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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2012

 

ARTIGOS

 

Quando as mulheres gostavam (?!) de apanhar (narrativas femininas nos primeiros filmes baseados em peças de Nelson Rodrigues)

 

 

Luiz Fernando Gallego

Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro e da Associação de Críticos de Cinema do RJ

 

 


RESUMO

O autor propõe um confronto entre as narrativas da mítica personagem Sherazade e as de algumas personagens de peças de Nelson Rodrigues que foram utilizadas em filmes brasileirosrealizados entre 1963 e 1973. Discute-se o recurso literário do uso do "narrador inconfiável", além da aplicação de alguns conceitos psicanalíticos evocados a partir de características das personagens.

Palavras-chave: narrador inconfiável; ferida narcísica; fúria narcísica; pulsão de morte.


ABSTRACT

The author proposes a confrontation between the narratives of the mythical character Scheherazade and some parts of Nelson Rodrigues' characters that were used in Brazilian films made between 1963 and 1973. The literary feature use of the "unreliable narrator" is discussed in addition to the application of some psychoanalytic concepts evoked from the characteristics ofthe characters.

Keywords: unreliable narrator; narcissistic wound; narcissistic rage; death drive.


 

 

1. INTRODUÇÃO

A capacidade de uma narrativa oral conquistar seu ouvinte é magnificamente exemplificada na figura de Sherazade, aquela que preservou a vida contando histórias durante noites inteiras ao sultão com quem estava casada, mas interrompendo-as em um momento crítico do enredo com a desculpa de que a aurora se anunciava. Com o nascer do dia, ela deveria ir para o cadafalso, tal como tantas outras esposas anteriores, punidas pela infidelidade de uma conjugue mais anterior ainda, a primária (o sultão permaneceu ferido narcisicamente, tal como o filho que descobre que a mãe não é só sua).

Com a curiosidade espicaçada, desejoso de saber o final das histórias interrompidas (novas histórias que ocupavam o lugar da sua própria história antiga de traição e que nunca se concluíam, enredando subtramas no enredo central, abrindo-se em novos episódios a partir dos episódios iniciais), o déspota postergava a pena máxima da esperta contadora de lendas por mais um dia e mais uma noite...

...e, assim, ela conseguiu que o poderoso tirano suspendesse sua condenação ao cabo de 1.001 noites - na verdade, um número mítico que remete ao infinito, ao sempre mais além, à incomensurável grandeza que sempre pode se ver acrescida pelo acréscimo de outra unidade... e mais uma... e mais uma...

Ao deixar o sultão em suspense, Sherazade pode ter sido a que lançou o formato dos futuros folhetins publicados em jornais diários, especialmente nos séculos XVIII e XIX, mas ainda populares no século XX, que também viu nascer novelas de rádio ou TV, assim como os filmes de aventuras seriados nos cinemas dos anos 1930 e '40 -para não falar das séries e minisséries televisivas atuais.

Mas se a narrativa de Sherazade trazia o elogio da oratória através do discurso tête-à-tête, neste enquadre vemos confundir-se a sedução pela palavra com a atração erótica corpo a corpo. Sherazade era capaz de reacender, a cada noite que se derramava na aurora, o estímulo sensual e o desejo incoercível no macho ferido pela traição da primeira de suas esposas, agora um sádico saciado por uma única relação sexual com cada nova companheira, que logo depois enviava para a morte. Sherazade, através da palavra investida de emoção e humor, conseguiu reunir gradualmente no self até então splittado do sultão os desejos irreprimíveis de usufruir dois prazeres: o sexual e o de escutar. Ele passou a poder lidar não apenas com sua própria história de traição, mas com outras tantas, referidas a outros heróis (e heroínas), podendo haver relatos eróticos de travessuras sexuais, incluindo outras traições - só que ocorridas com outros, e não só com ele.

As histórias das "1.001 Noites", durante tanto tempo associadas no Ocidente apenas a contos infantis (mais ou menos espúrios, como os de "Aladim" e "Ali-Babá") incluem de fato episódios "adultos", conforme já se pode ler hoje em dia nas traduções diretas do árabe disponíveis em português. Não foi gratuitamente que o poeta e cineasta Píer Paolo Pasolini filmou "Il Fiori delle mille e uma notte" ao lado de suas versões para o "Decameron" e para "The Canterbury Tales", obras mais associadas à literatura erótica em nosso imaginário ocidental, formando um tríptico que considerou inicialmente como sua "Trilogia da Vida".

