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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.10 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2018v2p.270 

ARTES

 

Aos olhos da psicanálise

 

In the eyes of psychoanalysis

 

A los ojos del psicoanálisis

 

 

Maria Noel Brena Sertã

Psicanalista, Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Endereço: Rua Piratininga, 49 - Gávea, Rio de Janeiro - Cep:22451-130. E-mail: marianoelbrena@gmail.com

 

 

 

Comentário crítico do filme Aos Teus Olhos de Carolina Jabor*

Em seu trabalho "O Escritor e a fantasia", Freud coloca-se a seguinte questão: de que meios se utiliza um escritor (um roteirista ou um diretor de cinema) para alcançar em nós, seu público, os efeitos emocionais por suas criações? Todo escritor, diz Freud, pode ser equiparado a um sonhador diurno, pois toda criação literária contém os devaneios pessoais daquele que a produziu. Devaneios que, segundo a psicanálise, terão relação muito íntima com a sua infância.

Porém, se os devaneios são pessoais, indaga-se Freud, como é que o escritor NOS consegue mobilizar ao contar SUAS próprias histórias? Esse é o seu segredo máximo; é aí que reside a arte do criador. Freud pensou em dois recursos: primeiro, o escritor altera o caráter de devaneio egoísta, pessoal, por meio de modificações e ocultamentos e, com delicadeza e sutileza, oferece-nos um prazer estético. A partir daí, desse deleite estético, opera-se em nós um afrouxamento psíquico, uma liberação de tensões. E é, então, que, psiquicamente amansados, se nos permite desfrutar de nossas próprias fantasias sem qualquer pudor - fantasias essas, também ancoradas em nossas marcas mais remotas.

Aos Teus Olhos é um filme que tem muita força, que mobiliza! Quando assisti pela primeira vez, no cinema, fui capturada e jogada dentro da história, experimentando tamanha tensão emocional que me parecia estar absolutamente só no cinema. Não havia nada nem ninguém. Apenas os personagens, as imagens, os sons. Terminada a sessão, aí sim foi possível observar as pessoas, suas reações, e ouvir alguns comentários: "coitado do rapaz, acabaram com ele"; "ele é culpado, já era esquisito"; "pobre menino, ele é a maior vítima"; "os pais não se preocuparam em poupar a criança"; "aquele pai era um preconceituoso"; "as redes sociais são um veneno"...

Fica-se, porém, sem qualquer verdade e o que parece é que o filme nos leva, propositalmente, a pensar na verdade que procuramos. Existe essa verdade? Somos jogados na água! Se, por um lado, pode haver o prazer com o movimento, a cor e a transparência da água - que é o que nos proporciona a estética do filme - por outro, não toleramos o sentimento de não saber nadar, de não dominar o que sentimos, de não conhecer os outros, de não saber o que vem depois; queremos, precisamos da continuidade. Vemo-nos em busca de uma verdade que acomode o que sentimos, que dê nome à nossa angústia. Em um jogo de identificações, com um ou outro aspecto dos diversos personagens, tentamos encontrar um caminho seguro que nos faça sentir inteiros, que nos retire do intenso sentimento de desamparo em que o filme nos coloca.

Água que acalma, que apazígua. Água que assusta, que apavora. Água que contém, que limita. Água que liberta, que expande. Eis o paradoxo.

Aos teus olhos - O que é capaz, um ser humano, de fazer para ser visto? Para SER aos olhos de alguém?

A psicanálise e a vida ensinam que não existe o humano se não houver alguém, com um olhar suficientemente identificado com o bebê, que possa adivinhar aquilo de que o pequeno ser necessita. Quando essas boas condições acontecem, o pequeno humano passa por um momento em que, sem o saber, possui todas as perfeições imagináveis, atende a todas as necessidades de seus pais, compensa-os de todas as suas frustrações, concretiza todos seus sonhos. Aos olhos dos pais, ele é "sua majestade, o bebê".

É assim que deveria começar, ensina-nos Freud (1914) em seu trabalho "Uma Introdução ao Narcisismo". E é para esse olhar que o humano, mais tarde, desejaria retornar em momentos de dor, angústia e medo. No início, há um eu magnífico; mas aquela megalomania do princípio vai arrefecendo ao longo do crescimento e, para poder readquiri-la o sujeito se apega a ideais, pedaços de outros, influência das figuras marcantes de sua vida. A criança está, portanto, sujeita aos desígnios narcísicos dos adultos. E as seduções incestuosas costumam advir das falhas havidas nesse processo, não apenas para os que são abusados, mas também para os abusadores.

Os personagens do filme parecem estar, todos, à procura de um olhar, cada um à sua maneira. Pessoas que tudo o que buscam é serem amadas, aceitas e reconhecidas.

 

 

Alex, uma criança diluída entre a disputa dos seus pais, que não encontra no casal um espaço para brincar, para transitar de um a outro espontaneamente. Um menino que busca um olhar que não seja pelo retrovisor do carro. Uma criança que, como qualquer outra, precisa da sustentação dos pais para organizar seu mundo pulsional, para construir suas identificações. O que seria ele capaz de fazer para atrair esse olhar? Agredir os amigos ou recusar-se a nadar poderiam ser formas de protesto, ou tentativas de ser enxergado. A sua vulnerabilidade e carência emocional podem transformá-lo em uma presa fácil para um perverso. Que objeto transferencial pode ter sido o Rubens para o Alex?

