando daí a vivência de uma experiência sentida como real. Resta, nessas condições, uma quota de impulsionalidade para ser infusionada nas experiências do amor primitivo quando o bebê se encontrar na situação de ter que lidar com seus instintos.

No segundo padrão, pode ocorrer que o ambiente reaja aos impulsos motrizes do feto apresentando uma oposição forte que não apenas o contém, mas o faz retroceder. A sensação daí decorrente é a de invasão proveniente do ambiente, diante da qual o feto necessita reagir. Vemos que, aqui, ao necessitar utilizar uma quota de motilidade para reagir às invasões, a sobra liberada após a expansão do movimento espontâneo para ser infusionada nas experiências eróticas dando-lhes vida e realidade será bem pequena de forma a dificultar a composição agressividade/erotização.

No terceiro padrão, Winnicott descreve que o ambiente pode conferir tamanha oposição à expansão motora do feto que a ele nada sobra de motilidade/agressividade a ser infusionada no amor erótico. A impulsionalidade transforma-se em reações agressivas às invasões impostas pelo ambiente. Nesses casos, o destino da negociação agressividade/erotização se tornará comprometido e exigirá o encontro de situações de oposições cada vez mais intensas para que a sensação de realidade seja encontrada. Em vez de ocorrer o infusionamento da agressividade na erotização, ao contrário, há uma erotização do impulso agressivo.

Tais padrões de negociação recebem matizes os mais diferentes e variados. Somente no primeiro padrão de negociação, há a possibilidade de fusão entre a erotização e motilidade (agressividade). Nos outros, há uma erotização dos elementos agressivos e a pessoa só pode se sentir "real", isto é, existindo, quando é destrutiva e impiedosa. Nesse sentido, o mais importante é percebermos que o potencial agressivo incluído no impulso de amor primitivo é o resultado da negociação entre a força-vital de expansão e motilidade natural do feto e os modos de oposição a ela apresentados pelo ambiente. Ou seja, a conversão da força-vital motriz em potencial agressivo depende, também, da oposição ambiental, na medida em que este, ao encontrar oposição, se transforma em agressividade. Tal quota disponível de agressividade é que poderá ser infusionada às experiências eróticas que acometem o recém-nascido, dotando-as da força necessária à sua concretização e a consequente sensação de realidade. Por essa razão, sugere o autor que "é essa impulsionalidade, e a agressividade que se desenvolve a partir dela, que faz com que o bebê necessite de um objeto externo e não apenas de um objeto que forneça a satisfação1" (Winnicott, 1950/1987, p. 217).

Assim sendo, Winnicott introduz a ideia que toda a negociação possível entre erotização e agressividade depende desses primeiros momentos da constituição da subjetividade e, longe de representarem o resultado de misturas entre impulsos biologicamente determinados, configuram o campo das relações humanas já que são dependentes do estado emocional do ambiente que gera, gesta e acolhe o bebê ao nascer. Razão pela qual o próximo passo dado pelo autor no entendimento dos estágios primitivos do desenvolvimento emocional tomará como foco os modos como essas negociações são estabelecidas e os efeitos que elas produzem em termos de desenvolvimento emocional.

 

Da relação ao uso do objeto

Descrito como no processo de criação dos objetos subjetivos, a espontaneidade motora, transformada em agressividade, exerce uma função fundamental. O próximo passo que Winnicott (1989/2013) produzirá será o de cernir a função exercida pelo ambiente nesse processo. Em sua proposição, tal elucidação é importante pois, como fruto das interações entre a energia agressiva e os modos como o ambiente se porta frente a seus impactos, um dos principais trabalhos psíquicos a ser efetuado pelo infante poderá ocorrer: a transição dos relacionamentos com os objetos para a capacidade em usá-los. Em termos winnicottianos, isso significa a passagem de um modo no qual o sujeito se relaciona com os objetos subjetivamente constituídos, isto é, via princípio do prazer, mantendo-os sob um controle onipotente e mágico, para um modo de relacionar-se com os objetos percebendo sua externalidade e realidade, ou seja, situando-os fora da área de controle onipotente. Importa salientar que o autor traça, aqui, considerações que dizem respeito, não apenas sobre o processo de constituição e de distintos modos de relações com os objetos (subjetivos e objetivamente percebidos), mas, e principalmente, sobre os modos de relação possíveis entre o sujeito e o mundo que o cerca (Winnicott, 1989/2013).