Afinal, a palavra é sempre investida pulsionalmente, mesmo quando o processo de sublimação se faz dominante no escopo da civilização. E a moldura dos contos das "Mil e uma Noites", ou seja, a história de Sherazade e do sultão, o relato base que envolve e engloba os outros, demonstra isso.

 

2. SHERAZADE INCONFIÁVEL

Por ocasião de uma homenagem à atriz Odete Lara em maio de 2011, pude rever o filme que Nelson Pereira dos Santos realizou em 1962/63 a partir de "Boca de Ouro", no qual a atriz faz o papel de Dona Guigui, ex-amante do bicheiro conhecido pelo nome do filme e da peça de Nelson Rodrigues que lhe deu origem(1).

Esta personagem conta para um repórter (e para o espectador) três versões diferentes sobre um mesmo episódio na vida do bicheiro conhecido como "Boca de Ouro". Deve ter sido difícil quando a peça estreou (1959), e mais ainda poucos anos depois, quando foi levada às telas pela primeira vez, não considerando alguma influência cinematográfica no recurso de apresentar o mesmo fato (um crime) de três modos diversos. A lembrança imediata seria a de Rashomon, de Akira Kurosawa (1950), ainda que no filme japonês (e no conto "No Bosque", de Akutagawa, em que o filme se baseava), as diferentes versões do mesmo fato sejam dadas por diferentes narradores.

Já em "Boca de Ouro", é a mesma Dona Guigui que, a cada estímulo externo, modifica a narrativa básica que envolve o bicheiro e um casal jovem que pretende se beneficiar da riqueza do contraventor (podendo surgir novas personagens a cada mudança de rumo do que é contado por ela).

Assim sendo, esta personagem é fundamental para a estrutura formal e para o desenvolvimento dramático do enredo: Dona Guigui poderia ser considerada como uma espécie de coautora da trama, já que quase tudo que o espectador vê se origina da(s) narrativa(s) desta Scherazade inconfiável.

A figura do unreliable narrator - o "narrador inconfiável" - tem sua expressão máxima em nossas letras na criação de Machado de Assis para "Don Casmurro": desde que se perceba o "autor" da narrativa como um personagem a quem interessa contar os fatos de modo a introduzir sua própria interpretação sobre eles, passamos a não ter a mesma certeza sobre o adultério de Capitu.

 

 

Não seria jamais o caso de duvidar que o personagem Boca de Ouro não seja um marginal perigoso. O que pode até ficar em dúvida é o papel de Guigui na vida de Boca e até no que teria acontecido ao casal que foi buscar auxílio financeiro junto ao bicheiro - o que acabou em morte(s). É nessa ambiguidade das narrativas de Guigui sobre o que teria de fato acontecido que encontramos uma das melhores criações de Nelson Rodrigues, vivida de modo exemplar pela atriz Odete Lara no filme de Nelson Pereira.

Já que tudo o que se conhece sobre o Boca é através do que ela diz, cabe lembrar que é o seu estado de ânimo mutante que embasa a recriação da figura multiforme do personagem-título: inicialmente, um monstro que, logo em seguida, pode reaparecer com "uma pinta de lorde" - mesmo que não deixe de ser um mau-caráter abjeto.

Cabe à atriz que dá vida ao papel ser convincente ao apresentar cada uma das versões, mesmo que - por serem tão conflitantes entre si - todas acabem por parecer inconvincentes. Mas, a cada vez que a personagem refaz a narrativa, a atriz precisa nos convencer de que aquele deve ser o relato fidedigno, como é a impressão transmitida por Odete Lara neste que é um de seus melhores desempenhos (talvez o melhor de todos) nas telas.

