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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.11 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2019
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2019v2p.208
ARTIGOS TEMÁTICOS
Amizade, alteridade e o estranho: uma leitura das cartas de Freud a Fliess
Friendship, alterity and the uncanny: a reading of Freud's letters to Fliess
Amistad, alteridad y lo ominoso: una lectura de las cartas de Freud a Fliess
Joana Sampaio PrimoI; Miriam Debieux RosaII
IPsicóloga, formada pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Mestre em Psicologia Social, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é doutoranda do programa de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo / E-mail: joanaprimo@gmail.com
IIProfessora livre docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política e do Grupo Veredas: Psicanálise e Imigração / E-mail: debieux@terra.com.br
RESUMO
Apesar de não ser um conceito psicanalítico, a amizade foi uma prática marcadamente importante na elaboração da Psicanálise se considerarmos os lugares estratégicos ocupados pelos amigos na vida de Freud. Prática milenar com distintos significados, as amizades carregam o encontro com a alteridade como uma marca, o que pode compreender um fazer com o outro que implica a criação de novos mundos, portanto, uma prática política. No presente artigo, analisaremos as cartas de Freud a Fliess, amizade concomitante aos primeiros anos de elaboração da teoria psicanalítica, que abarcou modos distintos de lidar com a alteridade, marcas que ficaram registradas nas cartas e na teoria psicanalítica.
Palavras-chave: CORRESPONDÊNCIA FREUD-FLIESS, AMIZADE, ALTERIDADE, PSICANÁLISE, ESTRANHO.
ABSTRACT
The friendship wasn't a psychoanalytic concept, although this practice was very important during the psychoanalytic elaboration: along his life and his career, Freud had some important friends who support his work. The present article emerges from an ongoing debate on friendship, regarding it as a millennia-old social practice with a political sense, because it is a relationship that can preserves the space between oneself and the other, or rather, that it can preserves alterity. Despite this characteristic, the encounter with the otherness was also uncanny and full of discontent. The present article analyzed the Freud's correspondence to Fliess to find out the different ways that alterity comes out.
Keywords: FREUD-FLIESS CORRESPONDANCE, FRIENDSHIP, ALTERITY, PSYCHOANALYSIS, UNCANNY.
RESUMEN
La amistad no es un concepto psicoanalítico, pero fue una práctica muy importante en la elaboración de la Psicoanálisis se consideramos la gran importancia de los amigos en la vida de Freud. Práctica milenaria con distintos significados, las amistades son marcadas por la alteridad, característica que les confiere una posibilidad de crear nuevos mundos por permitir acercarse del diferente, por lo tanto es una práctica con implicaciones políticas. En este artículo, trataremos de analizar las cartas de Freud a Fliess, una amistad concurrente a los primeros años de la elaboración de la teoría psicoanalítica, que fue marcada por su particular forma de tratar con la alteridad, formas que se quedarán registradas en las cartas.
Palabras clave: CORRESPONDENCIA FREUD-FLIESS, AMISTAD, ALTERIDAD, PSICOANÁLISIS, OMINOSO.
Introdução
O presente artigo pretende analisar as cartas escritas por Freud a Fliess como um material privilegiado para a discussão sobre a alteridade nas relações de amizade e como uma marca desta relação, que colaborou para a criação de uma teoria que coloca o outro como constitutivo do Eu (Freud, 1914/2004). Tal correspondência, ao ser analisada sob esta ótica, permite diferenciarmos os modos como a alteridade foi colocada nessa relação específica, modos que imbricam o mal-estar provocado pelo outro e a potência de criação que esse encontro abarcou na teorização da Psicanálise. De uma relação particular, defendemos que as amizades ao longo da história são relações que carregam indagações sobre a alteridade, característica que as marcam como relações com aspirações políticas (Primo & Rosa, 2017).
Ao percorrermos as vicissitudes do espaço para o outro no interior das amizades, podemos tomar como exemplo o fato de que desde a Grécia Antiga ela carregava uma estreita relação com a alteridade: phílos, termo homérico anterior a philía (amizade), designava uma série de relações afetivas comprometidas com o recebimento do estrangeiro, vinculando-se aos tratos e pactos com os hóspedes (Benveniste, 1995). Circunscreve-se assim uma modalidade relacional calcada nos pactos com o estrangeiro, configurando phílos como uma união responsável pelos acordos com os outros.
Todavia, esse termo também se referia às relações de parentesco ou mesmo aos agrupamentos que garantiam a coesão social, sublinhando uma ambiguidade presente na amizade: a separação entre nós e eles contemplava tanto os tratos com o outro quanto uma separação entre nós - instituições de parentesco, ou agrupamentos sociais - e eles que não faziam parte dos mesmos grupos. Se a alteridade era um traço a ser acolhido a depender de uma série de códigos de conduta, era também a marca que diferenciava dos que ficavam dentro aqueles que ficavam de fora.
Destacamos à tensão provocada pela alteridade, tão bem representada pelos laços amistosos, já que estes se dão a partir de uma aproximação baseada em algo de comum com o outro - no caso de phílos, por exemplo, aqueles que me receberam em terras estrangeiras deveriam ser recebidos por mim - e, ao mesmo tempo, marcam uma diferença incômoda com aqueles que não estão nesses laços. Há, portanto, ponderações a serem feitas para se conceber a amizade como um espaço em que o outro é inerente, pois diante das muitas práticas que assim se nomearam ao longo da história ocidental há, igualmente, aquelas que contradizem qualquer possibilidade de consideração da alteridade, aquelas em que a alteridade entra como marca do que deve ser evitado - narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 1921/2006) - e aquelas que se produzem a partir dos tensionamentos provocados pelo outro.