Para melhor elucidar essa transição, Winnicott parte do princípio que a constituição alucinatória do desejo permite que o sujeito crie o objeto/seio e estabeleça com este um modo de relação específica. Nesta, o sujeito, ao investir um objeto, e com isso torná-lo significativo, produz algumas transformações em si próprio. Nesse processo, há perdas, uma vez que os mecanismos de projeção e identificação permitem que algo do sujeito se desloque para o objeto. Mas, por outro lado, há também um enriquecimento de si, na medida em que há gratificações e sentimentos prazerosos transitando nessas experiências. Nesse sentido, para Winnicott (1968/2011), o relacionar-se com um objeto pode ser descrito em termos totalmente subjetivos, podendo, portanto, ser relativo a um sujeito, em seu isolamento. Já no uso de um objeto, faz-se necessário acrescentar a isso aspectos que envolvem a natureza e o comportamento do objeto. Para tal, o objeto tem que realmente habitar a realidade compartilhada, o que demanda que ele (o objeto) seja considerado em sua existência independente, mantendo sua propriedade de existência para além do sujeito. Para que tal processo se estabeleça, faz-se necessário a ocorrência de uma vivência de Ilusão (tal como descrita acima) que sustente a capacidade à transicionalidade.

Winnicott (1968/2011) se volta, então, para o próprio objeto para tentar desvendar o que, em sua alteridade, poderia contribuir para esse movimento de transição. Vimos acima que o autor, ao descrever o processo de criação/encontro do sujeito com o objeto/seio, propôs que uma vez que a criação depende da destruição do objeto, para que esse circuito mortífero seja ultrapasso dois elementos são fundamentais: que o impulso erótico seguisse retornando (isto é, que a satisfação não beire à plenitude de forma a apagar o desejo e, com isso, aniquilar o objeto - e consequentemente o próprio sujeito) e que a mãe permanecesse apresentando o seio e com esse gesto continuasse sustentando a experiência de Ilusão. O que já havia sido destacado pelo autor (que a mãe permaneça apresentado o seio) passa a adquirir contornos de fundamento. E Winnicott (1968/2011) faz intercalar, entre a destruição e a criação/encontro, a sobrevivência do objeto como condição primordial para que a transição do relacionamento-com-o-objeto para a capacidade em usá-lo se efetive.

Em sua proposta de elucidação desse movimento, o autor fornece o exemplo de dois bebês sendo alimentados pela mãe. Um deles se alimenta de si mesmo, uma vez que ele e o seio não se tornaram diferenciados. O outro bebê se alimenta de uma fonte "outra-que-ele", isto é, ele é alimentado por um objeto com o qual o bebê pode agir sem piedade e sem cerimônias, sem se preocupar com os efeitos que seu agir produzirá sobre o objeto. Aqui, Winnicott introduz sua ideia que, tal como na transformação da motilidade em potencial agressivo a ser infusionado na experiência erótica, o modo como o Ambiente acolherá esse agir impiedoso do bebê será definitivo para a aquisição de uma capacidade em usar os objetos. Isso porque, para criar o objeto, o sujeito necessita destruí-lo com seu agir impiedoso. Porém, se objeto sobrevive a essa destruição, ele oferece recursos ao bebê para consolidar sua criação, suportar sua destruição (afastamento) e perceber sua existência como "outro-diferente-de-si". Nessa sequência, destruição/sobrevivência/criação-encontro, Winnicott (1968/2011) entende a possibilidade da passagem do modo relação com o objeto para o seu uso, na medida em que o objeto sobreviva à sua própria destruição e permaneça lá, o tempo que for necessário, sendo destruído (em fantasia) e sobrevivendo (em realidade). Paradoxalmente, o autor acentua o valor positivo da destruição relacionando-a à sobrevivência do objeto, para a criação dos mundos interno e externo. Assim, o sujeito pode continuamente usar o objeto que sobreviveu à destruição, enriquecendo-se e enriquecendo o mundo que o cerca.

O autor acrescenta que o fato de os objetos se encontrarem fora da área de controle onipotente do sujeito seja, também, um vetor que provoca a sua destruição. Mas, destaca que, para o sujeito, o mais importante nessa operação, é o fato de que a contínua destruição do objeto, seguida da sua contínua sobrevivência, produza, como resultado, a possiblidade do sujeito alocar o objeto fora da área de seu controle onipotente. Em suas palavras: a capacidade de uso de um objeto pode ser alcançada pelo indivíduo em seus estágios iniciais de crescimento emocional apenas por meio da sobrevivência real dos objetos investidos que estavam, nesse momento, em processo de serem destruídos porque eram reais, se tornando reais porque foram destruídos (Winnicott, 1968/2011, p. 256).