A ambiguidade da personagem deve corresponder a uma ambivalência intrínseca na interpretação da atriz, ao mesmo tempo em que não pode deixar de transmitir a figura de mulher pobre suburbana, classe média baixa dos anos 1950 no Rio de Janeiro. Vale dizer: além de Sherazade inconfiável, é uma figura prosaica. Mas quem disse que as pessoas "simples" não podem ser muito complexas?

"Boca de Ouro" é uma das oito peças agrupadas por Sábato Magaldi (MAGALDI, 1987a) como "Tragédias Cariocas" do maior nome de nossa dramaturgia, tendo sido a primeira adaptada para o cinema, seguindo de perto a esteira do sucesso teatral das encenações originais para o palco. Os filmes inspirados em obras de Nelson Rodrigues também pretendiam aproveitar o "sucesso de escândalo" ligado ao nome do escritor desde a década de 1940, sendo que a iniciativa dessas transposições iniciais para a tela ("Boca de Ouro", '62, e "Bonitinha, mas ordinária", na versão de '63) foi do ator Jece Valadão - que faz o personagem-título de Boca e ficou com o papel central masculino no outro filme.

Dirigido por Nelson Pereira dos Santos, "Boca de Ouro" não era, portanto, um projeto autoral do cineasta, mas uma tarefa profissional como diretor contratado (SALEM, 1987). Ainda que não particularmente interessado na obra de Rodrigues, Nelson Pereira, imediatamente antes de realizar a obra-prima "Vidas Secas", fez a adaptação e o roteiro para o filme "Boca de Ouro", como um profissional experiente, atingindo resultado apreciável na mise-en-scène, especialmente se considerarmos que a história se passa basicamente em interiores.

Pode-se pensar que tal ambientação (fechada) seria óbvia pela origem teatral do enredo, mas isso não vale muito para as peças de Nelson Rodrigues: estudiosos de sua obra comparam a estrutura de vários de seus textos à de peças (que ele nem conhecia) do teatro expressionista alemão com suas cenas curtas e mudança frequente de ambientes, tanto interiores como exteriores.

Tais características em suas peças (e que também existem em muitos textos de Shakespeare com variadas e inúmeras mudanças de cena), podem induzir à ideia de que tal formato já teria uma espécie de "natureza cinematográfica" intrínseca e adequada à adaptação para película com cortes e edição, recursos típicos da sintaxe dos filmes. Mas tal hipótese - um tanto ingênua - acaba por levar a uma concepção realista/naturalista que tende a empobrecer a complexidade de obras como a de Rodrigues, em que são indissociáveis a forma (mais insólita do que traduzindo uma suposta "realidade") e o conteúdo (que igualmente nunca é apenas "a vida como ela é", no sentido de um realismo naturalista - o que fica comprovado ainda mais em suas "peças míticas", como "Álbum de Família").

A chamada "suspensão da descrença" para mergulharmos em um universo ficcional é ainda mais exigida do espectador que assiste a um espetáculo teatral do que na sala de cinema. Como está em Shakespeare, para encenar uma peça pode-se recorrer apenas a "duas tábuas" (para o palco) "e uma paixão" - até mesmo para cenas de tempestades ao ar livre ou de batalhas em campos abertos. O espectador deve aceitar e participar do jogo teatral: "assim é se lhe parece" poderia ser a definição da diegese teatral, sendo que as rubricas de Rodrigues, muitas vezes, indicam palco vazio, seja para cenas de rua ou de interiores, assim como, por exemplo, o uso de simples cadeiras para representar veículos em movimento, além de outros recursos nada concretos para cenografia.

Ao filmar "Boca de Ouro", Nelson Pereira não caiu na armadilha (frequente em cineastas menos inspirados quando adaptam textos originados do palco) de buscar exteriores a qualquer preço para tornar o filme "mais cinematográfico" (como se filmar em interiores fosse obrigatoriamente algo mais "teatral" ou "menos cinematográfico").

"Boca de Ouro", a peça, é considerada uma das melhores realizações do teatrólogo, comparável mesmo à possível obra-prima do autor "A Falecida", inclusive na obsessão com a morte enfeitada por um enterro de luxo: o personagem Boca, além de ter todos os dentes de ouro, quer ser enterrado em caixão do mesmo material "nobre".