Se, por um lado, as delimitações das amizades são calcadas pelos discursos de cada época, por outro lado há determinadas reflexões filosóficas que afirmaram, inúmeras vezes ao longo da história, a inerência da alteridade nas relações amistosas. A expressão alter ego, utilizada por Cícero para nomear o amigo, é um dos exemplos que apontam para o paradoxo embutido nas significações da amizade. Este termo compreendia um duplo sentido, a saber, alguém tão íntimo que se torna "outro eu mesmo" - a gemelidade - e a alteridade, um outro (Fontanier, 2009). Sublinha-se, desse modo, uma tensão intrínseca à amizade, pois por um ângulo ela parece implicar uma falta de espaço para a diferença - os amigos gêmeos, que por serem iguais se aproximam - ou, justamente, um espaço que permite a vivência de uma outra experiência.
A alteridade é sustentada como marca radical da amizade também por Agamben (2009), para quem o amigo é tão interno que se torna um outro em si mesmo, uma exterioridade interior: "O amigo não é um outro eu, mas uma alteridade imanente na "mesmidade", um tornar-se outro do mesmo (...) A amizade é essa des-subjetivação no coração mesmo da sensação mais íntima de si" (p.90). Essa prática se revela, portanto, como um com-sentir o mundo a partir da condivisão que o amigo proporciona em si, marcada desde o início como uma questão interior à filosofia: (philo)sophia, o amigo da sabedoria. Ressaltam-se, a partir dessa perspectiva, dois aspectos fundamentais dessa prática: a sua radicalidade em relação à alteridade e seu veio para o pensamento.
Uma característica de todas as relações, a alteridade, coloca-se na amizade como um campo possível de produzir com o outro, um campo que põe em evidência a tensão que o outro introduz aos encontros, podendo ser completamente excluído ou utilizado como motor dos mesmos. Vemos, assim, que os distintos tratos com a alteridade, indicam a ambiguidade em se relacionar com o outro, presente seja nas amizades, seja nas inimizades.
No presente artigo, partimos da concepção de que alteridade é uma marca das amizades para analisarmos um relacionamento específico: a amizade entre Freud e Fliess. Esta relação durou cerca de dezessete anos, entre 1887-1904, ficando registrada apenas nas cartas de Freud a Fliess, das quais 284 estão publicadas na edição de Masson (1986). Tomamos as cartas como um material empírico, na tentativa de: "... raspar as imagens, não para que o verdadeiro se revele, mas para as mover, de modo a que outras figuras aí se componham e decomponham" (Ranciére, 2012, p. 21).
Pensar exige coragem, como coloca Arendt (1998), sendo um campo privilegiado a interlocução entre amigos: esse diálogo é condição de possibilidade para o pensamento, na medida em que permite entrar em contato com a alteridade. A relação de Freud e Fliess atesta, sobremaneira, a importância da interlocução para a produção da Psicanálise, desenhando o espaço dessa amizade como aquele que permitiu, a partir da confiança depositada no outro, autorizá-los a correr os riscos que o pensamento exige.
Em linhas gerais, apontamos que a análise das cartas sugere que essa amizade caracterizou-se como um espaço de criação teórica, do(s) outro(s) e de si.
Dessa forma, a alteridade nos lança nos meandros de produção das amizades e na relação entre Freud e Fliess, relacionamento responsável por criar, especialmente, um espaço a alteridade, o que acabou por mesclá-la com a produção teórica vindoura desse encontro e com a produção de um si, Freud, despertado pelo encontro com o outro. É em busca dos cruzamentos entre a correspondência mencionada e a importância da alteridade nas amizades que desenvolvemos o presente artigo.
A construção de si como outro: fragmentos das cartas de Freud a Fliess
Daimonie |Demônio|, por que não me escreve? Como vai você? Será que não se importa mais nem um pouco com o que tenho feito? Como vão as coisas com o nariz, a menstruação, as dores do parto, as neuroses, sua querida esposa e o pequenino rebento em flor? Certo, estou doente este ano e preciso procurá-lo; mas o que acontecerá se, por acaso, permanecermos ambos sadios por um ano inteiro? Será que somos amigos somente no infortúnio? Ou desejaremos também compartilhar um com o outro as experiências dos períodos de tranquilidade?
(Carta de 25 de julho de 1895. Masson, 1986, p.135)
Daimonie, uma denominação carinhosa, dá o tom do endereçamento de Freud a Fliess, um tom íntimo, amoroso e revelador de uma amizade que necessitava de respostas, pois Daimonie é aquele que não me responde. Uma interlocução, registrada pela escrita, na qual esta pequena carta, que reproduzimos na íntegra, congrega muitos dos sentidos que se desenrolaram ao longo das duzentas e oitenta e quatro cartas de Freud: o interesse teórico, as notícias sobre os familiares, a discussão de casos e, principalmente, uma amizade que seria movida pelos infortúnios da vida deles.
São, portanto, muitos os fios que nos poderiam guiar nessa intrincada malha de cartas, porém, como já colocamos, daremos ênfase ao lugar em que Freud colocou o seu interlocutor, lugar que o fez compor um texto endereçado a um amigo e, por isso, repleto de sentidos sobre amizade. Como podemos, então, apresentar essa malha de sentidos? Que fios puxar?