Tal postulado leva adiante a ideia que o impulso destrutivo cria a exterioridade. Acrescentando que a exterioridade tem que permanecer viva, após ser recorrentemente destruída, para ser encontrada e, portanto, criada. Faz-se importante assinalar que Winnicott destaca que utilizou a palavra destrutividade, para caracterizar esse movimento fundamental, não por um suposto poder destrutivo natural inerente ao impulso primordial, mas pela possibilidade do objeto não sobreviver a seu impacto. Ou seja, nesses momentos primitivos do desenvolvimento subjetivo, a destruição não possui um carácter intencional, mas de sua ação e da sobrevivência do objeto, dependem a construção da experiência de Ilusão, que sustenta os processos de diferenciação Eu-Não/eu, a descoberta da externalidade e a transição da relação com o objeto para o alcance da capacidade em usá-lo.

 

O diálogo com Freud

Porém, embora Winnicott tenha formulado, em termos teóricos, como se processa a transição da relação (objeto-subjetivo) para a capacidade de uso (objeto objetivamente percebido), por meio da destruição e sobrevivência do objeto, suas indagações persistem.

Por um lado, a positividade da destrutividade, que inclui em si mesma o potencial criativo, o faz aprofundar o estudo sobre o impulso agressivo. Mas com a novidade de recorrer ao conceito de pulsão de morte postulado por Freud (Winnicott, 1989/2013).

Por outro lado, Winnicott se interroga sobre o que sustentaria a possiblidade de sobrevivência do ambiente que, por ser relativa a movimentos inconscientes, não poderia ser dependente, exclusivamente, de um suposto amadurecimento emocional materno, tal como o autor havia previamente indicado. Avançando sobre esse tema, Winnicott (1989/2013), que até então havia refletido sobre a relação bebê/mãe tomando essa última como ambiente primordial, lança mão de um novo elemento para sustentar suas elaborações: o Pai. E, nesse movimento, ele se volta, também, ao texto freudiano e suas elaborações sobre a função paterna no processo de constituição psíquica.

No artigo intitulado "O uso de um objeto no Contexto de Moisés e o Monoteísmo", Winnicott (1989/2013) declara que procurará esclarecer melhor suas ideias a respeito da distinção entre relacionar-se com o objeto e usá-lo, efetuada em seu artigo prévio (Winnicott, 1968/2011). Para alcançar seu objetivo, o autor afirma ser necessário proceder à análise de dois temas capitais: a teoria das pulsões e a universalidade da repressão do amor ao pai. Para desenvolver o primeiro tema, o autor se remete ao texto freudiano "Análise terminável e interminável" (Freud, 1937/1986). Para o segundo, recorre a "Moisés e o Monoteísmo" (Freud, 1939/1986). No desenvolvimento de seus argumentos, Winnicott parte de sua clínica com pacientes psicóticos. Em sua perspectiva, essa clínica trouxe elementos que o permite confirmar algumas intuições efetivadas, mas não desenvolvidas, por Freud.

Em relação à teoria das pulsões, o trabalho com a psicose indicou a existência de um momento primitivo anterior à fusão no qual o impulso destrutivo caracteriza-se como expressão da vivacidade do feto e de sua ação a externalidade é encontrada/criada. No entanto, observa o autor, ainda que o impulso originário seja único, atrelando destrutividade à sobrevivência do objeto, sua expressão se efetiva por meio de uma duplicidade opositiva: destruição/criação. Perceber essa relação de oposição inclusiva fez com que Winnicott (1989/2013) se remetesse ao texto freudiano para nele indicar que talvez tenha sido essa a ideia do autor ao sustentar sua hipótese sobre as pulsões de morte e de vida alinhando-a à proposta de Empédocles, filósofo que propôs o conflito amor/discórdia como princípio que anima os seres humanos e o universo.