Os pais de Alex: empobrecidos psiquicamente, concretos, carentes emocionais, com uma agressividade à flor da pele, impossibilitados de tolerar as imperfeições ou as dificuldades do seu filho, que se configuram como feridas narcísicas. Pareciam sentir-se ameaçados, o pai na sua masculinidade, a mãe na sua capacidade de ser mãe e mulher. Pais que supõem estarem fazendo o melhor, mas que não são capazes de uma continência afetiva nem com o filho, nem consigo mesmos. Quem são eles? Um pai com reações homofóbicas que denunciam a presença de fantasias de homossexualidade não tão silenciadas assim? Uma mãe vazia, que precisa se preencher, ser vista e sentir-se valorizada com os "likes" nas redes sociais?

Rubens, um professor que necessita do amor das crianças e dos jovens, com quem se parece identificar. Como terá sido a sua própria infância? Um homem que denota perceber que suas fantasias perversas estão fracamente represadas, alguém cujas barreiras não parecem tão sólidas, alguém que aparenta, vez por outra, estar "de mal" com a lei. Alguém que sabe, entretanto, ao menos conscientemente, a diferença entre um carinho e uma carícia. Faz lembrar Ferenczi, em 1933, com a linguagem da ternura (a das crianças) e a linguagem da paixão (a dos adultos). Rubens sabe que existem essas duas linguagens, assim como intui o esforço que deve fazer para não confundi-las.

Rubens é, para os pais de Alex (e para os demais pais dos seus alunos), um estranho, um desconhecido. Estranho e inquietante, como o do texto de Freud de 1919. Um estranho que se relaciona com seus filhos dentro da água. Um desconhecido que toca seus filhos, que os olha sabe-se lá com que olhar. Um "estrangeiro" com quem os meninos fazem identificações. O que poderia fazer esse ser inquietante com as crianças? Um estranho, talvez não tão estranho assim, como diria Freud, um estranho que pode estar despertando, nos pais das crianças, fantasias inconscientes, complexos infantis recalcados, velhos conhecidos que deveriam permanecer ocultos. Por isso mesmo, por ser tão familiar, ele é tão assustador e desperta tanta repulsa.

Ao lado disso, uma sociedade fluida, líquida nas palavras de Bauman, muito bem representada pelo ambiente aquoso do filme. No último capítulo do livro Modernidade Líquida, o autor discorre sobre as comunidades explosivas, que se formam, agem rapidamente e logo se desmancham, dissolvem-se com a mesma rapidez com que se formaram. O autor as denomina "CloackRoom comunities".

Bauman explica as comunidades explosivas fazendo uma analogia com os guarda-roupas ou bengaleiros (cloackroom) existentes nos teatros ou museus (mais comumente em países com estações frias). Diz o autor que o público de um espetáculo veste-se para o evento seguindo um código que torna as pessoas uniformes; bem mais do que fora do teatro. Antes de entrar no auditório deixam no cloackroom seus casacos, sobretudos ou capas que usavam nas ruas e, a partir de então, estarão todos à vontade para se emocionar, aplaudir, alegrar-se, entristecer-se e até mesmo vaiar. Tudo mais ou menos sincronizado, como se fosse planejado ou dirigido. Quando termina o espetáculo, as pessoas recolhem seus pertences no cloackroom, vestem seus casacos e tomam seu rumo, retornando à vida ordinária, dissolvendo-se na multidão, a mesma multidão de onde antes haviam surgido.

Comunidades explosivas, segundo Bauman as define, são eventos que quebram a monotonia da vida solitária contemporânea e que, como os eventos de carnaval, liberam a pressão e permitem aos participantes suportar a rotina a que devem retornar quando a festa acabar. Depois, quando se dissolvem, deixam tudo como estava antes, sem contar os feridos e cicatrizes morais daqueles que escaparam às baixas marginais. Muito semelhante aos grupos ou eventos formados atualmente nas redes sociais onde as personalidades se diluem e se uniformizam - mesmo que a intenção de cada um seja exatamente a de ser visto de maneira singular - e escolhem os "diferentes", aqueles que de fato se destacam, como alvo de ataque.

Finalizar não é tarefa fácil. Freud costumava concluir seus textos indicando caminhos para se continuar a pensar nos temas, para ampliá-los, talvez, numa necessidade de controle da sua teoria. Ao contrário, essa história parece ter sido encerrada sem uma aparente preocupação em apresentar um final, nem tão pouco uma continuidade para a história. A história foi o que foi. Como nossa vida é o que é. A maneira como se concluiu o filme possibilita que cada espectador construa o seu final, a depender da sua experiência emocional individual.

Aqui, termino com Rubens, na última cena, aos meus olhos. Estarrecido. Vejo-o colocar a raia na piscina, raia que divide, que delimita, que marca dois territórios. Rubens culpado ou inocente? De qual crime ele seria culpado? De suas fantasias ou de sua realidade? Ele não saberia dizer. Como Édipo, quando descobriu a sua tragédia, pouco antes de furar seus olhos.

 

 

Recebido 10/05/2018
Aprovado 30/08/2018

 

 

* Direção: Carolina Jabor / Roteiro: Lucas Paraizo (Brasil, 2017).
Prêmios: Melhor Ator (Daniel de Oliveira), Ator Coadjuvante (Marco Ricca), Roteiro e o prêmio do público de Melhor Longa de Ficção do Festival do Rio 2017.

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