Começaremos do começo: Caro amigo e colega, Caro amigo, Prezado amigo, Prezadíssimo amigo; assim como pelo fim, as despedidas íntimas: de seu Sign., quiçá única vez em que Freud "assinou-se" dessa maneira. Assinou as cartas dos mais variados temas, nas quais, desde o primeiro envio, configurava-se o interlocutor a quem Freud se dirigia: um importante médico respeitado em Berlim, que havia se interessado por seu curso a ponto de lhe encaminhar uma paciente - motor inicial da correspondência:
Minha carta de hoje, devo reconhecer, é motivada por assuntos profissionais, mas cabe-me introduzi-la com a confissão de que alimento esperanças de dar continuidade ao relacionamento com o Sr., e de que o Sr. deixou em mim uma impressão profunda, que poderia facilmente levar-me a dizer-lhe sem rodeios em que categoria de humano eu o situo. (Carta de 24 de novembro de 1887. Masson, 1986, p.15)
Nessa primeira carta, Freud apresentou seus motivos sobre o endereçamento: uma troca profissional - a respeito do "nosso caso" - movida por um profundo interesse deixado pelo encontro, um interesse de amizade. Como justificativa desse interesse, encontramos a admiração do outro, o que nos leva a indagar: compreende todas as amizades a admiração? É ela o que autoriza o afeto, inaugurando uma linguagem afetiva, diferente da profissional? Será que o profissional e o afetivo, representados numa amizade, podem se mesclar? Vale destacar, que esta indagação é inclusive o centro da discussão sobre a teoria da técnica psicanalítica, particularmente da transferência como impedimento e depois alavanca do tratamento.
A mescla entre o profissional e o emocional, questão proeminente na época, percorrerá toda a correspondência, tratar-se-á de uma escrita que colocou em conflito a união desses dois campos, pois havia assuntos que não deveriam ser tratados com quem se preza profissionalmente, da mesma forma, determinadas críticas aos trabalhos não teriam tanta validade, dada a união fortemente emocional: "Basta-me confidenciar-lhe o grande prazer que sinto em poder dar continuidade a nossa discussão da Páscoa. De modo geral, não sou suficientemente imparcial para ser um verdadeiro crítico de seu trabalho" (Carta de s/d. Masson, 1986, p.45).
Apesar de não se considerar um verdadeiro crítico, é inegável a tentativa de Freud em tecer comentários sobre o trabalho que Fliess lhe havia enviado, portanto, não sabemos se as "verdadeiras" críticas eram impedidas pelo sentimento, o que podemos afirmar é a associação entre uma união sentimental e suas implicações na validade das considerações a respeito dos respectivos trabalhos, como se a união sentimental acarretasse certo acometimento da capacidade crítica.
Mesmo sendo a crítica alvo de suspeita, era grande a importância da interlocução teórica entre eles, situada tanto no exercício cotidiano de reflexão sobre os problemas enfrentados por Freud na elaboração das teorias sobre as neuroses quanto pela interlocução em que ambos se envolveram, fértil em diálogos sobre seus trabalhos, nos quais a opinião de um outro auxiliava no desenvolvimento de seus próprios pensamentos, compondo um espaço de criação conjunta (Primo & Rosa, 2017).
Esse espaço, necessário ao desenvolvimento teórico, encontrava-se amalgamado aos laços afetivos numa intensidade tal, que a vida só tinha graça com a proximidade dos encontros e, por isso, em que a saudade e a distância significavam uma estagnação no pensar:
Agora veja só o que acontece. Cá estou eu, vivendo mal humorado e nas trevas, até que você chega; faço meus desabafos; reavivo minha chama vacilante em sua chama sempre firme e volto a me sentir bem; e, depois de sua partida, eis que torno a ter olhos para ver, e o que vejo é belo e bom. (Carta de 3 de janeiro 1899. Masson, 1986, p.340)
O que seria, então, uma amizade baseada nas trocas teóricas entre médicos, se torna mais complexa à medida que vamos observando como essa troca estava diretamente relacionada com o laço afetivo entre ambos. Com isso, não estamos defendendo que o laço afetivo pode estar apartado de qualquer relação, pelo contrário ele permeava os meandros dessa amizade apesar de algumas vezes ser colocado como um fator que poderia atrapalhar a interação teórica.
Para melhor compreender a tensão entre a afetividade e a produção teórica no interior da amizade que estamos analisando, é importante cotejar nossa análise com os sentidos que os laços amistosos ganharam ao longo do século XIX: eles passaram a ser caracterizados como laços típicos da juventude, íntimos e pouco investidos nos espaços públicos (Vincent-Buffault, 1996). Por se tornar uma relação própria da adolescência, a amizade foi, também, posta sob suspeita e menorizada, pois não poderia competir com as relações matrimoniais, laço elegido como prioritário para os Estados-nação. Dessa forma, as amizades passam a ser vividas como relações íntimas, na quais o amigo para o jovem cumpria uma função de espelho, responsável por refletir quem o jovem era: "As perturbações da alma partilhadas, como as conversas metafísicas, tornam-se constitutivas de um novo percurso iniciático: o de uma busca intimista e poetizada entre semelhantes" (Vincent-Buffault, 1996, p.119). Nessa dupla posição, sublinhamos como a amizade passou a ser um assunto pueril, que mesmo sendo carregada de potência criativa, ficava restrita a uma determinada idade: a menoridade. Além disso, a amizade transgressiva da adolescência era afirmada como um pacto íntimo, ou seja, era afirmada a partir da união de alguns em segredo.