Com essa proposição, Winnicott indica que talvez seja possível compreendermos o dualismo pulsional postulado por Freud não como sendo relativo aos efeitos produzidos pelo encontro de duas classes de pulsão cada uma delas possuindo uma natureza própria, mas como referente aos modos por meio dos quais um único impulso primitivo se expressa em termos de uma oposição inclusiva, tal como ele estava propondo. Nesse sentido, Scarfone (2011) propõe que Winnicott, ao destacar o alinhamento freudiano à hipótese de Empédocles, estaria retirando da pulsão de morte as características com as quais sempre discordou: a natureza biológica e a tendência ao estado inorgânico. Para ele, Winnicott, ao situar o impulso originário em um "mais além do princípio do prazer", estaria relacionando destrutividade à pulsão de morte postulada por Freud, uma vez entenda-se essa última, como princípio desagregador (discórdia) necessário ao devir psíquico (amor). Mais ainda, para Scarfone (2011), Winnicott, ao formular um impulso original, cuja ação e efeito se processam no plano inter-relacional, estaria oferecendo uma base não biológica para a emergência das pulsões em sua dupla face: agregação (amor/pulsões de vida) e desagregação (discórdia/pulsão de morte).

Em relação ao segundo ponto, ou seja, à universalidade da repressão do amor ao Pai, Winnicott (1989/2013), partindo de uma inferência clínica, percebe uma contradição interessante a partir da qual constrói mais uma ponte de diálogo com Freud. Por um lado, a clínica com a psicose o informa que a repressão do amor ao pai possui, para esses pacientes, pouco valor, pois eles estariam lutando para se manterem integrados e diferenciados de seus semelhantes. No entanto, contraditoriamente, é frequente observar que essa mesma luta (manter-se integrado) é enfrentada por inúmeras pessoas (religiosas) que aderem à crença sobre a existência de um Deus único. A contradição que Winnicott aponta é que, embora nessas pessoas o conflito edípico também não possa ser vivenciado enquanto tal (como nos casos de psicose), a figura paterna está presente de forma contundente por meio da figura de um Deus onipresente e onipotente. Tal percepção faz com que Winnicott se questione, então, sobre a função do pai nos estágios primitivos do desenvolvimento emocional os quais antecedem o conflito edípico. E, nessa empreitada, recorre ao texto freudiano sobre Moisés e o Monoteísmo, no qual Freud (1939/1986) apresenta a tese sobre a existência de um paralelo entre o advento do Monoteísmo, em termos civilizatório, e o complexo edípico, em termos individuais.

Procurando compreender esse paralelo, Winnicott (1989/2013) se debruça sobre a função paterna na luta empreendida entre o impulso destrutivo e a sobrevivência do ambiente. Como descrito acima, o autor propõe a sequência: impulso agressivo ao objeto - sobrevivência do objeto - realização do objeto como entidade independente. Nessa sequência, Winnicott (1968/2011) havia destacado que, na relação bebê/mãe, o fato de a mãe sobreviver aos ataques destrutivos do bebê seria um fator primordial para a consolidação da sequência como criativa. No entanto, nesse momento derradeiro de teorização, Winnicott (1989/2013) insere o Pai como fundamental nesse processo, entendendo-o como elemento necessário ao processo de criação/encontro ao favorecer a separação entre a criança e sua mãe. E destaca que é a presença "real" (actual) do Pai aquilo que se configurará como locus privilegiado contra o qual o bebê se debate e a partir do qual ele se desenreda, a si mesmo, de um estado de indiferenciação originário em prol de sua singularização. Em suas palavras:

O pai pode ou não ser um substituto da mãe, mas, em alguns momentos, ele começa a ser sentido como estando lá ocupando uma outra posição, e é aqui que o bebê é suscetível de fazer "uso" do pai como diagrama (blue-print) para sua integração, quando se torna, ocasionalmente, uma unidade (Winnicott,1989/2013, p. 297).

Reeves (2007) destaca que o que Winnicott introduz nesse instante de sua obra diz respeito a uma diferença crucial entre as funções materna e paterna para o processo de construção subjetiva. Nessa perspectiva, a mãe, ao constituir-se como objeto subjetivo, criado na fantasia, a partir do atendimento das necessidades de seu bebê, "funciona" como um objeto parcial o qual, por meio de sua recorrente destruição e sobrevivência, consolida a emergência do circuito alucinatório do desejo. Por outro lado, Winnicott introduz a ideia de que o Pai se apresenta à percepção do bebê, como o primeiro objeto total, integrado e unitário, o que inclui o reconhecimento de sua alteridade e exterioridade. Diferentemente do que ocorre com a mãe, o Pai pode ser apreendido, desde o início, como "outro", como alteridade pura, como objeto total cuja função primordial é a de sustentar a diferenciação primitiva que sustenta o ultrapassamento do circuito mortífero do desejo alucinatório em prol da integração e da singularização. Nas palavras de Winnicott:

É fácil presumirmos que já que a mãe inicia como um objeto parcial ou como um conglomerado de objetos parciais, (com) o pai deveria ser o mesmo. Mas, estou sugerindo que nos casos favoráveis, o pai começa como um TODO (isto é, como Pai e não como um sub-rogado da mãe) e, posteriormente, torna-se inserido como um objeto parcial (Winnicott, 1989/2013, p. 297).

Para compreendermos esse processo por meio do qual o pai transita de um objeto total para um objeto parcial, devemos tomar o movimento paradoxal da identificação/diferenciação. A princípio, a identificação com a imago paterna unitária, desatrela a criança de seu estado de indiferenciação originário, inserindo uma brecha entre esta e sua mãe. Nesse intervalo, há o vislumbre de uma singularização que permite a consolidação do objeto/mãe como parcial atrelado ao circuito do desejo organizado pela fantasia. Daí em diante, a função do Ambiente será a de se deixar "usar" e, com isso, permitir que o infante desenvolva seu universo pessoal, fantasmático e desejante de forma consistente e segura. No entanto, o processo de identificação à imago paterna porta, em seu bojo, a fragmentação do pai posto que a identificação é efetuada sobre um traço do outro, e não sobre sua completude. A unidade paterna, então, sucumbe à fragmentação e a partir dela, o pai, ao ser fragmentado, pode ser inserido na cadeia subjetivante do desejo, como objeto parcial. Nessa perspectiva, Winnicott, ao sugerir que o Pai faz sua entrada no universo infantil como protótipo da unidade, introduz a ideia de um Pai que porta a diferença fundamental capaz de sustentar a diferença sexual (Scarfone, 2011).

O interessante é que, embora não explicitando, Winnicott (1989/2013) declara que essa sua perspectiva se alinha à proposta freudiana sobre a existência de uma correspondência entre o advento do Monoteísmo, em termos civilizatórios, e o Complexo edípico, em termos individuais. No meu entendimento, Winnicott percebe que tanto ele quanto Freud estariam tematizando dois planos de uma mesma proposição: uma que diz respeito àquilo que a Cultura é capaz de transmitir a cada indivíduo, o antecipando e o transcendendo ao nascer, em termos de malha simbólica a partir da qual a subjetivação das vivências concretas ganha estatuto humano. E, em outro plano, o complexo de Édipo, entendido como destino individual a partir do qual cada sujeito se posiciona na trama das relações afetivas e amorosas a partir de uma posição fantasmática alicerçada na instituição do circuito alucinatório do desejo. A primeira diria respeito à diferenciação Eu-Não/eu a segunda à diferença sexual. Na constituição de ambas, tanto Freud quanto Winnicott destacam as funções paradoxais e fundamentais da destrutividade e do Pai.

 

Proposições

Ao longo do artigo, destacou-se que Winnicott parte, sobretudo, do exercício da clínica com pacientes psicóticos para alicerçar sua teoria sobre a construção subjetiva desde seus primórdios mais longínquos. A clínica com a psicose o permitiu avançar sobre os estágios primitivos do desenvolvimento emocional e propor a integração, a personalização e a realização como sendo os processos básicos que levam à constituição de uma sensação de unidade a partir da qual a criança pode se reconhecer como singular. Na efetivação desses processos subjetivos, o autor destaca as funções primordiais e paradoxais da agressividade e do Ambiente.