 

3. REINVENÇAO DE ZULMIRA: A Falecida, de Nelson Rodrigues a Leon Hirszman

Seria interessante pensar a Zulmira de "A Falecida" como um outro tipo de narradora, uma espécie de "anti-Sherazade-sem-sultão" que, em vez de evitar a morte, a abraça em êxtase. Ela também surge como uma mulher carioca (brasileira, urbana), de classe média baixa, dos anos 1950 (a peça é de 1953), que vai escutar uma cartomante. Esta "lê" nas cartas o clichê da "mulher loura" com quem a mulher casada deve tomar cuidado. Afinal, o que uma mulher casada vai "investigar" nas cartas? O risco de traição por parte do marido é o estereótipo ao qual recorre a cartomante, evidentemente trapaceira, tal como trapaceiro é o seu "trabalho", sendo o clichê da "loura" nos anos 1950 equivalente ao da "estrangeira", a diferente da nossa "raça brasileira" que se idealizava no "mulato inzoneiro" ou na mulata que "é a tal" - mas, ao mesmo tempo, se menosprezava, tal como pode ocorrer com muitas idealizações - no caso, uma idealização da miscigenação morena, parda, negra, cafusa, mulata... de qualquer modo, uma identidade de conotação positiva. Já a "loura" era a "gringa", uma mulher fatal para a vida conjugal das "morenas" (ver a descrição física de Zulmira mais adiante).

 

 

Pode-se depreender que Zulmira já tinha, em alguma camada de suas construções e préconcepções fantasmáticas, um enredo pronto que, curiosamente, carece de Tuninho, seu marido, para enunciar quem poderia ser "a loura" ameaçadora a quem a cartomante se referiu: uma prima e vizinha, Glorinha - que, a rigor, nunca aparece em uma encenação teatral, mas que domina o imaginário persecutório de Zulmira. A ameaça, neste caso peculiar, não é, entretanto, de uma potencial amante do marido desempregado e fracassado, que só pensa e fala em futebol. E Zulmira pode, sutilmente - e até em movimentos inconscientes - ter induzido o marido a falar o que já tinha como sua verdade por motivos que apenas o desfecho da trama vai revelar.

A suspeita de que a advertência da cartomante encaixa na personagem sempre mencionada e nunca corporificada (no palco) vai encontrar (antes da revelação final) outras justificativas para incorporar em Glorinha as vestes da ameaça: apesar de "parenta -longe, mas [parenta]", a quem Zulmira nunca teria "feito nada" e sempre teria "tratado bem", de repente deixou de cumprimentá-la. "Por quê" (MAGALDI, 1987b)?

A pergunta de Zulmira fica no ar nesta "narrativa" que ela monta para Tuninho: desacredita a vizinha, descrevendo-a como ingrata e cínica, além de delegar à outra a origem de dores que vem sentindo nas costas (além de estar sempre com o "nariz entupido"). O marido entende sintomas de gripe, mas ela é assertiva no seu diagnóstico: "Macumba!", acrescentando que "Glorinha tem parte com o demônio" e questionando os ares de mulher "séria" que a prima assume. Tal seriedade, diz Zulmira, é "falsidade", ou seja, o disfarce de quem não é nada honesto, mas dissimula, exacerbando a máscara de uma aparência de honestidade e integridade morais absolutas.

As contradições de Zulmira vão sendo expostas de modo sutil: inicialmente, critica Glorinha por não ir à praia e não usar maiô, mas logo adiante não aceita a proposta do marido de irem à praia, dizendo que jogou seu maiô no lixo por ter se convertido a uma nova religião ("teofilista"), encantada com o cerimonial fúnebre desta seita. Tuninho percebe que Zulmira estaria "imitando" a mesma Glorinha recentemente criticada por idêntica conduta de moralismo exagerado.

No final do primeiro ato, o casal vai descobrir o motivo pelo qual Glorinha nem vai à praia: "Teve que extirpar um seio", devido a um câncer - o que Zulmira interpreta como "castigo" pela atitude de menosprezo que recebe da outra, logo a ela, Zulmira, "que nunca lhe fez nada!"