Voltando-nos para a análise das cartas de Freud, afirmamos que essa amizade se desenrolou de uma forma peculiar, pois, para além de repetir determinados jargões, possibilitou muita invenção: não eram só cartas que Freud enviava a Fliess, ele enviava, igualmente, os rascunhos teóricos - escritos por vezes à parte -, os casos clínicos, as provas de seus livros, as matérias e críticas de outros autores sobre o trabalho deles e os diários com os registros a serem discutidos nos congressos particulares1. A grande importância desse amigo para o desenvolvimento das teorias freudianas fica evidente, porém essa importância circunscreve, também, uma possibilidade para as amizades, a saber, como um lugar de produção de pensamento2.
Como colocado acima, as investigações a respeito da clínica das neuroses ocupavam uma posição central na correspondência de Freud a Fliess, todavia, as cartas por serem um relato, uma escrita com destinatário, pressupunham sempre o outro: se escrevo uma carta, escrevo-a para alguém. Desse modo, a escolha de para quem escrevo, mas também a forma como escrevo marcam o enredo das correspondências: uma conversa com ausentes.
A temporalidade afirma-se como mais um elemento próprio das missivas: tratase de um tempo alongado, um tempo no qual a resposta demora, ao menos, a duração da escrita, no qual o diálogo com o ausente cria um espaço em que o outro, a quem me dirijo, se encontra sem estar. Se podemos tomar as amizades, o amigo, como o outro que é interno a mim (Agamben, 2009), podemos afirmar que as amizades registradas nas correspondências ampliam tal dimensão.
Acompanhamos que uma correspondência entre amigos se constrói a partir de um determinado escopo de atribuições ao outro/amigo, compondo diferentes atravessamentos. No material por nós analisado, que compreende apenas as cartas de uma das partes dos interlocutores, aproximamo-nos da imagem tecida por Freud sobre Fliess, sublinhando o lugar do único outro:
Hoje me permitirei uma hora de satisfação e conversarei com você apenas sobre ciência. Obviamente, não é nenhum favor especial do destino eu ter aproximadamente cinco horas por ano para trocar ideias com você, quando mal consigo passar sem o outro - e você é o único outro, o alter. (Carta de 21 de maio de 1894. Masson, 1986, p.73)
O único outro, evidentemente, ocupava uma posição especial: não era apenas um amigo, tratava-se de uma pessoa privilegiada com a qual Freud estabeleceu uma troca com múltiplos sentimentos, que o assegurou para se arriscar pelos caminhos do pensamento. Essa passagem registra o espaço necessário do alter para a criação, não sendo esta a única menção, no interior das cartas, a afirmar tal posição. O "primeiro outro", se assim podemos dizer, é o interlocutor presente no pensamento e na escrita, em outras palavras, o alter é a produção dessa exterioridade necessária para pensar, construindo, igualmente, um amigo no momento da escrita: "Ao escrevê-lo, sinto-me como se ainda estivesse conversando com você. Não tenha pressa com a revanche e espere até sentir-se muito bem" (Carta de 23 de agosto de 1894. Masson, 1986, p.91).
Como vimos, o espaço relacional das amizades é inscrito pelas indeterminações dos encontros, o amigo não é uma cópia de mim - por mais que muitas vezes seja afirmado como um duplo - ele é um outro que acaba fazendo modificações no eu, tornando-o um pouco outro. Partindo do pressuposto de que não existe o Eu sem a relação com o outro (Freud, 1914/2004), acentuamos que uma amizade escrita como um texto, tal como esta que estamos analisando, possibilita-nos apreender o movimento de construção de um si conjugado com tudo aquilo que se compartilha com esse outro.
Ressaltamos um imbricamento entre o pensamento criado, a escrita ao outro e a escrita de si, configurando um espaço relacional marcado pela alteridade. Voltando-nos, mais especificamente, para o texto que estamos analisando, vislumbramos que do mesmo modo pelo qual as pessoas que ocupavam a posição de terceiros apareciam, muitas vezes, na escrita das cartas, a construção do narrador - Freud - foi constantemente marcada por essa posição. Em outras palavras, a escrita sobre o(s) outro(s), sobre Fliess e sobre o próprio Freud, fazia-se a partir do ângulo da terceira pessoa.
São muitas as cartas nas quais Freud descreve seu estado de saúde, convocando Fliess tanto como um confidente em suas mazelas quanto como um médico capaz de tratá-lo. Falar de si, ao invés de falar sobre a ciência era uma "fraqueza", ou melhor, era uma prova do adoecimento de Freud; porém, mesmo que esta perspectiva fosse conflitante para ele, as notícias sobre si ocuparam muitas páginas das cartas. Se Fliess era um respeitado otorrinolaringologista em Berlim, além de ser muito atencioso com Freud, nada melhor do que tê-lo como médico. Essa marca atravessa toda a correspondência, mesmo próximo do rompimento deles lemos: "Você me fez tantas perguntas que esta resposta está fadada a ser longa. Portanto, minha hora de consulta será uma hora de redação de cartas" (Carta de 4 de julho de 1901. Masson, 1986, p. 444).