Da ação mutuamente oposta entre o impulso agressivo primitivo e os modos por meio dos quais o Ambiente o maneja, Winnicott percebe como fruto a criação/encontro dos mundos interno e externo. Rastreando as origens mais precoces dessa negociação agressividade/ambiente, o autor é levado a situar as raízes da agressividade sobre a impulsionalidade natural do feto que se movimenta simplesmente pelo fato de estar vivo. Das interações entre esse impulso originário, que se transforma em agressividade, e o Ambiente a criação/encontro com o "diferente-de-si" vai se tornando possível, já situando uma posição fantasmática do sujeito frente a seu desejo e a alteridade que o constitui. Um encontro/criação delicado, pois seu movimento se apoia sobre uma força agressiva que ao destruir o objeto (na fantasia) é capaz de criá-lo (no desejo) e encontrá-lo (na realidade). Movimento dependente de que o objeto sobreviva à sua destruição fantasiosa, para ser recorrentemente (re)criado/desejado e (re)encontrado/realizado, definindo, com sua sobrevivência, a possibilidade de constituição, simultânea, tanto do sujeito quanto do mundo que o cerca. Movimentos que determinarão, para Winnicott, uma transição fundamental para o viver na coletividade. A transição de um modo de se relacionar com os objetos de forma subjetiva, onipotente, mágica e, portanto, desorganizadora e mortífera, para um modo de relacionar-se com os objetos, usando-os, isto é, respeitando sua individualidade, independência e alteridade. Em termos vivenciais, para Winnicott, embora longe de ser harmonioso e pacífico (o que a inexorabilidade dos sintomas o atesta), o uso do objeto é organizador e criativo. Por meio dele, o sujeito se torna capaz de produzir constantes transformações em si e no mundo compartilhado, mantendo uma sensação de unidade e realidade, ainda que pagando o preço de ter que lidar com algumas formações sintomáticas, entendidas como representes singulares dessa trajetória subjetiva conflituosa e dinâmica. Razão pela qual, assim como Freud, Winnicott alicerça seu edifício teórico a partir da escuta clínica de seus pacientes pois, somente ela, poderá desvelar como cada indivíduo, de forma única, construiu e organizou sua tessitura subjetiva.

No momento derradeiro de sua teorização, Winnicott enfrenta duas questões cruciais: a relação de oposição inclusiva destrutividade/criatividade, intrínseca ao impulso primordial, e a (in)destrutibilidade do ambiente. Ou seja, se bebê e ambiente são, no mais primitivo momento do desenvolvimento emocional, indiferenciados entre si, o que, para além dessa unidade/dupla, sustentaria a diferenciação necessária para que a destruição signifique criação?

Nos desdobramentos dessas indagações, o próprio Winnicott recorre a Freud pois acredita que ambos estariam problematizando temas em comum em relação aos primórdios da constituição subjetiva e ao processo que perpassa as possibilidades de singularização. Momentos primitivos que antecedem e preparam as condições de possibilidades da vivência do Complexo de Édipo. Nesse sentido, Winnicott traça paralelos preciosos com a obra de Freud a respeito da potência criativa/destrutiva implícita na noção freudiana sobre o dualismo/paradoxal do circuito pulsional e sobre a função do Pai como rede simbólica necessária para a transmissão dos elementos culturais que permitem a subjetivação das vivências concretas encaminhando à diferenciação primária que sustenta o processo de singularização que por sua vez permite a inscrição, do sujeito, no campo da diferença sexual e das relações amorosas e afetivas que entrelaçam os seres humanos.

Nesse sentido, podemos perceber que o próprio desdobramento teórico de Winnicott sobre o processo de constituição subjetiva o encaminhou à obra freudiana para com esta dialogar de forma franca e frutífera. Em sua face explícita, esse diálogo se sustenta sobre as noções de destrutividade e de função paterna. Em sua face implícita, Winnicott, ao sustentar essas noções sobre os conceitos de desejo, fantasia, identificação, inconsciente e sexualidade, abre novas possibilidades de diálogo com o que há de mais caro na obra de Freud: sua metapsicologia.

Creio que com esse gesto, Winnicott chama a atenção para um modo particular de se posicionar frente à obra freudiana entendendo-a, não como ultrapassável, mas como fundamento indispensável à problematização, circunscrição e enfrentamento dos desafios impostos pela clínica. Ou seja, Winnicott abriu inúmeros caminhos que levam ao diálogo com Freud, nos deixando, como legado, a exigência em percorrê-los.

 

Referências

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Freud, S. (1986). Moisés e o Monoteísmo (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, Vol. 23). Rio de Janeiro, RJ: Imago. (Originalmente publicado em 1939).         [ Links ]

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Winnicott, D. W. (2014). La nature humaine (B. Weil, Trad.). Paris: Gallimard. (Originalmente publicado em 1988).         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Nadja Nara Barbosa Pinheiro
nadjanbp@hotmail.com

Submetido em: 09/03/2016
Revisto em: 16/09/2017
Aceito em: 25/09/2017

 

 

1 Todas as citações são traduções livres.

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