No desenvolvimento Zulmira mostra-se cada vez mais fascinada pela ideia da própria morte: ela será "a morta que pode ser despida" - pois tem os dois seios; já "Glorinha não pode morrer nunca!", porque, na lógica quase delirante de Zulmira, quando a outra fosse despida para lhe vestirem a roupa de enterro descobririam que só tem um seio.

A morbidez e impulsos de morte dirigidos à prima também se dirigem (e cada vez mais) a si. E rapidamente tem sua tosse, nariz entupido e dores nas costas evoluindo para a morte: "Galopante!" - explica um personagem secundário, lembrando que "tuberculose galopante" era uma expressão popular usada para descrever casos da doença com evolução rápida para o óbito.

No leito de morte, Zulmira pede ao marido que providencie um enterro de luxo, o mais caro, para "deixar Glorinha com uma cara desse tamanho!": o triunfo sobre o objeto mau persecutório projetado na vizinha viria de sua morte adornada com ricas pompas fúnebres. Mas... e o dinheiro? Viria, garante ela, de um empresário de linhas de transportes coletivos com fama de desonesto (uma blague popular dizia que quem mandava no Rio de Janeiro, mais do que os governantes eleitos, eram os bicheiros - e, em seguida, as empresas de transportes coletivos). Tuninho deveria ir ao tal "Pimentel" e lhe pedir uma quantia absurda para o enterro de Zulmira. "Não se nega nada a uma morta", diz ela para convencer o esposo a ir pedir a quantia ao ricaço suburbano.

Na conversa com Pimentel, Tuninho - que não se apresentara como marido, mas como "primo" de Zulmira - descobre uma face até então oculta da mulher morta: ela havia sido amante de Pimentel, um caso iniciado de modo sórdido, no banheiro de uma sorveteria, enquanto Tuninho estava sentado na mesa da mesma lanchonete. A relação teve prosseguimento, até que, andando de mãos dadas com o amante em uma rua do Centro, foram vistos por Glorinha - que, desde então, não dirigiu mais a palavra a Zulmira. Depois disso, Zulmira deixara de ir ao encontro de Pimentel.

Detentora do segredo de Zulmira, a vizinha se transforma em objeto acusador do que acontecera e, apesar de já terminado o caso, incorpora a culpa persecutória e desencadeia o trabalho da pulsão de morte defusionada em Zulmira. Nada indica que Glorinha fosse denunciar o que viu a terceiros, mas o fato de a outra saber do adultério já é suficiente para Zulmira, causa evidente de reprovação silenciosa por parte da prima que deixou de lhe dirigir a palavra.

O silêncio (tal como o de Glorinha) pode ser acusador e insuportável. Só a morte pouparia Zulmira, assim como o silêncio que a morte traz. Mas desde que sua morte também pudesse assumir aspectos de vingança imaginária contra Glorinha: o enterro de luxo como forma de "redenção" de sua vidinha miserável, resultante de uma "fúria narcísica", como conceituou Heinz Kohut (KOHUT, 1984). Ou seja: o narcisismo ferido de Zulmira (por ter sua imagem pública desconstruída pelo saber da prima, que desvendou involuntariamente um segredo considerado imoral) só seria restaurado pela destruição do objeto que lhe causou a ferida narcísica, mesmo que às custas da própria vida.

O exemplo clássico kohutiano de fúria narcísica é uma criação de Herman Melville, o Capitão Ahab de "Moby Dick", que teve a perna amputada por um antigo ataque da baleia branca que dá título ao romance: ele precisa destruí-la, mesmo que morra junto - como acaba acontecendo. Mas o narcisismo fantasmático não consegue abrir mão dessa proposta "restauradora" (ainda que imaginária) da perfeição narcísica perdida.

Zulmira só pode ferir Glorinha de modo reativo, ou seja, da mesma forma que se sentiu ferida: na imagem moral. Questiona o aspecto de "mulher séria" da outra, chega a propor a Tuninho que tente seduzir Glorinha (em sua "contabilidade moral", isto anularia sua própria falta?). Mas é quando Tuninho descobre que a vizinha teve um seio extirpado. A partir deste dado, só resta a Zulmira o suposto triunfo da morte com o corpo (seio) íntegro - e com pompas fúnebres às quais sua classe social jamais teria acesso. A não ser... com o dinheiro do ex-amante, certamente responsabilizado pela sua "queda". E por isso ele teria que pagar tal "dívida".