A necessidade de um médico, todavia, confunde-se com a necessidade de se perceber como um paciente, que, como os difíceis casos atendidos por ele, sofria de sensações esquisitas que precisavam ser investigadas e resolvidas. A escrita de si como alguém doente foi fundamental para que Freud pudesse adoecer organicamente, num primeiro momento, para em seguida suspeitar de seus próprios sintomas, aproximandoos dos sintomas histéricos, que eram por ele investigados. A amizade com Fliess, portanto, não sustentou apenas um lugar de criação de pensamento, a intensidade de tal criação/interlocução incidiu diretamente na vida de Freud: um paciente que sofria de acometimentos orgânicos, que com o desenvolver de seu pensamento passa a encarar-se como um paciente histérico.
Desde o início da correspondência, acompanhamos Freud a descrever-se como alguém periodicamente entristecido, sentindo-se muito sozinho em suas formulações e, principalmente, muito desamparado em relação aos desenvolvimentos na clínica, desamparo ligado à tarefa de sustentar sua nova família e às dificuldades colocadas pelos atendimentos. Deparamo-nos com um médico que reclamava muito de sua vida: "Em suma, vai-se levando; e a vida, como é de conhecimento geral, é muito difícil e muito complicada e, como dizemos em Viena, há muitos caminhos para o Cemitério Central" (Carta de 28 de maio de 1888. Masson, 1986, p. 22).
As reclamações, muitas vezes apontadas como um motivo de vergonha diante do outro, aos poucos vão dando lugar para uma escrita de si como um caso clínico, ou seja, se antes nos deparávamos com pedidos de desculpas pelas lamentações da vida, estas cedem lugar para um texto no qual Freud estava em destaque: "Sua amável carta põe termo a minhas reservas e meu desejo de poupá-lo. Sinto-me justificado para escreverlhe sobre meu estado de saúde. As notícias científicas e pessoais virão depois, no final" (Carta de 19 de abril de 1894. Masson, 1986, p.67).
No início, eram preocupações com seu coração: Freud sentia pontadas, disritmias e falta de ar. Fliess, pelo que as respostas de Freud indicam, preocupava-se com a saúde do amigo, mais do que isso, passa a orientá-lo: ele deveria, urgentemente, parar de fumar charutos. Cartas após cartas, Freud queixa-se da abstinência de fumar, conta de suas táticas, lamenta-se que teve recaídas, esbraveja com o amigo pela dificuldade a ele imposta. Com o passar do tempo, novos sintomas foram surgindo: dores de cabeça crônicas, azia, obstrução nasal e as pontadas no coração. Este estado era "... muito aflitivo, para um homem da medicina que passa todas as horas do dia lutando por alcançar a compreensão das neuroses, não saber se está sofrendo de uma depressão branda lógica ou hipocondríaca. Ele precisa ser ajudado nisso" (Carta de 19 de abril de 1894. Masson, 1986, pp. 67-68).
O que antes configurava uma escrita de si como alguém que sofria muito de sintomas orgânicos vai cedendo espaço para a suspeita de que se tratava de sintomas histéricos. Freud, paulatinamente, vai entendendo-se como um neurótico. É interessante perceber que para se conceber como um paciente neurótico não bastavam os sintomas; concomitantemente, Freud se aprofundava nos estudos e teorizações sobre o tratamento da histeria. Afirmamos, portanto, que há uma ligação intrínseca entre o espaço de pensamento dessa amizade e a possibilidade de tomar uma distância de si para ler-se através da ótica da teoria, isto é, para poder-se analisar.
São inúmeras as descrições dos sintomas, que cada vez ocupavam mais e mais espaço nas cartas: "E agora, vem o relato de meu caso, a verdade sem retoques, com todos os detalhes a que um paciente aflito atribui importância e que, provavelmente, não a merecem" (Carta de 22 de junho de 1894. Masson, 1986, p. 84). Coincidência ou não, Freud começa a sofrer muito com uma obstrução nasal, sintoma que o aproximava de seu amigo, um otorrinolaringologista. Além de parar de fumar, Freud tratava-se com cocaína no intuito de desobstruir o nariz, procedimento que ambos indicavam. A cada gripe, a cada sensação de mal-estar, relatos extensos eram dirigidos a Fliess.
A obstrução nasal de Freud levou-o a ser operado por Fliess, no mesmo dia em que o médico operou Emma Eckstain. A paciente teve uma complicação da cirurgia, enquanto Freud recuperou-se bem, notícia detalhadamente descrita ao longo das cartas seguintes. Seu estado, denominado por ele de Caso Clínico, passou a ser um texto a parte das cartas, minuciosamente narrado: em que momentos do dia sentia disritmia, o que estava fazendo, suas mudanças de humor repentinas, a recuperação do nariz, entre outras notícias que o configuravam, literalmente, como um caso clínico atendido por Fliess.
Como já colocamos, os sofrimentos orgânicos vão cedendo espaço para os conflitos psíquicos, de maneira mais ou menos conjunta com as elaborações teóricas. Este momento foi marcado pela volta do hábito de fumar - vício com o qual Freud se debaterá algumas vezes ao longo dessa correspondência -, e por uma preocupação maior com os conflitos psíquicos: "Recomecei com isso [fumar] porque me fazia falta constantemente (após quatorze meses de abstinência) e porque preciso tratar bem desse sujeito psíquico, ou então ele não trabalhará para mim. Exijo muito dele" (Carta de 12 de junho de 1895. Masson, 1986, p.133).
A guinada de perspectiva na narração de si, na construção de si e, também, na teoria, está diretamente ligada à mudança na compreensão dos fenômenos psíquicos, assim, ao invés de acompanharmos relatos, separados das cartas denominados caso clínico, passamos a ter notícias da autoanálise de Freud:
Depois de ter ficado animadíssimo por aqui, desfruto agora de uma fase de mau humor. O principal paciente a me preocupar sou eu mesmo. Minha histeriazinha, apesar de muito acentuada por meu trabalho, solucionou-se um pouco mais (...) A análise é a mais difícil do que qualquer outra. De fato, é ela que paralisa minha energia psíquica para descrever e comunicar o que conquistei até agora. Mesmo assim, creio que precisa ser feita e que é uma etapa intermediária em meu trabalho. (Carta de 14 de agosto de 1897. Masson, 1986, p. 262)
Mais do que defender que Fliess tenha sido o analista de Freud, por mais que fosse evidente a importância desse amigo como um médico a quem se podia relatar os mais diversos assuntos, o que nos interessa é destacar a escrita de si, a escrita de uma amizade e a escrita de um pensamento, como componentes conjuntos dessa relação.
Acompanhamos a transformação de um sintoma orgânico em um sintoma histérico, que além de ser uma mudança de leitura é uma mudança na construção de si associada diretamente com o espaço possibilitado por essa amizade. A importância de tal alteração não está apenas em seus desdobramentos para os tratamentos dos sintomas, mas, sobretudo, na criação de uma possibilidade de inscrição, antes inédita, de uma linguagem para a histeria. Essa linguagem, presente nos relatos teóricos enviados a Fliess, bem como nos relatos clínicos, perpassa a própria narração de Freud, transformando-o na mesma medida em que alterava a teoria. Sublinhamos quanto o espaço da escrita dessa amizade e de vivência dela permitiu que Freud não apenas se autorizasse como um médico que fundaria uma nova disciplina - a Psicanálise - como inscrevesse seu próprio sofrimento na linguagem que estava buscando para seus pacientes.
Em relação à linguagem que se criou a partir dessa mudança de perspectiva, destacamos que o espaço dessa amizade não era apenas preenchido pela criação teórica ou pela interposição dos outros, era também um espaço em que o escrever possibilitou a criação de um outro, que modificou a maneira de compreender a si mesmo, em outras palavras, que criou uma exterioridade em si.
Alteridade e amizade: a experiência das cartas e a elaboração da Psicanálise
A partir de uma breve retomada de sentidos das amizades ao longo da história, voltamonos para uma análise específica: a amizade entre Freud e Fliess. Essa relação, como vimos, foi marcada pelos outros, isto é, aqueles que literalmente os cercavam e pela vivência de uma experiência outra, proporcionada pelas experimentações entre eles. É justamente esta experiência outra, que se destacou como um aspecto único do relacionamento entre esses médicos, na medida em que pôde acolher distintas experimentações com a alteridade, exemplificadas pela forma como Freud modifica sua escrita sobre si.
Dessa forma, partimos da importância da alteridade nas amizades, passamos pela análise das posições do outro na escrita das cartas de Freud e, a partir desses movimentos, compusemos uma compreensão da maneira sui generis e fundamental na qual a alteridade pôde se inscrever nesta amizade: motor da produção de Freud como amigo, como médico, como alguém que sofria de histeria e, sobretudo, como alguém capaz de, através das indagações que o circundavam, produzir uma disciplina que colocou em seu cerne a questão do outro.
São muitas as referências ao(s) outro(s) ao longo das cartas de Freud. Lembramos que essa amizade se iniciou por uma troca sobre a paciente que Fliess havia indicado a Freud; iniciou-se, portanto, tendo como tema principal a troca de informações sobre terceiros, não apenas terceiros, mas aqueles que eram os motivadores da reflexão e indagação freudiana: os pacientes. Além dessa marca fundamental, Fliess, nas palavras de Freud, era seu único outro3 , sua única plateia, seu único amigo, isto é, um outro médico a quem ele poderia confiar suas indagações acerca dos pacientes, mas também de tudo aquilo que se foi configurando como assunto nessa correspondência: as hipóteses diagnósticas, os desejos de infância, os sintomas que acometiam Freud, as notícias sobre seus familiares e o adoecimento dos mesmos.
Se a alteridade é tudo aquilo que se refere à diferença, ao outro, ao não idêntico (Lalande, 1999), somos convidados a refletir sobre esta amizade como tensionadora dela, pois ao mesmo tempo que nos parece evidente que, em qualquer relação, o outro é o não eu, este não se encontrava organicamente delimitado na análise da correspondência de Freud. Em linhas gerais, identificamos que o outro ora se localizava como todos aqueles que estavam de fora dessa amizade - ou seja, se os outros são os que estão fora da relação, há uma identidade compartilhada entre Freud e Fliess que os opõe aos outros -, ora o outro era o próprio amigo, ora o outro era o próprio Freud - dimensão bem observada em seus relatos sobre os seus sintomas, autodenominando-se de "caso clínico".