Propus que encarássemos Zulmira como a narradora deste enredo bovarista de subúrbio na medida em que suas atitudes construíram uma persona para o marido, revelando-se outra para o amante. Para este, ela era uma "morena de olhos verdes nem gorda nem magra, na medida!" -e que se queixava do lugar que o marido lhe dera: o de "fria" sexualmente, sendo ela incapaz de perdoá-lo por ter ido lavar as mãos (depois do sexo) ainda na lua-de-mel.

Arrumar um caso imprevisto (mas seminalmente possível em seus desejos inconscientes) também era uma forma de tentar restaurar o narcisismo ferido pela classificação de "fria" que o marido lhe dava. Para Pimentel, ela podia dizer que odiava o marido - a quem se sentia atrelada, consciente de que nunca seria mais do que concubina de Pimentel, sem poder enfrentar o estigma da separação conjugal dentro do moralismo, por ela introjetado, reinante na classe média brasileira dos anos 1950.

Foram os aspectos sociais, até mais do que os psicológicos, que interessaram Leon Hirszman quando foi indicado para dirigir a versão cinematográfica de "A Falecida", formando uma junção peculiar: o jovem cineasta de formação marxista e também interessado em psicanálise com o escritor consagrado de linha política conservadora-direitista (e que escreve nesse mesmo texto que "Freud era um vigarista!"). (MONTEIRO, 1996) ; (SALEM, 1997) e (VIDEOFILMES, 2010).

Ao se interessar pelos personagens desta peça, Hirszman viu uma oportunidade de abordar a alienação no futebol (que Nelson adorava) e no misto de misticismo-esoterismo de crenças em cartomantes, macumba ou seitas "teofilistas". Fez um filme mais sombrio do que irônico, uma tragédia menos "carioca" do que gostaria o autor teatral, desagradando-o (especialmente depois da pequena bilheteria alcançada pelo filme) (VIDEOFILMES, 2010).

Mas os aspectos psicológicos não ficariam alheios à sensibilidade de Leon, sugerindo que a morte de Zulmira foi mais alcançada por seus impulsos autodestrutivos do que por qualquer agente físico de doença. A cena da atriz Fernanda Montenegro na chuva com um sorriso extático no rosto é exemplar: a chuva como que insemina/fertiliza uma doença de pulmão - seguindo as concepções populares para a etiologia de problemas respiratórios (chuva, friagem, etc.). E a personagem recriada magnificamente pela atriz e pela câmera girando à sua volta atinge a volúpia de fundir para desunir Eros e Tanatos - que, autônomo e dominante, define a caminhada inexorável para a ruína.

Zulmira se recriara como amante do empresário em uma relação essencialmente carnal, ao mesmo tempo em que, dividida, tentava se preservar como esposa, dona de casa, filha que convive com seus pais, mulher que precisa encontrar uma nova religião e um novo batismo redentor (outra tentativa de restauração/renascimento). Além de buscar certezas (sobre o que já "sabe" inconscientemente) em cartomantes. Mas esses recursos fracassam e ela se vê condenada a tentar encontrar alguma "redenção" na morte - e na revelação póstuma ao marido (pela boca do amante) de que era uma mulher que podia usufruir do sexo, gozar e fazer gozar ao parceiro.

Os arquétipos das lendas das 1001 noites, neste caso, sofrem transformação paródica e radical: Zulmira é a mulher que trai um não sultão, um marido fracassado até sexualmente por não reconhecer na esposa o lugar de fêmea sensual que a ela fica interditado dentro desta relação. Mas também é, de certa forma, uma narradora que - paradoxalmente - também precisa falar pela boca de homens como Tuninho (para acusar Glorinha) e Pimentel, sendo que, através deste, vem a denúncia da impotência do outro macho, o marido que não descobriu a mulher como força sexual tão intensa como a dele - ou mais ainda! Sua fúria narcísica destina-se, finalmente, mais ao marido do que a Glorinha, reduzida a meio para atingir outra finalidade, mais de acordo com a origem de sua conduta errática. De qualquer modo, o que nos interessa nestes comentários é o papel de "narradoras" destas personagens femininas nos primeiros filmes nacionais baseados em Nelson Rodrigues.