Destacamos, então, um primeiro lugar ocupado pelo outro nessa amizade, circunscrito nas manifestações de Freud como a vontade de "compor um" com Fliess, passar pelas fases de maneira idêntica, ter o mesmo protoplasma4, o que fica denunciado nas dificuldades em criticar o trabalho do outro, já que tais dificuldades poderiam revelar a impossibilidade de, numa relação, os amigos se fazerem um. O fazer um de dois, desconsidera a alteridade e a localiza nos outros - os terceiros à relação - sua única oposição, reflexão tão bem representada pela a gemelidade da ambígua expressão alter ego de Cícero.
Localizamos muitas passagens na correspondência nas quais os terceiros - os pacientes, os familiares, outros amigos e críticos do trabalho deles - representavam um incômodo: eles não deveriam ligar para a crítica alheia, poderiam continuar trabalhando sozinhos por muitos anos, precisavam de encontros a sós, longe das perturbações familiares e da cidade em que eram conhecidos. Uma faceta da vivência da alteridade que apaga os limites entre o eu e o outro, na qual as barreiras parecem ser afrouxadas, uma cumplicidade a tal ponto que só o amigo, o único outro, era capaz de entender e de ser confidente.
A alteridade no interior dessa relação aparece, porém, de algumas formas: se, por um lado, ela afirmava uma união sem espaço para outros, por outro, sempre esteve comprometida com os terceiros - os pacientes, a medicina, a ciência e o conhecimento. Terceiros ao relacionamento, mas fundamentais para a própria manutenção dele, pois era sobre eles que a amizade se autorizava como campo fértil de indagações. A escrita de Freud, por vezes cotidiana, justificava-se pelo relato de um novo caso, para contar uma nova suposição diagnóstica, ou mesmo para relatar-lhe um novo trabalho.
Além de comprometida com os terceiros, o direcionamento desse material a Fliess evidencia a necessidade do outro para a produção das reflexões freudianas, ou seja, por ser um reconhecido otorrinolaringologista, afeito a pesquisas inusuais e, por isso, aberto a escutar suposições ainda não reconhecidas no campo da pesquisa médica, é que Freud se autorizou a viver com ele uma série de indagações que o atravessavam. Elas estavam, primeiramente, atreladas à clínica médica para, posteriormente, relacionarem-se com as próprias determinações de Freud e de uma disciplina nascente, que teria como marca tais questionamentos.
Adentramos, dessa forma, naquilo que acreditamos ser a criação singular dessa amizade, totalmente vinculada à alteridade e que acabou por transformar-se num motor de indagações sobre si - a respeito de Freud - e de seu trabalho clínico. A vivência desse relacionamento, conjuntamente com as experiências clínicas de Freud, permitiulhe experimentar-se como um outro para si: os sintomas que sentia, de início descritos como sensações orgânicas, foram-se transformando num estranhamento, já que por permitir-se questionar os sintomas das histéricas como sensações orgânicas, mas não como problemas orgânicos, Freud começa a duvidar de suas próprias sensações.
Era a Fliess que ele endereçava tanto sua expectativa de cura como sua angústia de não saber do que sofria. Sublinhamos uma peculiaridade, pois de motor da relação, a alteridade passou a ser o motor da criação de um Freud totalmente vinculado a essa correspondência: o outro encontrava-se em si. Esses estranhos sintomas, que com o passar do tempo foram se transformando na "minha histeriazinha"5, atestam-nos a alteração que ele via em si a partir do estranhamento daquilo que sofria, análogo, evidentemente, aos sintomas que pesquisava e, sobremaneira, com o que Fliess e ele podiam elaborar conjuntamente.
O fim da relação é pouco marcado nas cartas de Freud, isto é, não há cartas de rompimento que narrem alguma briga ou algo dessa natureza. O que acompanhamos é a paulatina diminuição da frequência de escrita, a cobrança de Freud por respostas e notícias do colega e algumas indicações de divergências em relação ao tratamento das neuroses, culminando com o fim da correspondência em 1902.
Em 1904, Freud volta a escrever a Fliess para propor-lhe uma publicação em uma revista sobre sexualidade, Fliess responde acusando-o de mentor de um plágio: a bissexualidade, ideia que ambos discutiam conjuntamente, foi o alvo da acusação de Fliess, que acreditava ser o inventor de tal concepção. Desde dezembro de 1896, entretanto, acompanhamos Freud a discutir essa concepção com seu amigo, a qual seria incorporada, posteriormente, na teoria psicanalítica com um sentido um pouco diverso daquele proposto por Fliess.
Como sabemos, Freud atribuiu a ideia da bissexualidade a Fliess ao longo de toda sua obra, já havia analisado um lapso no "Psicopatologia da vida cotidiana" (1901/2006), no qual, justamente, narra o esquecimento da "patente" dessa concepção, e continuou a colocar Fliess como o inventor de tal conceito ao longo de sua obra. Nessa última carta, Freud ainda conta sobre a escrita dos "Três ensaios sobre a sexualidade" (1905/2006), nos quais usaria a ideia da bissexualidade, indagando a Fliess sobre a importância de ele ler a prova do livro antes da publicação, para verificar os créditos de sua ideia. É assim que vemos encerrada a troca de cartas, com uma briga pelo plágio de uma ideia.
Para além do rompimento e da conflitiva que carrega a produção conjunta de conhecimento, os meandros dessas cartas, especialmente no que se refere às menções diretas à questão do outro, autoriza-nos a afirmar a criação de um si, Freud, totalmente atrelado ao outro. Não só atrelado, mas transformado por essa amizade, criando-se como um outro para si: ao escrever para um amigo querido, Freud pôde ir se tornando um outro para si, isto é, este espaço relacional pôde inscrever o estranhamento que carregamos todos, articulação que nos remete diretamente aos seus desdobramentos do interior da teoria psicanalítica.
Considerações finais: as amizades e o estranho
Destacamos, ao longo deste artigo, a faceta das amizades ligada à alteridade que permite a criação de espaço para produzi-lo com o outro, característica relacionada com sua potência política. Apesar de fundamental, o espaço do outro não é vivido apenas como uma potência, ele é carregado de estranhamentos, de tensões e de mal-estares. Esta questão é fundamental na contemporaneidade, já que atualmente identificamos, na maioria das vezes, os outros somente naqueles que não são familiares: os loucos, os estrangeiros, os drogados, os deficientes, em suma, os que ficam de fora. Dessa maneira, resta pouco espaço ao outro que carregamos em nós, bem como aos outros que nos parecem tão familiares.
Na amizade de Freud e Fliess, o outro pôde ser um fomentador de indagações a respeito dos conflitos psíquicos, contribuindo para a constituição de um corpo teórico que concebe o outro como parte fundamental de si. O inconsciente, aos poucos, foi ganhando espaço nas investigações freudianas e, dessa forma, aquilo que seria uma característica daqueles que sofrem de histeria, conformou-se como uma instância psíquica sob a qual todos estão submetidos. Obviamente, essas asserções foram-se desenvolvendo com o passar dos anos, não apenas durante sua amizade com Fliess, foi possível, contudo, também a partir do campo de vivência que Freud teve nesta relação, baseada na livre circulação da palavra escrita6, a sustentação de um determinado espaço que garantisse os incômodos da alteridade.
Criou-se, portanto, uma amizade que, valendo-se de experiência sui generis com a alteridade, ergueu subsídios para postular a importância do outro na constituição psíquica, mais além, defendeu que no mais íntimo de cada um, habita um desconhecido. Essa disciplina que concebe o outro dentro de si - defendida por Koltai (2000) como o elemento político da psicanálise justamente por proporcionar uma escuta daquilo que de outro modo ficaria calado - nos remete tanto ao inconsciente como estrangeiro, como para phílos: a instituição responsável pelo acolhimento do outro.
A proposição freudiana do estranho, das Unheimliche (Freud, 1919/2010) - texto escrito quinze anos após o término da amizade entre Freud e Fliess - corrobora com a possibilidade de identificar o estranho como aquilo que nos é mais familiar, isto é, os materiais inconscientes. Indo além, a constituição do Eu, segundo Freud (1914/2004), só se dá no embate com a realidade externa, incorporando em si algo que lhe é exterior, estranho, no processo mesmo de sua constituição. Os materiais inconscientes e as identificações que culminam no processo de formação do Eu, impossibilitam, portanto, qualquer anseio de se conceber enquanto um ser homogêneo e sem conflitos.
Essa construção teórica, calcada nas interlocuções com os outros, foi registrada nas cartas de Freud para Fliess: uma relação concomitante ao início da elaboração da Psicanálise, interlocução por vezes diária, endereçada para o único outro. Esse relacionamento, diferentemente das relações que tendem a afastar a alteridade para comporem uma unidade - o casal, os amigos, em que a diferença parece não ter espaço por ser incômoda e constrangedora -, fez-se a partir de um movimento ambíguo com o outro, ora manifestando explicitamente o desejo de compor "um de dois", ora utilizando a radicalidade do estranhamento para produzir tanto uma teoria quanto uma nova percepção e vivência de si.
De uma maneira não linear, a alteridade foi registrada por essas cartas, não apenas pelas inscrições do único outro, mas, sobretudo, pelo espaço de circulação de indagações e diferenças. Este espaço criou um lugar privilegiado de abertura ao outro, o que funcionou como motor de indagações sobre si - em relação a Freud -, sobre os tratamentos médicos para a histeria e sobre uma teoria que a colocaria em seu centro a compreensão do outro.
Assim, da alteridade como característica fundamental desse relacionamento, passamos para sua inscrição como marca das amizades: a pluralidade e a circulação da palavra permitem que as práticas-amizade se inscrevam a partir de um apelo político, um apelo que congrega o(s) outro(s). Evidentemente, essa faceta não é unânime na relação específica por nós analisada, bem como nas amizades em geral; todavia, destacamos como ponto relevante o movimento ao outro característico das amizades, um espaço no qual o estranho pode circular.
Identificar a amizade como uma prática e um discurso que muitas vezes não são coincidentes, inscreve-a como um exercício que coloca resistências a seu tempo, tanto no modo de vivenciá-la quanto na possibilidade de compor um campo propício ao pensamento, um campo de produção (Primo & Rosa, 2017). Dessa forma, atrelada à alteridade, sublinhamos a criação de outros modos de pensar e de estar no mundo, como uma das facetas das amizades.
Notas
1 Maneira que Freud nomeava os encontros presenciais com Fliess.
2 Conferir Primo & Rosa, 2017.
3 Carta de 21 de maio de 1894. In Masson, 1986.
4 Carta de 10 de março de 1898. In Masson, 1986.
5 Carta de 14 de agosto de 1897. In Masson, 1986.
6 Carta de 10 de julho de 1893. In Masson, 1986.
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Recebido em: 29/11/2018
Aprovado em: 02/07/2019