 

4. E AFINAL, O QUE DESEJAVAM ESSAS MULHERES?

Entre "Boca de Ouro" e "A Falecida", houve, ainda, uma realização muito menos bemsucedida cinematograficamente, baseada em "Bonitinha, mas ordinária", e que também tem como elemento desencadeador da trama um relato feminino que será desconstruído no desenvolvimento do enredo: uma moça ("Maria Cecília") sofrera uma curra, violentada por cinco homens negros; e o pai, ricaço e corrupto, pretende "comprar" um marido para "salvar a honra" da filha - enquanto participa de bacanais e ele mesmo deflora moças virgens.

As farsas serão desmontadas: Maria Cecília, que é a "bonitinha, mas ordinária" do título, ela mesma quem organizara a própria curra, passando ao ato uma fantasia perversa, mas assumindo a aparência externa de vítima.

O personagem central desta peça e filme, entretanto, não é ela, mas o possível futuro marido que recebe um polpudo cheque para aceitar o casamento. O tema central é o dilema moral do rapaz se submeter - ou não. Não é das mais brilhantes peças de Nelson Rodrigues - e nem o filme de 1963 se aproxima do resultado de "Boca de Ouro", e muito menos de "A Falecida". Interessa ser mencionado aqui como um dos três primeiros textos do escritor que foram apropriados pelo cinema brasileiro na primeira metade dos anos 1960.

A título de curiosidade, cabe assinalar que houve também "O Beijo", filme de Flavio Tambellini, lançado no mesmo ano (1965) do filme "A Falecida", com base na peça "Beijo no Asfalto": pouco visto, quase desconhecido, talvez sem cópias disponíveis na atualidade e sobre o qual nada podemos dizer. Apesar das importantes personagens das irmãs Selminha e Dália, o texto teatral é muito centrado em um protagonista masculino, e não temos como considerar se seria tão pertinente ao recorte aqui pretendido sobre algumas personagens femininas de Nelson Rodrigues que, por mera coincidência (?) - como diziam os filmes sobre semelhanças de seus personagens "com pessoas vivas ou mortas" - foram logo levadas dos palcos para as telas.

As três personagens que estamos privilegiando seriam mulheres "narradoras" que se reinventavam a partir de reações intuitivas contrárias a situações - sociais e psicológicas - de repressão: Guigui, largando o marido e filhas para viver algum tempo com o bicheiro - mas tendo que voltar ao lar que abandonara; Zulmira, num rompante, entregando-se sexualmente no chão de um banheiro de sorveteria a um desconhecido com quem tem um caso, e que se vê constrangida a abandoná-lo por uma testemunha eventual de seu bovarismo; Maria Cecília, fantasiando perversões que encena com ajuda de dinheiro e de um amante que é marido de sua irmã - e estes dois serão mortos (punidos?) pelo autor e criador Nelson Rodrigues, enquanto o rapaz a quem é oferecido o casamento por dinheiro e sua namorada são dos poucos personagens de Rodrigues a quem ele destina um final mais esperançoso.

As três personagens sobre as quais nos detivemos precisaram de narrativas através das quais se reinventaram como mulheres - mas tentando manter o status moral dentro dos padrões vigentes da época. Se Maria Cecília vai ser de alguma forma "punida" por seu excesso, Zulmira escolherá a morte (morte que Sherazade se arriscou a tangenciar - só que com outra meta, visando sobreviver ao risco). Ao contrário de Sherazade, Zulmira não tem como sair viva de sua trama erótica, pois ela nem é a que fala de si por moto próprio, limitando-se a encenar suas duas faces, divididas e jamais reunidas. Na verdade, a "vida" para Zulmira estaria em manter sua imagem ideal de esposa "de família", e a "morte" ficou equalizada ao sexo escondido com um amante.

Já Guigui desaparece após a conclusão de sua derradeira narrativa e da descoberta bizarra de que o cadáver do Boca está sem um único dente nas gengivas, original ou de ouro: tudo era mito? ou ilusão? De qualquer modo, no filme de Nelson Pereira, ela some na multidão acompanhada... do repórter - e não mais do marido.

Nos anos 1950 e '60, ainda não havia espaço para uma Sherazade brasileira "re-unir" os aspectos femininos da mulher - ainda um "continente negro" (desconhecido) ecoando a pergunta de Freud: "afinal o que querem as mulheres?". O desconhecimento mais consciente de seus desejos também é terreno pantanoso e propício para desenvolvimento de suas tragédias.

Apenas em 1973, praticamente uma década depois, outro texto teatral de Nelson Rodrigues chegaria às telas(2), desta vez, com amplo sucesso de público e de crítica: "Toda nudez será castigada", de Arnaldo Jabor, com mais um grande desempenho feminino, que se une aos de Odete Lara e Fernanda Montenegro. Darlene Glória deu vida a uma personagem que também acaba sacrificada após desafinar o coro dos (des)contentes de uma família burguesa. Se Geni morre no final da história, seu lastro de desarrumação fica registrado na narrativa, que deixa (pós-morte) uma gravação derradeira em fita magnética: ela, in extremis, se apropria, enfim, de sua história, ainda que destruída pela família burguesa que ela virou de ponta-cabeça - e que, de certa forma, triunfa sobre seu suicídio, mesmo que desestruturada. Depois desta peça (que é de 1963), Nelson havia deixado de escrever para teatro também por quase dez anos, retornando a textos para o palco apenas mais duas vezes, e com resultados menos apreciados pelos estudiosos de sua obra.

As "narrativas" de Guigui, Zulmira e Maria Cecília são retratos compromissados com suas alienações psíquicas e sociais e, portanto, pouco libertadoras - enquanto para Sherazade, ao inverso, a fusão de sexo com o risco de morte foi salvadora. De algum modo, as três peças sobre as quais mais nos detivemos através de suas versões para o cinema permitem uma visão crítica sobre dramas femininos de submissão aos machos: aqueles que desconsideram a sexualidade da mulher (Tuninho), os que as utilizam como objeto descartável (Boca) ou satisfazem suas perversões escapistas como o cunhado e o pai de Maria Cecilia em aprisionamento endogâmico incestuoso e perverso. É curioso que o mesmo dramaturgo autor da conhecida provocação ("mulher gosta de apanhar") tenha propiciado esta reflexão sobre a submissão feminina de um ponto de vista antimachista. Essas personagens não seriam exemplos obrigatórios de um masoquismo feminino primário, mas eram submissas à violência do lugar social (e sexual) que lhes era destinado. Tentavam recriar suas vidas em narrativas mais ou menos ficcionais ou/e passavam ao ato como válvula de escape, sem poder integrar suas fantasias à realidade psíquica - e à realidade social, tão adversa. Se acabavam por "apanhar" da vida, era por constrangimento e falta de outras saídas - a não ser as mentiras (de Guigui), atuações perversas (de Maria Cecília) ou abandono à pulsão de morte: a partir da fúria narcísica (de Zulmira) - ou do desalento absoluto (de Geni). Todas elas, pobres Sherazades rodrigueanas...

 

Notas:

(1). Este item 2 foi, em parte, reescrito a partir de trechos do artigo "Uma Atriz Rodrigueana", de minha autoria, feito para o catálogo da mostra de filmes "Odete Lara, Atriz de Cinema", com curadoria de João Juarez Guimarães, para o Centro Cultural Banco do Brasil: no Rio de Janeiro (10-15 de maio de 2011), em Brasília (17-29 maio) e em São Paulo (01-12 junho).

(2). Houve outros filmes baseados em obras de Nelson Rodrigues neste interregno, mas não eram extraídos de peças teatrais: o folhetim "Asfalto Selvagem" rendeu um primeiro filme em 1965 e sua continuação em '66, "Engraçadinha depois dos 30". Preferimos nos deter nas personagens oriundas de peças de teatro por serem suficientes para esta abordagem. "Engraçadinha" seria uma repetição mais exagerada de aspectos já evidentes em Guigui, Zulmira e Maria Cecília.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Recebido em: 3/4/2012
Aprovado em: 27/7/2012